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Pensatas para o fim de semana

Apoiado em evidências científicas, plano federal é lançado para colocar em prática ações que diminuam a população em situação de rua, um fenômeno global, mas que atinge mais fortemente países com altos níveis de concentração da renda

Em situação de rua: a tragédia permanente

Entre 2012 e 2022, o número de pessoas em situação de rua no Brasil passou de 90,4 mil para 281,4  mil: um aumento de 211%, segundo levantamento do IPEA. Nada indica que essa progressão tenha diminuído, a julgar pelo verdadeiro abandono em que se encontram as políticas públicas de proteção social. A boa notícia: a realização determinada pelo atual governo de um novo programa de moradia popular - com base em progressos setoriais conseguidos pelas comunidades científicas e judiciárias em torno do assunto. 

Christina Queiroz, Pesquisa Fapesp: # População de rua terá censo e novo programa de moradia # Brasil investe em programa de moradia primeiro

Cartas de Oswald para Mario de Andrade revelam face subterrânea do modernismo

Escritores se corresponderam entre 1919 e 1928, um ano antes de romperem a amizade. Juliana Vaz, Revista Fapesp (expandir)

Em fevereiro de 1925, durante visita a Londres, o escritor modernista Oswald de Andrade (1890-1954) visitou o Museu Britânico e remeteu um cartão-postal à rua Lopes Chaves, em São Paulo, endereço do amigo Mário de Andrade (1893-1945). O suvenir reproduzia a imagem de um chocalho ameríndio de madeira, em formato de cabeça de urso, pertencente ao acervo da instituição. No verso do cartão, o antropófago não perdeu a oportunidade de gozar o conterrâneo, comparando o colega escritor ao animal de boca e olhos enormes: “Vi hoje você em Camden Town”, escreveu.

É nesse tom de blague, quase sempre galhofeiro e ao mesmo tempo afetuoso, que Oswald escreveu ao autor de Macunaíma entre 1919 e 1928, em documentos agora reunidos no livro Correspondência Mário de Andrade & Oswald de Andrade (Edusp/IEB-USP, 2023). Nas 20 cartas, um bilhete e seis cartões-postais, Oswald relata sobretudo sua atuação como divulgador do modernismo brasileiro na Europa em um momento de grande efervescência cultural. Em Paris, encomenda traduções para o francês de seu romance Os condenados (1922) e realiza uma conferência na Sorbonne (“ando subornado pela emoção”). Na mesma cidade, conhece o escritor franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961) e menciona encontros com inúmeras personalidades como o poeta Jean Cocteau (1889-1963), “um magricela moço, com expressivos pés de galinha”, e o pintor Pablo Picasso (1881-1973), o “Dostoiévski nascido em Málaga”.

Trata-se, porém, de um diálogo lacunar, pois as respostas enviadas por Mário a Oswald não constam na edição. O autor do Manifesto antropófago possivelmente não guardou a correspondência que recebeu – ao contrário de Mário, que ao longo da vida conservou mais de 7 mil cartas de escritores, artistas plásticos, músicos e intelectuais com quem se correspondeu até 1945, ano de sua morte, hoje sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). O livro em questão é o oitavo volume da coleção Correspondência Mário de Andrade, cujos próximos lançamentos devem reunir as trocas de missivas do escritor paulista com o político Carlos Lacerda (1914-1977), o antropólogo Arthur Ramos (1903-1949) e o compositor Luciano Gallet (1893-1931).

Buscando preencher essa lacuna e reconstruir o diálogo entre Mário e Oswald, a organizadora do volume, Gênese Andrade, especialista na obra oswaldiana e sem parentesco com os missivistas, acrescentou generosas notas de rodapé que complementam o material epistolar. Para isso, consultou variadas fontes, entre elas a correspondência de Mário com outros interlocutores, como a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), que foi casada com Oswald entre 1926 e 1929. “Oswald tem um estilo de escrita muito sintético, cifrado e cheio de trocadilhos. As notas de rodapé buscam contextualizar o que ele escreve na correspondência e permitem recuperar a história do modernismo de outra maneira”, conta Andrade, professora de literatura da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo.

A edição decifra, por exemplo, uma carta enviada de Paris em 1925, assinada coletivamente por Oswald e pelos escritores Yan de Almeida Prado (1898-‑1987) e Sérgio Milliet (1898-1966). Em estilo jocoso, o manuscrito menciona os personagens “Desgraça Mosca”, “Santo Heitor Fura-Bolos” e “São Villa-Buarque da Haya”, referências ao escritor Graça Aranha (1868-‑1931), ao compositor Heitor Villa-Lobos (1887-‑1959) e ao historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-‑1982), respectivamente. “Mário percebeu a importância histórica de sua correspondência, que mostrava a ‘vida subterrânea’ do movimento modernista”, comenta Marcos Antonio de Moraes, professor do IEB-‑USP e coordenador editorial da coleção ao lado da pesquisadora independente Tatiana Longo Figueiredo e de Telê Ancona Lopez, professora do IEB-‑USP. “A carta era o lugar onde os intelectuais discutiam questões estéticas, sociais e políticas, de maneira informal, empregando palavrões e renovando a linguagem. Para Mário de Andrade, eram ‘cartas de pijama’, como registrou na crônica ‘Amadeu Amaral’ em 1939.”

Originalmente escritas em suportes variados, como papéis pautados, coloridos ou de seda, contendo timbres de hotéis, restaurantes e companhias marítimas, as cartas deixam pistas dos locais por onde Oswald passou e são reproduzidas no livro em formato fac-similar. Algumas incluem também desenhos e caricaturas. “A correspondência não é só o texto. As dimensões, o tipo de papel usado e todo o aspecto material da carta produzem significados, percebidos pelos estudiosos”, prossegue Moraes.

Oswald e Mário, “duas almas, opostas e complementares, do espírito modernista”, segundo o crítico Antonio Arnoni Prado (1943-2022), tiveram uma amizade conturbada, marcada por conflitos de personalidade e pela mútua admiração intelectual. A relação se inicia em 1917, quando o então jovem jornalista Oswald se impressiona com um discurso que Mário proferiu no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Em 1921, impactado pelos versos de Pauliceia desvairada, livro que seria lançado no ano seguinte, Oswald faz um elogio público de Mário no artigo “O meu poeta futurista”, publicado no Jornal do Commercio. Pouco depois, em 1922, ambos participam ativamente da Semana de Arte Moderna no Theatro Municipal de São Paulo. Mas a amizade logo começa a sofrer abalos, e as divergências intelectuais afloram.

“Em 1924, Mário diverge em alguns pontos do Manifesto da poesia pau-‑brasil, publicado por Oswald no Correio da Manhã, pois tinha uma visão analítica do país. É por isso que vai ao Nordeste pesquisar a cultura popular e analisar os elementos que, para ele, eram constitutivos da cultura brasileira. Oswald, ao contrário, era um intuitivo. Tinha uma perspectiva mais imediata da realidade nacional”, observa Eduardo Jardim, professor aposentado de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor da biografia Eu sou trezentos: Mário de Andrade: Vida e obra (Edições de Janeiro, 2015). Segundo Jardim, as cartas que Oswald dirigiu a Mário ilustram sobretudo a preocupação do modernista de estabelecer contatos com as vanguardas europeias. “Oswald queria inserir o Brasil no ‘concerto das nações cultas’, que, para ele, naquele momento, era a França”, continua o pesquisador.

Em 1925, Mário dedica a Oswald o livro A escrava que não é Isaura. Este agradece de Paris com uma carta que parodia o estilo do amigo: “Me deu pra mim uma comoção de você ofrecer [sic] pra mim o seu livro”, escreve o viajante. Na mesma época, os dois chegam a criar um poema a quatro mãos, “Homenagem aos homens que agem” (1927), assinado por “Marioswald”, que faria parte de um livro inédito, Oswaldário dos Andrades. O rompimento pessoal definitivo se dá em 1929, por razões até hoje não esclarecidas. Segundo a hipótese de pesquisadores como Aracy Amaral, Mário teria sido alvo de uma série de ataques e provocações na Revista de Antropofagia, então em sua segunda fase. Um deles, o artigo “Miss Macunaíma”, publicado em junho daquele ano, fazia alusões à sua homossexualidade, assunto tabu na época.

“Oswald era um piadista que fazia trocadilhos às vezes muito maliciosos com o amigo. As cartas documentam seu espírito brincalhão de garoto, por vezes cruel, que não media as consequências de suas atitudes. Mário chega a comentar, na correspondência com o poeta Manuel Bandeira [1886-1968], o quanto isso o incomodava”, afirma Gênese Andrade. “Após o rompimento, a admiração intelectual entre eles sobreviveu. Ambos continuaram se respeitando no campo das ideias, lendo e apreciando a obra um do outro, mas as tentativas de reconciliação de Oswald jamais foram aceitas por Mário”, finaliza a pesquisadora.

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Apple é criticada por comercial do novo iPad

Anúncio mostra prensa hidráulica esmagando ferramentas; empresa diz que errou e pede desculpas  (mas tomara que não o tire do ar; ele é muito bom no conceito da efemeridade da técnica) Daniel Thomas, FT, via Uol (expandir)

A Apple foi criticada na internet e acusada de insensibilidade cultural devido a um comercial do iPad que mostra instrumentos musicais, materiais de artes plásticas e jogos sendo esmagados por uma prensa hidráulica.

O vídeo de um minuto foi lançado pelo CEO da Apple, Tim Cook, para divulgar uma nova linha dos tablets depois de dois anos, anunciada na terça-feira (7).

A campanha, com trilha sonora do sucesso de 1971 "All I Ever Need Is You", de Sonny & Cher, tem o intuito de mostrar a grande quantidade de recursos que a Apple conseguiu colocar em um tablet mais fino. O anúncio foi produzido internamente pela equipe criativa da empresa, de acordo com veículos especializados.

A campanha foi alvo de uma onda de indignação, com respostas nas redes sociais de Cook acusando a Apple de esmagar "belas ferramentas criativas" e os "símbolos da criatividade humana e conquistas culturais".

Em comunicado ao site AdAge, Tor Myhren, vice-presidente de comunicações de marketing da empresa, disse que a Apple errou com o vídeo e pediu desculpas. A empresa também descartou levar a peça à TV, segundo o site.

"A criatividade está no nosso DNA na Apple, e é incrivelmente importante para nós projetar produtos que empoderem as pessoas criativas em todo o mundo", disse. "Nosso objetivo é sempre celebrar a infinidade de maneiras pelas quais os usuários se expressam e dão vida às suas ideias por meio do iPad. Erramos com este vídeo, e pedimos desculpas."

Executivos da indústria publicitária afirmaram que o anúncio representa um erro para a gigante do Vale do Silício, que sob o comando de Steve Jobs era elogiada por sua capacidade de capturar a atenção do consumidor.

Christopher Slevin, diretor criativo da agência de marketing Inkling Culture, comparou o anúncio do iPad desfavoravelmente a uma famosa campanha da Apple dirigida por Ridley Scott chamada "1984" para o computador original Macintosh, que posicionava a Apple como libertadora de um mundo distópico monocromático.

"O novo comercial do iPad é basicamente a Apple se tornando aquilo que disse que estava destinada a destruir no anúncio de 1984", disse Slevin.

O ator Hugh Grant acusou a Apple de "destruir a experiência humana, cortesia do Vale do Silício".

No entanto, Richard Exon, fundador da agência de marketing Joint, disse: "Uma questão mais importante é: o anúncio cumpre seu papel? É memorável, distinto e agora sei que o novo iPad tem ainda mais recursos, mesmo sendo mais fino do que nunca."

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Você conhece alguma coisa importante que o governo Tarcísio tenha feito por São Paulo até agora?


A pergunta se justififica: depois de mais de um ano no cargo, o que Tarcísio de Freitas mais fez até agora foi espalhar em todas as áreas uma extraordinária ignorância das necessidades sociais e econômicas do estado: privatização onerosa da Sabesp em favor dos interesses privados e às custas da população; desmonte da Educação em benefício particular de seu secretário e de uma pedagogia do obscurantismo, como é o caso das infames escolas cívico-militares; mortes e mais mortes em decorrência da cultura do ódio posta em prática pela PM; desapropriação injustificada de propriedades para a construção de desastres urbanos, como é o caso do alargamento da Raposo Tavares... 

Tarcísio quer ser presidente da República e acredita que suas medidas prepotentes e arrogantes lhe dão a simpatia do eleitorado, que confunde autoridade (que o governador não tem) com autoritarismo (que o governador tem de sobra). Em tudo, um Bolsonaro travestido.

Agora Tarcísio resolveu atacar a produção científica paulista - uma das mais relevantes do mundo - que tem na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) um dos seus principais núcleos de apoio público que financia projetos de forte interesse social. O governador parece incomodado com as virtudes daquilo que está fora do seu poder pois imagina que quanto maior for o mal que infligir ao seu redor maior será sua popularidade, nesse estranho paradoxo em torno da simpatia que ditadores despertam no senso comum. Mais ódio, mais votos. Mussolini também pensava assim e foi linchado em praça pública.

Antes que Tarcísio avance sobre outros setores com sua sanha psiquicamente doentia, é preciso contê-lo.

Em defesa da inteligência, em defesa da Fapesp, fora Tarcísio...
J.S.Faro

A Fapesp sob ameaça

Projeto (do governo do Estado) pode tirar R$ 600 milhões do orçamento da instituição, na contramão daquilo que deve ser a estratégia para o futuro: mais recursos para a ciência e não menos (Artigo publicado na Folha de S. Paulo de autoria de Horacio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foi criada em 1960 e começou a funcionar em 1962. Sua criação estava prevista na Constituição Estadual de 1947, que lhe atribuía a missão de amparar a pesquisa científica com a dotação de 0,5% da receita ordinária do estado. Em 1989, a Assembleia Constituinte ampliou a missão da Fapesp, que passou a apoiar o desenvolvimento científico e tecnológico de São Paulo, agora com a destinação de 1% da receita tributária líquida do estado.

Nestes mais de 60 anos, a Fapesp fez muito por São Paulo e pelo Brasil. A pesquisa feita nas melhores universidades e institutos do país, especialmente nas três universidades publicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp), só é possível pelo apoio regular da Fapesp (continue a leitura)

Vacinas, aviões, ventiladores pulmonares e combate a pragas, como o amarelinho e agora o "greening"; novas variedades de cana-de-açúcar; o mapeamento da biodiversidade paulista; a Expedição Permanente à Amazônia, que Paulo Vanzolini liderou entre os anos 1960 e 1980; os estudos e dados que subsidiam a posição do Brasil nas negociações sobre a mudança climática: todos, de uma forma ou outra, só se viabilizaram com o apoio da Fapesp.

Mais de 1.800 pequenas empresas, grande parte delas startups, foram apoiadas nos últimos 27 anos. Hoje, por ano, cerca de 200 a 300 novas empresas são apoiadas, gerando empregos e melhorando a competitividade da economia paulista. Vinte e dois centros de pesquisa em engenharia ou aplicada estão atualmente em operação, fazendo pesquisa em parceria com grandes empresas sobre, por exemplo, a mobilidade aérea do futuro, o desenvolvimento de cultivares resilientes à mudança climática ou hidrogênio de baixo carbono.

Outros 22 centros de pesquisa de excepcional qualidade situam-se em universidades e institutos de pesquisa em temas como doenças de natureza genética, terapia celular de combate ao câncer (CAR-T Cell), materiais vítreos, fixação de carbono, matemática aplicada à indústria, inteligência artificial ou estudos sobre a metrópole.

Amparada no artigo 218 da Constituição Federal, que diz que os estados podem destinar parte de sua receita à pesquisa científica e tecnológica, a Fapesp foi a primeira e até hoje é a mais importante agência estadual de fomento à ciência e à inovação. Instituída pelo governo, a fundação é uma entidade singular; é uma instituição de natureza privada, com uma sólida governança e autonomia financeira-administrativa, só podendo despender 5% de seu orçamento com atividades-meio: as despesas com a sua administração. Um modelo único, admirado no país e no exterior.

A autonomia financeira da Fapesp é assegurada, por disposição inserida na Constituição Estadual, pelo repasse mensal de 1% da receita tributária do estado e pela existência de um fundo de reserva, previsto sabiamente pela sua lei de criação. Fato é que a Fapesp nunca deixou de honrar os compromissos assumidos por ela, muitos dos quais de longo prazo. É comum a fundação financiar pesquisas por prazos superiores a dez anos, garantindo estabilidade e previsibilidade a grupos de pesquisa e desenvolvimento.

Por todas essas razões, é preciso reverter com urgência o estabelecido no artigo 22 do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias recém-enviado à Assembleia Legislativa pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP). Esse artigo introduz uma diretriz nova para a elaboração do orçamento da Fapesp do próximo ano. Trata-se de não apenas levar em conta a dotação de 1%, prevista na Constituição Estadual, mas também considerar um dispositivo das Disposições Transitórias da Constituição Federal que permite desvincular até 30% das receitas de órgãos e fundações. A aplicabilidade desse dispositivo a uma instituição cujo orçamento deriva de dispositivo constitucional é discutível.

O valor é pequeno no conjunto do orçamento estadual, mas terá um impacto gigantesco no panorama da pesquisa de São Paulo. Essa medida retiraria R$ 600 milhões do orçamento da Fapesp no ano de 2025. Se perpetuada, vai inviabilizar muito do esforço que o estado tem feito para liderar a ciência e a inovação no país. Perde São Paulo, perde o Brasil —e é medida incompatível com um governo que diz acreditar na ciência e na tecnologia como base de sustentação de sua cultura, indústria, agricultura e população.

# Leia aqui o texto original desta matéria (com gráficos e imagens)

Nas imagens ao lado: # acima, a sede da Fapesp; # no centro, em imagens, inventário da pluralidade objetos que são pesquisados em projetos custeados pela instituição; # abaixo, a revista Pesquisa Fapesp, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo para a interação global do conhecimento gerado por pesquisadores de todos os países.

O que há de novo?

# Governantes negligenciaram as previsões sobre a tragédia (IHU)

Políticas e práticas predatórias do estado privatista são a causa do desastre no RS

# Eduardo Leite flexibiizou 480 normas ambientais antes da tragédia (247)

"Passar a boiada" da era Bolsonaro virou mantra da política conservadora

# PL de Bolsonaro e PP de Lira comandam o pacote da destruição

Análise de José Roberto de Toledo (Uol)

# "Saques são generalizados" diz policial gaúcho  (Uol)

"Não vi um único estabelecimento comercial aberto que não tivesse sido saqueado..."

Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, em vídeo do site Fronteiras do Conhecimento

O “andar de baixo” divide-se entre o temor do desemprego e o fardo da precarização. É hora de retomar uma pauta do século XIX: a redução da jornada de trabalho, como forma de gerar empregos e mitigar a exploração… (Outras Palavras)

No ranking das maiores empresas de tecnologia no Brasil quase todas têm origem estrangeira (A Terra é redonda)

O momento que aviltou a história do Brasil: o elogio da tortura e o golpe contra a democracia

Pensatas fora de hora

O envolvimento dos EUA no golpe que culminou com a eleição de Bolsonaro

As táticas de lawfare usadas contra Dilma e Lula se assemelham em muitos aspectos à desestabilização do início dos anos 1960 que culminou no golpe de 1964.  Brian Mier, Bryan Pitts, Kathy Swart, Rafael R. Ioris e Sean T. Mitchell (A Terra é redonda)

Em outubro de 2009, o Brasil finalmente começava a cumprir sua promessa como “terra do futuro”, conforme o havia apelidado o famoso autor austríaco Stefan Zweig. Sob a presidência esquerdista de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil tirava dezenas de milhões da pobreza, expandia o ensino superior e assumia um papel de destaque na política regional e global (continue a leitura).

No dia 2 de outubro, o Comitê Olímpico Internacional concedera ao Rio de Janeiro a missão de sediar os Jogos Olímpicos de 2016. E um mês depois, a revista The Economist (2009) anunciava a ascensão do Brasil no mundo, com a manchete de capa “O Brasil decola” e um gráfico do Cristo Redentor do Rio sendo lançado como um foguete. Para muitos brasileiros, foram tempos inebriantes.

Dois dias após o anúncio olímpico, o Rio sediou outro encontro importante, com juízes, promotores e policiais de todos os 26 estados, Brasília e outros seis países latino-americanos, reunidos para uma conferência de seis dias organizada pela Embaixada dos EUA, com financiamento da Coordenadoria do Contraterrorismo do estado do Rio de Janeiro. O evento acabaria tratando menos de combate ao terrorismo do que crimes financeiros. Os participantes receberam aulas sobre “cooperação internacional formal e informal, confisco de bens, métodos de prova, esquemas de pirâmide, delação premiada [e] uso da interrogação direta como ferramenta”. Um dos palestrantes, o então juiz federal Sérgio Moro, compartilhou insights sobre a persecução penal contra a lavagem de dinheiro. O funcionário consular que se reportava a Washington sugeriu que mais treinamento judicial poderia ser fornecido, por meio de uma força-tarefa em São Paulo, Campo Grande ou Curitiba (Kubiske, 2009).

No final de 2018, o progresso do Brasil havia sido suspenso, se não revertido. O PT havia sido retirado do poder em 2016 por meio do impeachment espúrio da sucessora de Lula, Dilma Rousseff. Seu ex-vice, o centro-direitista Michel Temer, havia imposto um retorno ao neoliberalismo, com privatizações e concessões ‘a petroleiras estrangeiras. Entre 2014 e 2019, a desigualdade aumentava rapidamente, em ritmo semelhante à queda histórica entre 2001 e 2014. A metade mais pobre da população brasileira perderia 17,1% de sua renda, enquanto os 10% mais ricos ganhariam 2,55% e o 1% mais rico, 10,11% (Neri, 2019). A mancha da reputação do PT que legitimaria todos esses eventos se deve em muito à Operação Lava Jato, formada em Curitiba e liderada por Sérgio Moro.

A Operação se valeu de delações premiadas, cooperação internacional, confisco de ativos e exame direto para processar crimes financeiros – não de terroristas, mas de políticos e empresas de construção e energia, notadamente a estatal de petróleo, a Petrobras. De fato, a crise econômica que corroeu a popularidade do PT foi alimentada pelo ataque da Lava Jato às maiores empresas do Brasil (Paula e Moura, 2021). Mas a maior vitória da Lava Jato foi a prisão de Lula – então líder das pesquisas presidenciais de 2018 – sob a acusação de aceitar uma reforma de condomínio à beira-mar em troca de favores mal definidos a construtoras após o fim de seu mandato. Como as mensagens privadas hackeadas do aplicativo Telegram e vazadas para o The Intercept viriam a comprovar mais tarde, a Lava Jato trabalhou justamente para esses fins. Procurou minar o PT e depois impediu Lula de concorrer em 2018, o que levou à eleição de Jair Bolsonaro.

É esse processo, em que a democracia brasileira foi minada por uma campanha anticorrupção politizada, que chamamos de “longo golpe”. Por seu papel nisso, Moro recebeu aclamação internacional. Em 2016, a Americas Quarterly (publicada pelo think tank corporativo Americas Society/Council of the Americas) o apresentou em uma capa inspirada em Ghostbusters intitulada “Corruption Busters” (Spektor, 2016). A Time o nomeou uma das 100 pessoas mais influentes do mundo (Walsh, 2016), e em 2018 ele fez o discurso de formatura na prestigiosa Universidade Notre Dame (Notre Dame News, 2018). Em março de 2019, Bolsonaro fez sua primeira visita de Estado, para se encontrar com Donald Trump em Washington, acompanhado de seu então ministro da Justiça, Sérgio Moro, cujas ações haviam impedido Lula, principal adversário de Bolsonaro, de participar da eleição presidencial do ano anterior. Quando Bolsonaro fez o movimento inusitado de visitar a sede da CIA, Moro a tiracolo, o ex-governador paranaense Roberto Requião (2019) tuitou: “É verdade que quando Moro entrou na CIA seu wi-fi se conectou automaticamente?”

Requião insinuava que a cruzada “anticorrupção” de Moro e o longo golpe que ele ajudou a desencadar contavam com o apoio ativo dos EUA. Este artigo argumenta que ele estava correto. É a análise acadêmica mais completa – e, até onde sabemos, a única – que reúne as evidências atualmente disponíveis da colaboração dos EUA com as elites nacionais entre 2009 e 2018 para prejudicar a esquerda sob a égide do anticorrupção. Particularmente considerando o manto de censura sob o qual agências americanas como a CIA e o Departamento de Justiça operam, e o pouco tempo que se passou desde que Dilma Rousseff sofreu impeachment, as evidências do envolvimento dos EUA são esmagadoras. Contudo, por muito tempo, a maioria dos estudiosos nos Estados Unidos não tiveram muito a dizer sobre eventos tão dramáticos e importantes.

Somos quatro americanos e um brasileiro-americano oriundos da antropologia, geografia, história e ciências da informação. Colocamo-nos à esquerda do espectro ideológico e estamos profundamente empenhados em combater o imperialismo, particularmente quando este tem origem na nossa casa, os Estados Unidos. Estivemos envolvidos em diferentes graus com organizações de defesa como a Rede Americana pela Democracia no Brasil, que aumentou a conscientização sobre os estragos causados pelo longo golpe e pela presidência de Bolsonaro, e escrevemos em publicações populares e acadêmicas sobre o imperialismo norte-americano no Brasil. Em particular, quatro de nós temos sido colaboradores regulares do Brasil Wire, um veículo progressista e voluntariamente gerenciado criado para desafiar os enquadramentos da mídia corporativa da política brasileira.

Neste artigo, analisamos as evidências disponíveis, que acreditamos mostrar, de maneira convincente, que os Estados Unidos desempenharam um papel significativo no longo golpe do Brasil. A primeira seção analisa o golpe militar de 1964, como evidência do envolvimento anterior dos EUA na desestabilização da democracia brasileira e como isso tem sido frequentemente ignorado ou negado por instituições acadêmicas e midiáticas. A seção seguinte examina as evidências que demonstram o envolvimento dos EUA na perseguição ao PT. Em seguida, observamos como o papel dos Estados Unidos tem sido amplamente ignorado por estudiosos fora do Brasil, embora incisivamente abordado por estudiosos brasileiros. A seção final considera possíveis motivos para as ações dos EUA. Concluímos que um papel político crucial para os estudiosos latino-americanistas dos EUA é denunciar as ações imperialistas de nosso próprio governo na região, e desafiamos nossos colegas a tomar uma posição mais decisiva contra isso.

É claro que não é nossa intenção negar que houve corrupção durante os governos do PT ou que possíveis erros do partido contribuíram para seus problemas. O fato é que, apesar dessas imperfeições, o PT venceu quatro eleições presidenciais consecutivas (e uma quinta em 2022). E o partido só foi derrotado depois que uma campanha midiática muito bem organizada, e apoiada pelos EUA, remodelou internacionalmente a narrativa. O uso do anticorrupção para legitimar o envolvimento imperial no enfraquecimento de governos de esquerda latino-americanos democraticamente eleitos no século XXI tem paralelos com o uso do anticomunismo no século anterior.

No entanto, apesar dessa repetição farsesca de uma história trágica, o século XXI também trouxe surpresas. Depois que esse artigo foi redigido pela primeira vez, em outubro de 2022, Lula derrotou Bolsonaro na disputa presidencial que a Lava Jato havia negado ao Brasil em 2018. Contrariando o padrão histórico, o governo de Joe Biden repudiou as inúmeras tentativas de Bolsonaro de subverter o processo democrático. Suspeitamos que essa defesa anômala dos EUA da esquerda latino-americana democraticamente eleita resulte mais do antagonismo do governo Biden pra com a figura amplamente entendida nos Estados Unidos como um “Trump tropical”, do que possa sinalizar uma ruptura decisiva com seu padrão histórico de comportamento.

O imperialismo norte-americano e seus negacionistas no contexto histórico: o golpe brasileiro de 1964

Não deveria surpreender que a mídia dos EUA e muitos estudiosos tenham ignorado (ou aplaudido) o envolvimento dos EUA no longo golpe. Durante mais de meio século, intervir contra governos democraticamente eleitos foi apenas metade da história; a segunda metade envolvia justificar, minimizar ou negar o envolvimento dos EUA. As justificativas da Guerra Fria para a intervenção norte-americana privilegiaram o anticomunismo, pois os Estados Unidos desestabilizaram governos progressistas, instalaram ditadores amigos, financiaram regimes militares brutais e forneceram treinamento especializado em repressão a dissidentes de esquerda (Livingstone, 2011: 2). Como em intervenções recentes, tais ações geralmente só foram tardiamente reconhecidas, por vezes mesmo nunca, por importantes setores do jornalismo e da academia os EUA.

Em 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou, deixando o vice-presidente João Goulart como seu sucessor. O governo dos EUA não gostava de Goulart por sua neutralidade na Guerra Fria, iniciativas de reforma agrária, lei de remessa de lucros de 1962 e promoção da nacionalização de industrias. Em 1962, John F. Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon decidiram que Goulart deveria ser removido (Green, 2010: 29). Entre as principais frentes da cruzada contra Goulart estavam a Aliança para o Progresso (Green, 2010: 6-27) e o Instituto Americano para o Desenvolvimento do Trabalho Livre, que trabalhou para orientar os sindicatos para o anticomunismo (Corrêa, 2021). Ao mesmo tempo, a propaganda produzida pela CIA retratava uma iminente tomada comunista (Black, 1977: 131). Por fim, como revelou Phyllis Parker (1979), os Estados Unidos organizaram a Operação Brother Sam, que posicionou navios americanos na costa brasileira, prontos para ajudar os conspiradores se necessário. A conspiração envolvendo o governo Kennedy, interesses empresariais e políticos e militares brasileiros de direita se concretizou em 1964, e durante as duas décadas de regime militar que se seguiram, os Estados Unidos permaneceram aliados dos generais brasileiros.

A oposição norte-americana a Goulart pouco tinha a ver com o comunismo e os interesses financeiros e geopolíticos que motivaram o golpe ficaram evidentes desde cedo. As corporações tinham muito a perder com as reformas de Goulart. Por exemplo, em 1963, a Hanna Mining Company se opôs ao decreto de desapropriação de Goulart. O membro do conselho da Hanna, John J. McCloy, levou Gordon ao gabinete do primeiro presidente militar do Brasil, Humberto Castelo Branco, para explicar que restaurar a concessão de Hanna “poderia ser uma condição para receber assistência econômica dos EUA” (Black, 1977: 88). As motivações financeiras são ainda reveladas pelas respostas corporativas às audiências do senador Frank Church sobre o apoio dos EUA à tortura no Brasil. Preocupadas com a exposição, as corporações americanas solicitaram que as audiências no Congresso fossem “fechadas e discretas” (Green, 2010: 238-241).

Durante muito tempo, o governo dos EUA negou envolvimento, repetindo o mantra de que o golpe havia sido uma “revolução” que impediria uma tomada de poder pelos comunistas (Green, 2010: 43). E a mídia americana papagueou acriticamente essa narrativa. Antes do golpe, o correspondente do New York Times no Rio, Tad Szulc, alertava contra a “crescente influência esquerdista” e a suposta organização marxista dos camponeses (Green, 2010: 25). Enquanto isso, a manchete da edição de 17 de abril de 1964 afirmava: “Presos: um grande vaivém à esquerda”. Por sua vez, o Reader’s Digest (Seleções), de 23 páginas, do notável anticomunista Clarence W. Hall, repleto de alegações não documentadas, foi transformado em um panfleto com instruções do exterior (Hall, 1964). James Green (2010, p. 39) chama-lhe “quase uma caricatura da má propaganda do início da Guerra Fria dos anos 1960”. Michael Weis (1997) concluiu que “o governo dos EUA foi capaz de administrar as notícias para esconder o envolvimento dos EUA no golpe e apresentar uma versão distorcida da realidade” que logo justificaria golpes em toda a América Latina.

Mas apesar de todas evidências descobertas por estudiosos brasileiros e norte-americanos, o registro mal foi corrigido, e no plano do discurso político e popular, narrativas falsas sobre o golpe e o regime militar continuam a enganar um público condicionado a interpretar positivamente a política externa dos EUA. Além disso, escritores ligados às instituições cruciais para a gestão narrativa – as forças armadas dos EUA, as agências de inteligência, a mídia e Wall Street – são frequentemente responsáveis pelo que se torna “conhecimento comum” sobre a América Latina (Swart, 2022: 224-226). Por exemplo, verbetes sobre o golpe na edição de 2008 da Enciclopédia de História e Cultura Latino-Americana são lidos como propaganda da Guerra Fria. No verbete “Revolução de 1964”, Marshall C. Eakin (2008) limita o envolvimento dos EUA a mero “apoio”, repetindo o pretexto das preocupações dos EUA com “uma revolução de esquerda”. O verbete de Lewis A. Tambs sobre o primeiro ditador do regime, Castelo Branco, limita as relações dos EUA com o Brasil ‘a “ajuda financeira e investimento”. Ele afirma ainda que a série de atos institucionais repressivos do regime “assegurou a ordem interna” e “purificou o governo” (2008: 14). Notavelmente, Tambs cita John W. F. Dulles, filho de John Foster Dulles e sobrinho do ex-diretor da CIA Allen Dulles, e o próprio verbete de Dulles sobre Luís Carlos Prestes culpa “esquerdistas violentos” e o Partido Comunista Brasileiro pelo golpe. Dulles (2008: 362-363) chega a zombar da existência do “imperialismo” norte-americano ao colocá-lo entre aspas assustadoras.

Os livros didáticos recentes não se saíram muito melhor. Tanto a América Latina e o Caribe quanto a América Latina desde a Independência: Uma História com Fontes Primárias reproduzem tropos narrativos sobre o comunismo e omitem a intervenção dos EUA. O primeiro elogia o ditador Ernesto Geisel (1974-1979) como defensor da democracia e chama o golpe de “revolução” (Goodwin, 2013: 93). A seguinte obra traça paralelos entre a Revolução Cubana e as ditaduras de direita da região (Dawson, 2014: 202). Nenhum dos textos menciona o papel dos Estados Unidos na ditadura brasileira. Portanto, não é surpreendente que a recente colaboração dos EUA com investigadores anticorrupção tenha sido ignorada na maioria das fontes de referência dos EUA. Dois artigos não assinados, por exemplo, induzem os leitores a acreditar que Dilma Rousseff sofreu impeachment por corrupção.1 Um verbete no livro ABC-CLIO’s World Geography: Understanding a Changing World conecta incorretamente o impeachment de Dilma ao escândalo de corrupção na Petrobras descoberto pela Lava Jato (World Geography, s.d.).2

Embora não estejamos afirmando que os Estados Unidos estiveram diretamente envolvidos no impeachment de Dilma, esses exemplos ilustram como segmentos da intelectualidade norte-americana foram cúmplices da cruzada da Lava Jato para enfraquecer o PT. Com efeito, Kevin Young (2013) observa que “mesmo a principal mídia liberal do país quase nunca reconhece o apoio dos EUA a regimes [repressivos]”. Sua análise de cinco anos de reportagens do New York Times, Washington Post e NPR sobre três ditaduras revela que o papel dos EUA é mencionado apenas 6% das vezes. Ao discutir os abusos cometidos pelos aliados dos EUA, o apoio dos EUA raramente é mencionado ou é encoberto como “uma força para a democracia e os direitos humanos” (Young, 2013). No entanto, apesar das negativas ou justificativas para a interferência dos EUA de fontes governamentais e da mídia, evidências invariavelmente podem ser encontradas em documentos oficiais, processos legais, lapsos nas narrativas padrão da mídia e de vazamentos documentais.

Evidências do papel dos EUA na Lava Jato Nas Próprias Palavras do Tio Sam

O Brasil assinou a Convenção Antissuborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1997. A convenção foi modelada no Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) de 1977, uma lei dos EUA que proíbe o suborno no exterior por empresas americanas (Spahn, 2013). Em 1998, a jurisdição da FCPA foi expandida para se aplicar a qualquer empresa estrangeira que faça negócios nos Estados Unidos ou faça transações em dólares (Department of Justice, 2017b). A adesão do Brasil à convenção e a jurisdição ampliada da FCPA forneceram uma base legal para o Departamento de Justiça trabalhar com a força-tarefa da Lava Jato. A relação era tão próxima que alguns argumentam que o Departamento de Justiça assumiu a liderança da investigação (Ohana, 2019).

O Departamento de Justiça e seus parceiros brasileiros aplicaram bilhões de dólares em multas a empresas brasileiras em casos civis que eram frequentemente decididos no Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Sul de Nova York.3 Em 2014, os registros de empresas americanas contra a Petrobras fizeram referência ao papel do Departamento de Justiça na Lava Jato (ver Kaltman vs Petroleo Petrobras S.A., U.S. District Court, Southern District of New York, 2014). Em 2015, blogs jurídicos escreveram sobre isso (Torres, 2015) e, em 2016, o site do Departamento de Justiça o mencionou casualmente. Um comunicado de imprensa do Departamento de Justiça de 21 de dezembro de 2016 afirmava:

A Odebrecht se declarou culpada de uma acusação criminal apresentada hoje pela Seção de Fraude da Divisão Criminal e pela Procuradoria dos EUA no Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Leste de Nova York, acusando a empresa de conspiração para violar as disposições antissuborno da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA). O escritório do FBI em Nova York está investigando o caso. O Escritório de Assuntos Internacionais da Divisão Criminal também prestou assistência substancial. A SEC e o Ministério Público Federal no Brasil, o Departamento de Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República na Suíça prestaram uma cooperação significativa.

De dezembro de 2016 a junho de 2019, o Departamento de Justiça emitiu quatro comunicados à imprensa fazendo referência à sua relação com o Ministério Público brasileiro no âmbito da FCPA e da Lava Jato. Na resposta de 7 de junho de 2020 do procurador-geral assistente Stephen E. Boyd (Mier, 2020) à carta de 20 de agosto de 2019 assinada por 14 congressistas dos EUA exigindo esclarecimentos sobre o papel dos EUA na Lava Jato e a prisão de Lula em ano eleitoral, todos os quatro comunicados à imprensa foram citados como mostrando que a relação entre a Lava Jato e o Departamento de Justiça dos EUA era uma questão de registro público.

Em outro comunicado à imprensa, de 27 de setembro de 2018 (Departamento de Justiça, 2018), a Seção de Fraude Criminal do Departamento de Justiça agradeceu a assistência das autoridades brasileiras e especificou a distribuição da multa aplicada à Petrobras, com cerca de $US 85 milhões indo para a SEC e o Departamento de Justiça. Em 7 de junho de 2021, as evidências do envolvimento do Departamento de Justiça em uma investigação da Lava Jato que até então era conhecida por suas atividades ilegais e politização (Fishman et al., 2019) eram tão avassaladoras que o congressista Hank Johnson se juntou a outros 22 membros do Congresso em uma sequência de uma carta do Congresso de 2019, também patrocinada por Johnson, sobre o papel do Departamento de Justiça. A carta de 2021 afirma: “É de registro público que agentes do Departamento de Justiça dos EUA prestaram apoio a procuradores brasileiros que fizeram parte da operação Lava Jato”.

O registro público referenciado foi especialmente condenatório: um discurso de 19 de julho de 2017 do procurador-geral adjunto interino Kenneth A. Blanco no Atlantic Council (Departamento de Justiça, 2017a). Blanco elogiou a cooperação entre o Departamento de Justiça e o Brasil, citando os “resultados extraordinários” das investigações colaborativas sobre os casos da FCPA envolvendo Embraer, Rolls Royce, Braskem e Odebrecht. Blanco também citou a condenação de Lula como um sucesso da campanha anticorrupção no Brasil. O Brasil Wire foi um dos primeiros veículos de comunicação a divulgar essa revelação bombástica (Mier, 2017), e levou a defesa de Lula a apresentar uma moção para rejeitar todas as acusações da Lava Jato por colaboração ilegal com um governo estrangeiro (Conjur, 2018). A moção foi baseada na seguinte seção do discurso de Blanco (Departamento de Justiça, 2017a):

No centro da tremenda cooperação entre os nossos dois países está uma forte relação assente na confiança. Essa confiança permite que promotores e agentes tenham comunicações diretas sobre provas. Dada a estreita relação entre o Departamento e os procuradores brasileiros, não precisamos confiar apenas em processos formais, como tratados de assistência jurídica mútua, que muitas vezes levam tempo e recursos significativos para redigir, traduzir, transmitir formalmente e responder.

A moção (baseada em documentos divulgados quase dois anos antes de o The Intercept revelar que o FBI havia se reunido com eles) sustentava que os procuradores da Lava Jato subvertiam a lei de segurança nacional brasileira e os termos da Convenção Antissuborno ao ignorar o Ministério da Justiça brasileiro e se comunicar informalmente sobre um caso pendente com autoridades estrangeiras (Martins et al., 2018). Em março de 2022, o Superior Tribunal de Justiça determinou que o Ministério da Justiça divulgasse informações previamente sigilosas sobre parcerias entre a Lava Jato e o Departamento de Justiça à equipe de defesa de Lula, de modo que esperamos que, com o passar do tempo, mais informações sobre a colaboração dos EUA se tornem públicas (STJ, 2022).

Cobertura da mídia dos EUA

De 2014 a 2016, artigos publicados em alguns dos jornais mais influentes dos Estados Unidos (Stevenson e Sreeharsha, 2016; Kiernan, 2014; Segal, 2015) começavam a relatar a parceria do Departamento de Justiça e da SEC com investigadores brasileiros que usaram o FCPA para atingir empresas vitais para o desenvolvimento do Brasil. Por exemplo, um artigo do New York Times de 2016 explicou que as multas contra a Odebrecht e a Braskem foram resultado de uma investigação conjunta de autoridades americanas, suíças e brasileiras, referindo-se ao lado brasileiro como “Operação Lava Jato” (Stevenson e Sreeharsha, 2016).

O caso Odebrecht e Braskem ganharia as manchetes como o maior caso de suborno estrangeiro já decidido em um tribunal dos EUA. Um artigo da Reuters de 2016 explicou que a Lava Jato representava uma parceria de quase três anos entre autoridades americanas e brasileiras no âmbito da FCPA (Rosenberg e Raymond, 2016). Mas dezembro de 2016 foi a última vez que um grande veículo dos EUA mencionou o envolvimento dos EUA. O New York Times, por exemplo, publicou pelo menos 37 artigos sobre a Lava Jato entre 2015 e a prisão de Lula em 2018, mas o último de seus três artigos mencionando o papel dos EUA apareceu em 2016 (Stevenson e Sreeharsha, 2016).

Ao longo daquele ano, a Lava Jato ajudara a criar as condições para o impeachment de Dilma e trabalhava publicamente para a prisão do provável candidato à Presidência em 2018, Lula, ao mesmo tempo em que poupava membros do Partido da Democracia Social Brasileira (PSDB), principal rival de centro-direita do PT. E enquanto a imprensa norte-americana noticiava a colaboração dos EUA com a Lava Jato, a maioria fora do Brasil via a operação como uma investigação legítima e até heroica. E assim, essa colaboração poderia ter parecido moralmente justificada. Somente em 2017, a suposta neutralidade da Lava Jato começava a sofrer algum grau de escrutínio, com críticas à operação chegando mesmo a publicações como Foreign Affairs (Robertson, 2017) e reportagens sobre a devastação econômica provocada pela Lava Jato começavam a aparecer no Washington Post (Lopes e Miroff, 2017). Vale ressaltar que, à medida que o consenso dos EUA sobre a benevolência da Lava Jato desaparecia, o mesmo ocorria com as reportagens sobre o envolvimento dos EUA. E ainda a imprensa norte-americana tivesse perdido o interesse pelo tema, ele continuava importante no Brasil.

Em junho de 2019, as evidências sobre a interferência dos EUA via Lava Jato já eram tão fortes que o líder do PT no Congresso, Paulo Pimenta, conseguiu elaborar um dossiê cheio de informações. Incluía nomes de procuradores americanos, declarações públicas de funcionários do governo, provas de reuniões e eventos paralelos, agendas oficiais, provas de colaboração informal em violação às leis de soberania nacional e a presença de agentes norte-americanos no Brasil agindo sem o conhecimento de autoridades governamentais (Pimenta, 2021). O deputado compartilhou o material com membros do Congresso dos EUA e, durante uma reunião do Parlamento Europeu em 19 de junho de 2019, acusou os Estados Unidos de criarem a Lava Jato como laboratório para Moro e os procuradores promulgarem as orientações ilegais que recebiam dos Estados Unidos (Ohana, 2019). Semanas depois, uma série de reportagens bombásticas publicadas pelo The Intercept com parceiros de mídia locais começaram a confirmar as alegações de Pimenta.

Walter Delgatti, The Intercept e Operação Spoofing

Lula foi solto da prisão em 8 de novembro de 2019, 580 dias depois de o Supremo Tribunal Federal, sob ameaça televisionada nacionalmente do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, ter decidido abrir uma exceção à Constituição brasileira, permitindo sua prisão antes que seu processo de apelação tivesse se desenrolado. Sua libertação ocorreu um dia depois de o tribunal corrigiu sua própria decisão. Trazemos isso à tona porque a soltura de Lula é frequentemente descaracterizada (Danner, 2021) como baseada em um tecnicismo.

As centenas de ativistas acampados em frente à sua prisão,4 petições exigindo sua libertação assinadas por intelectuais e estudiosos de todo o mundo (CTB, 2018) e visitas a ele de chefes de Estado certamente ajudaram a estimular a simpatia pública. Mas foi, de fato, a admissão de erro do tribunal que levou à soltura de Lula. No mesmo sentido, o escândalo da Operação Spoofing, em que o hacker Walter Delgatti entregou 57 GB de conversas no Telegram entre Moro e procuradores da Lava Jato que havia obtido para Glenn Greenwald, do The Intercept,5 ajudou a mudar a opinião pública, mas não teve relação direta com a soltura de Lula (STF, 2021; ver Angelo e Caligari, 2021).

Em 96 reportagens divulgadas em parceria com alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil entre setembro de 2019 e março de 2020 (Intercept Brasil, 2020), o The Intercept revelou uma ampla gama de crimes envolvendo conluio entre juiz e Ministério Público com o objetivo explícito de afastar o ex-presidente Lula das eleições presidenciais de 2018, aniquilar o PT e ajudar a eleger Bolsonaro. Em março de 2020, em parceria com o grupo de mídia independente Agência Publica, o The Intercept divulgou a informação que jornalistas brasileiros e acadêmicos e ativistas americanos que acompanhavam a Lava Jato desde o início esperavam: agentes federais dos EUA haviam colaborado com todo o processo ilegal. As conversas no Telegram que revelaram que a equipe da Lava Jato manteve repetidas reuniões secretas com um grupo de 17 agentes do FBI, ignorando as diretrizes do Ministério da Justiça do Brasil, as leis de soberania nacional e os termos da parceria da FCPA para colaborar em elementos sensíveis do caso do condomínio contra Lula (Fishman, Martins e Saleh, 2020).

Em 9 de fevereiro de 2021, o STF considerou os dados da Operação Spoofing admissíveis como prova e determinou que todos os dados — centenas de vezes mais do que o recebido pelo The Intercept — fossem liberados para a defesa de Lula. Os advogados de Lula entraram imediatamente com seu segundo pedido de destituição com base em conluio ilegal entre a força-tarefa da Lava Jato e um governo estrangeiro. Uma das justificativas citadas na moção foi um comentário feito no dia da prisão de Lula pelo chefe da Lava Jato, Dalton Dallagnol, de que se tratava de um “presente da CIA” (Conjur, 2021). Em 8 de março de 2021, antes que a nova moção pudesse ser julgada, o tribunal reverteu todas as condenações de Lula em resposta a uma moção anterior apresentada pela defesa de Lula em novembro de 2020 acusando a acusação de compras ilegais de foro (Falcão e Vivas, 2021).

A moção se baseava no fato de que a justificativa para transferir o caso da casa de Lula de São Paulo, onde Moro não tinha jurisdição, para Curitiba (suposto envolvimento em um esquema de corrupção mal definido da Petrobras) havia sido retirada das acusações uma semana após a transferência do caso (Angelo e Caligari, 2021). Moro agora é investigado por parcialidade judicial por sua atuação no caso. Em artigo do New York Times, Gaspard Estrada (2021) chamou o caso de “o maior escândalo judicial da história brasileira”. O envolvimento do governo dos EUA neste escândalo certamente merece maior escrutínio do que recebeu dos estudiosos americanos.

Anti-imperialismo e pontos cegos imperialistas na literatura especializada

O papel dos Estados Unidos na Lava Jato tem sido amplamente reconhecido por estudiosos brasileiros (embora não igualmente em todas as disciplinas das ciências sociais), muitos dos quais não hesitaram em chamar os Estados Unidos por seu papel no fomento da crise econômica e institucional do país, iniciada em meados da década de 2010. Uma onda recente de trabalhos buscou destacar conexões institucionais e ideológicas, parcerias formais e colaborações informais entre figuras centrais da Lava Jato e instituições americanas (e também suíças).

Alguns trabalhos argumentam que a luta dos Estados Unidos contra a corrupção na América Latina assumiu um caráter neocolonial na medida em que o combate à corrupção passou a ser usado como uma ferramenta conveniente para neutralizar concorrentes que ameaçavam a hegemonia norte-americana na região (Warde, 2018: 107: Souza, 2020). Outros destacaram o elemento geopolítico dessas ações, argumentando que as afinidades ideológicas e as parcerias de trabalho da Lava Jato e do governo norte-americano indicam como novas iterações do imperialismo norte-americano buscaram reavivar a agenda neoliberal no contexto pós-Maré Rosa (Gloeckner, 2020; Martins, Martins e Valim, 2019; e Proner, 2021).

Mas enquanto os estudiosos brasileiros fazem perguntas pontuais sobre o papel dos EUA na Lava Jato e suas consequências políticas, os estudiosos americanos permaneceram em grande parte em silêncio. Alguns juristas elogiaram efusivamente a Lava Jato; outros estudiosos foram cautelosamente críticos, e ainda outros, particularmente cientistas sociais, condenaram veementemente o longo golpe do Brasil e mobilizaram a resistência internacional. O que todos eles têm em comum é o silêncio sobre o papel dos EUA.

Isso é especialmente desconcertante uma vez que, desde a década de 1960, passando pelo golpe chileno e pelas guerras centro-americanas dos anos 1980, estudiosos latino-americanistas têm sido críticos veementes da intromissão dos EUA. Se não podíamos nos calar diante do apoio da CIA ao golpe brasileiro de 1964, do fomento de um golpe de Nixon no Chile e do armamento de esquadrões da morte de Reagan na América Central, por que permanecemos calados enquanto o Departamento de Justiça treinava autoridades brasileiras em estratégias anticorrupção para desacreditar um governo de esquerda que desafiava os Estados Unidos?

Preocupantemente, a maioria dos estudiosos norte-americanos que admitiram o envolvimento dos EUA foram os que o aprovavam, principalmente entre juristas. São pesquisadores que, em sua maioria, não falam português, supõem que o Brasil padece de uma “cultura inata de corrupção” (Tobolowsky, 2016: 385) cujo remédio está em emular o Norte Global, sobretudo os Estados Unidos, que um deles chama de “escoteiro” de “mentalidade ética” que eliminou a corrupção em larga escala há um século (Campbell, 2013: 248–249). Para tais analistas, qualquer possível mão dos EUA na Lava Jato é positiva, indicando que os brasileiros estão aprendendo a “construir um sistema que agora existe nos EUA e se mostrou central para a fiscalização anticorrupção” (Spalding, 2017: 209) e se colocando “em conformidade com os padrões internacionais” (Richard, 2014: 362). Imperialismo? Como é imperialista ajudar uma criança necessitada? Assim, tais juristas ´torcedores´ acabariam por desempenhar um papel legitimador da Lava Jato, chegando mesmo a converter a figura de Moro em celebridade internacional. Por exemplo, Matthew Stephenson, da Harvard Law, passou anos torcendo pela Lava Jato, sem dúvida influenciado por sua amizade com seu procurador-chefe. Sua admiração mal foi abalada pelas revelações do Intercept, que ele classificou como exageros “frívolos” sem evidências de “ação acusatória politicamente motivada” (2019).

Não é surpreendente que os juristas, com seu conhecimento irregular do Brasil e aceitação inquestionável dos Estados Unidos como um modelo global, não tenham visto o envolvimento dos EUA como um problema. Mais difícil de explicar é o silêncio dos estudiosos das ciências humanas e sociais. Apesar da fundação dos estudos latino-americanos nos Estados Unidos como uma ferramenta para o avanço da política norte-americana na região, desde a década de 1960 os latino-americanistas, muitas vezes influenciados por colegas marxistas e anti-imperialistas na América Latina, emergiram como opositores contundentes da intromissão norte-americana (Berger, 1995) – pelo menso até recentemente.

No início, isso se devia à falta de evidências diretas do envolvimento dos EUA; na verdade, dois de nós afirmamos em 2016 que não havia evidências clara do envolvimento dos EUA no golpe parlamentar contra Dilma (Pitts et al., 2016). Mas mesmo quando surgiram evidências de que a Lava Jato era inerentemente tendenciosa contra o PT e que seus esforços foram ativamente apoiados pelos Estados Unidos, muitos estudiosos continuaram a permanecer em silêncio. Mesmo um relatório encomendado pela Associação de Estudos Latino-Americanos, produzido por um painel de estudiosos americanos, europeus e brasileiros condenou veementemente o golpe, mas não indicava o envolvimento dos EUA (Chalhoub et al., 2017). Da mesma forma, a importante Rede dos EUA pela Democracia no Brasil (USNDB) e o Washington Brazil Office (WBO), liderados por alguns dos mais proeminentes e bem-intencionados estudiosos sobre o Brasil nos EUA, concentraram esforços públicos nos efeitos paralisantes que o golpe, a guinada neoliberal de Temer e Bolsonaro tiveram sobre a democracia brasileira. Nos bastidores, a USNDB e a WBO tomaram medidas chave para destacar o envolvimento dos EUA, principalmente trabalhando com o congressista Hank Johnson nas duas cartas do Congresso ao Departamento de Justiça. Mas na área em que eles estavam talvez mais bem posicionados para causar impacto – o papel dos Estados Unidos em marginalizar a esquerda e o PT do cenário político brasileiro – não foram tão ativos.6

Motivações para o envolvimento dos EUA

É preocupante que poucos estudiosos tenham levado a sério as evidências do envolvimento dos EUA no longo golpe do Brasil. De fato, depois de mais de um século de amplo apoio dos EUA à derrubada de governos que ameaçam os interesses dos EUA, qualquer transferência não democrática de poder da esquerda para a direita na América Latina deveria levantar imediatamente a questão do envolvimento dos EUA. Os precedentes são abundantes e claros. Além disso, durante as primeiras décadas deste século, grande parte da América Latina estava passando pela chamada Maré Rosa e evitando as políticas neoliberais lideradas pelos Estados Unidos. Esse período também foi caracterizado por golpes contra governos progressistas para os quais o apoio dos Estados Unidos foi bem documentado, como os da Venezuela em 2002, Honduras em 2009 e, provavelmente, também da Bolívia em 2019. No entanto, no caso brasileiro, poucos estudiosos norte-americanos investigaram as abundantes conexões.

Consideramos nessa seção algumas possíveis razões econômicas, geoestratégicas, e mesmo de natureza pessoal, para o envolvimento dos EUA no Brasil, conforme documentado no registro público. Observamos que, para um amálgama de interesses e instituições tão extensos e emaranhados como o Estado norte-americano, a atribuição de um motivo singular raramente é possível. Já discutimos o paternalismo que provavelmente forneceu motivação ideológica a alguns dos estrangeiros envolvidos com a Lava Jato e aos estudiosos norte-americanos que a promoveram. E, a seguir, apontamos alguns outros fatores que podem ter desempenhado um papel.

Para a equipe de defesa de Lula, foi uma “coleção de interesses geopolíticos e pessoais dos EUA” que levou os Estados Unidos a colaborarem com o processo contra o PT (Moreira, 2020). Essa estratégia começou a se formar em torno da descoberta de enormes jazidas de petróleo offshore no Brasil, em 2006. Como observou a advogada de defesa de Lula, Valeska Martins, o primeiro passo envolveu a espionagem norte-americana à Petrobras, a Dilma e a membros de seu governo, como revelado nos vazamentos de Snowden (Moreira, 2020). De fato, já em 2016, muito antes de a Operação Spoofing ter tornado inequívoco que a Lava Jato serviu a fins políticos com o apoio dos Estados Unidos, o jornalista brasileiro Luis Nassif (2016) traçou algumas dessas conexões, observando que as ações da Lava Jato sugeriam amplo conhecimento sobre supostos delitos da Petrobras e que os vazamentos de Snowden haviam mostrado que os Estados Unidos tinham interesses na Petrobras.

Da mesma forma, o ex-embaixador dos EUA Thomas Shannon descreveu o desenvolvimento da Odebrecht como “parte do projeto de poder do PT e da esquerda latino-americana” e admitiu que o Departamento de Estado tinha preocupações com o projeto de integração econômica do Brasil na América do Sul (Estrada e Bourcier, 2021). E na análise de Guido Mantega, ministro da Fazenda no governo Dilma, seu impeachment foi motivado pelas medidas de seu governo que reduziram as margens de lucro dos grandes bancos. Entre 2011 e 2013, o Brasil começou a tributar o mercado de derivativos, permitiu que bancos públicos reduzissem as taxas de juros e montou uma campanha contra as tarifas bancárias. Isso afetou os lucros financeiros, gerando uma “briga com cachorro grande”, como disse Mantega (Brasil Wire, 2021). Tomadas em conjunto, essas análises sugerem que o capital internacional tinha interesse em rechaçar as políticas redistributivas do PT, o desenvolvimento industrial interno e a integração regional.

Não surpreende que a aplicação anticorrupção possa servir aos interesses corporativos e de política externa dos EUA. Em 2014, a procuradora-geral adjunta Leslie Caldwell observou: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade internacional, mas sim uma ação de execução necessária para proteger nossos próprios interesses de segurança nacional e a capacidade de nossas empresas americanas de competir globalmente” (Estrada e Bourcier, 2021). Da mesma forma, em 2017, em um documento que define a política de segurança nacional dos EUA com o objetivo de treinar forças de operações especiais para guerras não convencionais do futuro, o Pentágono admitiu que a luta contra a corrupção poderia servir para desestabilizar “concorrentes” ou “inimigos” dos EUA (Fiori e Nozaki, 2019).

Como observou Perry Anderson (2019: Kindle 925 e 929), o ministro das Relações Exteriores de Lula, Celso Amorim, liderou uma “frente de Estados mais pobres para frustrar as tentativas euro-americanas de arranjos de ‘livre comércio’ – livres para os Estados Unidos e a UE – por meio da OMC em Cancún” e “Washington e Bruxelas ainda não conseguiram, oito anos depois, impor sua vontade ao mundo menos desenvolvido na abortada Rodada Doha; o crédito deve ir primeiro para o Brasil.” Além disso, o governo Lula reconheceu a Palestina como Estado, desafiou o bloqueio dos EUA ao Irã, estreitou laços com Rússia e China e anulou um acordo para o controle americano da base de lançamento de satélites de Alcântara, no Brasil. Tudo isso foi revertido sob Temer e Bolsonaro, que assinaram um acordo devolvendo o controle de Alcântara aos Estados Unidos em 2019 (Mitchell, 2020). No mesmo sentido, um ex-funcionário do Departamento de Justiça que supervisionou a América Latina afirmou: “Se acrescentarmos a tudo isso uma relação pessoal bastante ruim entre o presidente dos EUA, Barack Obama, e Lula, e um aparato petista que ainda desconfia de seu vizinho norte-americano, podemos dizer que tínhamos trabalho a fazer para corrigir a situação” (Estrada e Bourcier, 2021).

Obama chegou mesmo a atacar Lula em seu livro de memórias de 2020, alegando que Lula “supostamente tinha os escrúpulos de um chefe de Tammany Hall, e rumores giravam sobre compadrio do governo, acordos amorosos e propinas que chegavam a bilhões” (Obama, 2020: 337). Mas enquanto Obama se preparava para deixar o cargo em 2016, seu Departamento de Justiça estava trabalhando em estreita colaboração com a Lava Jato para garantir a queda de uma esquerda brasileira mais bem-sucedida eleitoralmente do que os esquerdistas dos EUA poderiam sonhar, abrindo caminho para a eleição de Bolsonaro.

Os Estados Unidos tinham, pois, motivações abundantes para querer o PT fora, juntamente com a retórica nacionalista e integracionista do partido que desafiava a hegemonia norte-americana na América Latina e além. Mas enfrentou o mesmo problema que já havia encontrado na Venezuela: como remover um governo que contava com amplo apoio popular?

A resposta foi corroer esse apoio por meio de investigações anticorrupção que manchariam a imagem pública do PT e desfeririam um golpe quase mortal em algumas das maiores corporações brasileiras. Isso não é mera conjectura ou delírio de estudiosos de esquerda culpando os Estados Unidos por todos os problemas do mundo; em vez disso, na última década, surgiram evidências convincentes que demonstram claramente que o governo dos EUA, particularmente o Departamento de Justiça, sob Obama e Trump, desempenhou um papel fundamental no apoio à caça às bruxas politicamente motivada da Lava Jato contra o PT.

Conclusões

Concluímos reiterando um elemento central das conclusões de nosso artigo: as táticas de lawfare usadas contra Dilma e Lula se assemelharam em muitos aspectos à desestabilização do início dos anos 1960 que culminou no golpe militar de 1964. Em última análise, no entanto, as considerações éticas envolvidas não são facilmente resolvidas em termos de política ou fontes. Como latino-americanistas – não apenas acadêmicos, mas americanos que amam a região e a veem não como um problema a ser resolvido, mas como um modelo a ser emulado – como deveríamos nos posicionar frente a tais questões?

Ao contrário dos estudiosos de outras regiões cobertas por estudos de área – por exemplo, África, Europa Oriental ou Leste e Sudeste Asiático – não temos outros impérios para culpar pelos problemas dos séculos XX e XXI de nossa região. Nem o Reino Unido, nem a França, a Rússia, a China, nem mesmo a Espanha ou Portugal foram responsáveis por repetidas intromissões, golpes e invasões diretas na América Latina: nosso próprio país foi e ainda é. Os fuzileiros navais podem não aparecer mais nas praias para derrubar um presidente inconveniente, a CIA pode não armar novas gerações de insurgentes, mas a intromissão do nosso governo não é menos real hoje.

A área de estudos latino-americanos foi fundada nos EUA para ajudar a manter outros impérios fora do “quintal” dos Estados Unidos, especialmente durante a Guerra Fria. Décadas de financiamento governamental e corporativo buscaram garantir que nosso campo permanecesse a serviço dos projetos imperiais dos EUA. No entanto, a partir da década de meados dos anos 60 e continuando através do golpe chileno, das guerras centro-americanas e do Consenso de Washington, nós, latino-americanistas, emergimos como os principais críticos acadêmicos do projeto imperialista de nosso país. Os Estados Unidos há muito usam invasões, insurgências e bloqueios econômicos para promover seus interesses na América Latina. Hoje, adicionou a ferramenta de combate à corrupção ao seu arsenal.

Escrevemos este artigo para demonstrar as muitas continuidades entre as recentes ações imperiais norte-americanas no Brasil (e em outras partes) com as ações imperiais mais conhecidas dos Estados Unidos na América Latina do século XX. Mas também o oferecemos como um desafio aos nossos companheiros latino-americanistas nos Estados Unidos. Como os estudiosos que escrevem sobre o chamado “quintal” dos EUA (ou sua “varanda”, como disse o presidente Joseph Biden) (Casa Branca, 2022), dentro da casa tais metáforas também se aplicam, e temos, assim, a responsabilidade de examinar criticamente o papel muitas vezes encoberto e recorrentemente negado do governo norte-americano na região.

*Brian Mier é escritor e geógrafo. Autor de Os Megaeventos Esportivos na Cidade do Rio de Janeiro e o Direito à Cidade (CEPR/Ford: Rio. 2016).

*Bryan Pitts é historiador e professor da Universidade da Califórnia (UCLA), autor, entre outros livros, de Until the Storm Passes: Politicians, Democracy, and the Demise of Brazil’s Military Dictatorship (University of California Press ). [https://amzn.to/4b62W6I]

*Kathy Swart é professora do Pierce College (Washington).

*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).

*Sean T. Mitchell é professor associado de antropologia e diretor de Estudos sobre Paz e Conflitos na Universidade Rutgers, Newark. É autor de, entre outros, de Constellations of Inequality: Space, Race and Utopia in Brazil (Chicago, 2017). [https://amzn.to/44zXGpx]

Publicado originalmente no site da Fundação Perseu Abramo.

Notas

1. Corrupção não foi, de fato, a justificativa dada para o impeachment de Dilma, já que esse foi articulado com base em supostos crimes contábeis. Contudo, o apoio midiático espetacularizado ao processo ajudou em muito a criar apoio popular para o mesmo.

2. A pedido de Kathy Swart, o edito da enciclopédia revisou o verbete em março de 2017.

3. O FCPA e a Convenção Anti-Suborno permitiram o Departamento de Justiça e a Comissão de Valores Mobiliários a agir em qualquer país participante do tratado desde que autoridades locais assim o permitam.

4. Brian Mier traduziu para o inglês os relatórios diários do acampamento Lula Livre até a soltura do ex-presidente.

5. É estranho e relevante que o trabalho de Greenwald sobre Delgatti não traz nenhuma menção do papel dos EUA (Mitchell, 2022).

6. Os erros da esquerda norte-americana em reconhecer o Longo Golpe foram documentados por Mier, Mitchell, and Pitts (2018), em artigo criticando Jacobin por suas posições anti-petistas.

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Veja neste link todos artigos de

Policiais ameaçam de morte e espancam jovem durante abordagem em São Paulo (assista)

Intolerância, violência e morte

É o que o futuro nos promete: um país nas mãos dos interesses privados, educação desprovida de cultura e ética, um ermo incivilizado e tomado pelo atraso. O Brasil que Bolsonaro sonhou deixar para seus seguidores...

Derrite: o homem e seu passado

A desconhecida história de Guilherme Derrite, o Secretário de Segurança de Tarcísio. Texto de João Batista Jr (Piauí) 


Na noite do dia 9 de novembro de 2011, assim que o tiroteio acabou, um jovem de 15 anos correu até a casa assaltada. Houve disparos para todos os lados e o adolescente estava apreensivo. Temia que seu irmão fosse um dos assaltantes. Ao chegar ao local, ouviu a seguinte notícia sobre o destino de seu irmão. “Se ele for trabalhador, pode ir para a sua casa que ele está lá. Se não for, pode ir pro IML”, disse um PM. O adolescente correu para o IML. Ficou duas semanas sem dormir, abalado pela visão do cadáver do irmão, que estava coberto de sangue e de olhos abertos. “Parecia que ele estava assustado”, diz. Marcelo Barbosa Soares, de 17 anos, levara dois tiros durante o assalto. Morreu de “hemorragia interna traumática aguda” (continue a leitura)

O caso ocorreu no Jardim Arpoador, bairro paulistano quase na divisa com Osasco. Os três assaltantes foram mortos. Na soma, levaram nove tiros. O policial que mandou o rapaz de 15 anos ao IML era um tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Chamava-se Guilherme Muraro Derrite. Tinha 27 anos, estava no segundo ano de trabalho na Rota, a tropa de elite da PM paulista, e gostava de dizer que sua missão era “tirar vagabundo de circulação”. Ficou quase doze anos na PM, entrou para a reserva como capitão, elegeu-se e reelegeu-se deputado federal e foi vice-líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara. Hoje, é secretário da Segurança Pública do governador Tarcísio de Freitas. É o primeiro policial militar tão jovem e com patente tão baixa a assumir o cargo.

Também é o primeiro a ter criticado colegas de farda que mataram menos de três pessoas em cinco anos de serviço. “É vergonhoso”, disse ele, em áudio revelado pelo site Ponte Jornalismo. Mas Derrite, ele mesmo, nunca falou quantos matou. Em 2021, numa entrevista, comentou que participou de cinco intervenções nas quais foi o responsável por disparar os tiros que mataram suspeitos. Em 2023, em outra entrevista, já no cargo de secretário de Segurança, se disse arrependido por ter criticado os colegas menos letais. A piauí consultou sua certidão criminal, apresentada ao Tribunal Superior Eleitoral quando concorreu a deputado, pegou o número de cada um dos seis inquéritos em que foi investigado e pediu o desarquivamento de todos. Com isso, descobriu que – oficialmente – Derrite tomou parte de intervenções que somaram dez homicídios. 

Os homicídios ocorreram num período de três anos e nove meses de patrulhamento ostensivo, entre fevereiro de 2008 e novembro de 2011, época em que Derrite integrou o 14º Batalhão e, depois, a Rota. Não significa, frise-se, que Derrite tenha matado as dez pessoas, pois os inquéritos nem sempre apontam o autor do disparo fatal, mas que participou de ações policiais que resultaram nesse saldo de mortos. É uma média alta: um morto a cada quatro meses e meio. Nos documentos, chama a atenção como a dinâmica dos homicídios se repete, com pequenas variações. Em todos os casos, as vítimas atiram contra os policiais, mas nunca acertam. Em todos os casos, são atingidas em órgãos vitais, como coração ou pulmão. Em todos os casos, são homens e já tinham, à exceção de uma vítima cujo histórico policial não foi confirmado, ficha por roubo ou uso de drogas, ou então passaram pela Fundação Casa, que abriga jovens que cometeram alguma infração. E em raríssimos casos há testemunhas civis dos fatos.

Considerando que na vida real confrontos entre policiais e bandidos nunca se passam da mesma forma, a repetição do padrão é um mau indicador. As cenas sugerem que nem sempre houve confronto, dada a improbabilidade de que os criminosos tenham um índice de 100% de erro nos disparos. Também sugerem que quase nunca houve tiros de advertência, pois os disparos dos policiais acertaram regiões vitais. Eis a ficha do secretário de Segurança:

10 DE FEVEREIRO DE 2008, DOMINGO_Derrite, então tenente do 14º Batalhão, foi chamado pelo rádio para atender a uma ocorrência no km 15 do Rodoanel, o anel rodoviário que circunda a Grande São Paulo. Um homem fora flagrado tentando assaltar um veículo no acostamento da rodovia. Houve um tiroteio e o ladrão embrenhou-se no matagal à beira da estrada. Derrite chegou ao local e, junto com um soldado, meteu-se na trilha atrás do assaltante. No inquérito, Derrite disse que o homem começou a atirar na sua direção, e ele revidou. Colocado numa viatura, o homem foi levado a um pronto-socorro em Osasco, onde foi identificado: Leandro da Silva, 24 anos. Um disparo lesionou coração e pulmão. Outro perfurou o estômago e o fígado, e alojou-se na lombar. Segundo a ocorrência, o assaltante tinha passagem pela polícia por furto.  

Em um podcast, gravado em maio de 2021, Derrite narra a ocorrência “sinistra” com as devidas onomatopeias: “Eu só lembro dessa cena, dos tiros, pá, pá, pá. Era terra subindo, mano, a metralhadora sempre na rajada e eu tive que revidar, né, mano, sobreviver. Prá, rá, rá, rá, rá.” Na ocorrência, não há menção a qualquer metralhadora, mas a duas pistolas Taurus calibre .40 e dois revólveres calibre .38.

O Ministério Público entendeu que Derrite e seus colegas agiram em legítima defesa “sem vislumbre de excesso de conduta”.

10 DE AGOSTO DE 2009, SEGUNDA-FEIRA_A bordo de um automóvel roubado havia dois dias, Danilo Messias Rebollo, de 20 anos, junto com um amigo, avistou a polícia em Osasco. Arrancou o carro, foi perseguido, bateu num barranco – e desceu do veículo atirando contra os policiais. Levou três tiros e morreu ali mesmo. Do banco de trás, saiu o amigo – também atirando – e refugiou-se num matagal, segundo descrição posterior dos policiais. Nesse momento, de acordo com a versão oficial, Derrite entrou no mato, e o jovem começou a disparar. Não acertou nenhum tiro, mas foi alvejado com quatro. Era José Carlos Pereira Barbosa, também de 20 anos. Os dois tinham passagem pela Fundação Casa. 

O Ministério Público, com base na versão dos PMs, concluiu que havia “claríssimos sinais de que os policiais agiram amparados na excludente do estrito cumprimento do dever legal”.

(As mães dos dois jovens mortos contaram outra história. Dulcineia Rebollo, mãe de Danilo, descobriu que havia uma testemunha do tiroteio e compartilhou a informação com Vera Aparecida Pereira, mãe de José Carlos. A testemunha disse que os dois foram executados, mas nunca foi ouvida no inquérito. Chamava-se Rafael Rodrigues da Silva. Três anos depois, em 2012, ele foi assassinado a tiros dentro do carro que dirigia em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Os disparos foram feitos contra o vidro do motorista e mataram também o ocupante do banco do passageiro.)

14 DE MAIO DE 2010, SEXTA-FEIRA_Depois de receber uma denúncia de tráfico de drogas na favela do Sambaiatuba, em São Vicente, na Baixada Santista, Derrite, que já trocara o 14º Batalhão pela Rota, foi até o endereço suspeito. Segundo o relatório da PM, ele e sua equipe foram recebidos a bala por dois homens. Os atiradores não acertaram ninguém, mas um deles foi alvejado duas vezes. Um dos tiros atingiu o lado esquerdo do tórax, causando ferimentos fatais no coração e no pulmão. O segundo atirador fugiu. O morto era Leandro Sampaio Fernandes, de 31 anos. Não há informação sobre sua ficha policial.

Um dos soldados sob comando de Derrite descreveu assim o que aconteceu: “Estava de serviço […] pelo interior da favela do Sambaiatuba onde, segundo a denúncia, eram comercializadas drogas tipo maconha e cocaína e os traficantes do local portavam armas, inclusive de grosso calibre. A equipe deparou com dois indivíduos saindo do interior de uma viela, ambos de arma em punho e que um deles passou a efetuar disparos de arma de fogo contra os policiais.”

Um segundo soldado, também sob comando de Derrite, depôs em separado e descreveu a cena com as mesmíssimas palavras: “Estava de serviço […] pelo interior da favela do Sambaiatuba onde, segundo a denúncia, eram comercializadas drogas tipo maconha e cocaína e os traficantes do local portavam armas, inclusive de grosso calibre. A equipe deparou com dois indivíduos saindo do interior de uma viela, ambos de arma em punho e que um deles passou a efetuar disparos de arma de fogo contra os policiais.”

A prática do “copia e cola” aparece em pelo menos cinco depoimentos, inclusive no do próprio Derrite, e a frase original foi extraída do relatório inicial da ocorrência. O oficial encarregado do caso achou que os policiais se comportaram corretamente e reforçou sua conclusão com uma observação: “Não há, até o momento, comoção popular que deprecie a atuação dos policiais militares.”

27 DE JULHO DE 2010, TERÇA-FEIRA_Numa ronda noturna da Rota, Derrite e três soldados disseram ter se deparado com um Kadett preto usado em um assalto a uma loja de informática naquele mesmo dia. Havia dois homens no carro. Eles tentaram fugir, bateram na parede de um restaurante e desceram do veículo atirando. Não acertaram nem a viatura. O motorista, Claudionor da Silva, de 24 anos, levou três tiros. O outro, Expedito Henrique Pinheiro, da mesma idade, levou dois. Todos atingiram órgãos vitais, incluindo o coração. Os dois foram reconhecidos no IML pelo dono da loja. O motorista passou pela Fundação Casa. Expedito Pinheiro, segundo o delegado do caso, “seria pessoa procurada pela Justiça”.

Nunca ficou esclarecido por que os assaltantes usaram um carro que estava no nome da mulher de um deles, sem recorrer a uma placa clonada. Nem por que, depois do assalto, ficaram rodando com o mesmo carro no bairro onde haviam praticado o crime.

O Ministério Público entendeu que “as condutas praticadas pelos policiais militares encontram-se acobertadas pela legítima defesa, causa de excludente de ilicitude […], obstando o ingresso de ação penal”.

20 DE MAIO DE 2011, SEXTA-FEIRA_Durante um patrulhamento de rotina na Zona Leste da capital paulista, Derrite e colegas avistaram um carro roubado havia poucas horas. O motorista Michel Deivid da Cruz não obedeceu à ordem de parar, bateu em outro veículo e desceu atirando, sem acertar em nenhum alvo. Enquanto isso, seus dois comparsas escaparam a pé. Cruz levou três tiros, com ferimentos no coração, no pulmão direito, nas alças intestinais e na lombar. Sua ficha incluía seis atos infracionais e acusações de corrupção de menores, ameaça e lesão corporal. Tinha 24 anos.

No Inquérito Policial Militar (IPM), o oficial concluiu pela “existência de excludentes de ilicitude na ação dos policiais militares, uma vez que repeliram injusta agressão efetuada pelos meliantes.” Depois desse episódio, Derrite foi obrigado a frequentar aulas sobre direitos humanos e consultar-se com um terapeuta do Programa de Acompanhamento a Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco, entre 24 de maio e 19 de junho.

9 DE NOVEMBRO DE 2011, QUARTA-FEIRA_É o caso que abre esta reportagem. Acionado por telefone, Derrite e equipe foram até a casa no Jardim Arpoador que estava sendo assaltada por três jovens. O dono do imóvel, rendido no portão, e outras quatro pessoas viraram reféns. Quando a polícia chegou, os ladrões soltaram todos e tentaram fugir. O dono da casa indicou a rota de fuga, pelo telhado de uma edícula nos fundos. Nove policiais chegaram ao local, seis entraram na casa, Derrite entre eles. Disseram que Nevito Ferreira dos Santos, de 17 anos, disparou contra eles. No revide, o assaltante levou três tiros. Em seguida, segundo os policiais, Marcelo Barbosa Soares, também de 17 anos, não obedeceu à ordem de soltar a pistola e atirou. Levou dois tiros. Josivan Soares dos Santos, de 20 anos, disparou quatro vezes contra os policiais. Não acertou nenhuma vez e levou quatro tiros. Os três, de acordo com os laudos necroscópicos, morreram de “hemorragia interna traumática aguda”. Todos tinham histórico de furto ou roubo.

O promotor Rogério Leão Zagallo pediu o arquivamento do inquérito sob o argumento de que “as vítimas morreram porque atiraram contra os policiais militares”. E arrematou: “Morreram de forma justa. Afinal de contas, são bandidos.”

Guilherme Derrite não foi denunciado por nenhum dos homicídios.

Numa noite de maio de 2012, um pequeno comboio de viaturas da PM de São Paulo se dirigiu para o estacionamento da Barracuda, uma casa noturna na Zona Leste de São Paulo. Ali, funcionava um lava-rápido, onde integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), a organização criminosa que se espalhou pelo país, fariam uma reunião. O encontro destinava-se a planejar o resgate de um criminoso que seria transferido de São Paulo para uma prisão em Presidente Venceslau, a 215 km da capital. A Rota, sabendo do plano, montou uma estratégia para prender os bandidos durante a reunião. Derrite pediu para comandar a operação. Foi uma catástrofe.

Depois de um intenso tiroteio, o saldo foi macabro: seis homens mortos e três policiais presos, sob a suspeita de torturar e matar um homem que, escondido sob um caminhão, viu e ouviu tudo o que aconteceu. Segundo a versão oficial, a testemunha, Anderson Minhano, de 31 anos, foi colocada numa viatura para ser levada ao hospital. No caminho, a viatura parou para que o cabo Levi Cosme da Silva Júnior aliviasse “as câimbras e as pernas dormentes” – e, ali, no km 4 da Rodovia Ayrton Senna, com a viatura no acostamento, a testemunha “caiu no chão”. Ninguém sabe se Minhano, que pertencia ao PCC, chegou vivo ou morto ao hospital. Tinha quatro tiros no peito.

A Testemunha Alpha – assim conhecida porque entrou no programa de proteção e manteve o anonimato – conta outra história. De sua janela, Alpha viu o Minhano ser torturado. Ligou para o 190 e fez uma denúncia. O telefonema foi gravado. No início da conversa, Alpha disse que “o cara tava vivo, viu?” e, em seguida, relatou que os policiais pisavam sobre sua cabeça e, depois, colocaram o corpo na viatura. No telefonema, Alpha já intuía que o homem fora assassinado. “Só Deus na vida desse homem, viu, pra sobreviver pra contar a história”, disse.

Além do cabo Cosme, havia outros dois policiais na viatura: o sargento Carlos Aurélio Nogueira e o soldado Marcos Aparecido da Silva. Os três foram presos para responder à acusação de tortura e assassinato. Um mês depois, foram soltos e, mais tarde, acabaram absolvidos. Durante a prisão dos três, Derrite não participou da vaquinha que os militares fazem quando algum colega é detido – e, assim, impedido de fazer os bicos que complementam a renda familiar. O sargento Nogueira, por exemplo, prestava segurança para o publicitário e apresentador Roberto Justus. “Além de não pagar a vaquinha, Derrite viajou com a família para a Disney”, diz Igor Andrij, ex-soldado da Rota.

Em seu depoimento durante a investigação do episódio, Derrite contou que a operação envolveu 24 militares. Disse que ele próprio fez apenas “três disparos”, mas não informou se atingiu ou matou alguém. Na mesma noite da carnificina, Derrite ficou recolhido dentro de uma sala na Corregedoria da PM para que ele não se comunicasse com os militares acusados de torturar e matar Minhano, nem acompanhasse os depoimentos. Só foi autorizado a sair da sala ao meio-dia do dia seguinte.

O inquérito investigou Derrite, mas não consta da certidão criminal que ele entregou ao Tribunal Superior Eleitoral quando do registro de sua candidatura a deputado. Por esse motivo, o Caso Barracuda não está na contabilidade dos dez homicídios – se estivesse, só aqui, a conta total dos homicídios em intervenções das quais Derrite participou subiria para dezesseis. No entanto, o Caso Barracuda entrou para a crônica policial como exemplo de um completo fracasso, do ponto de vista militar e dos direitos humanos, e ajudou a encerrar a carreira de Derrite. Ele foi afastado do patrulhamento e, menos de dois meses depois, foi convidado a deixar a Rota. Seus superiores entenderam que sua letalidade era alta demais.

Em entrevista a um canal do YouTube em 2021, o próprio Derrite falou sobre a razão de sua saída da Rota. “Porque eu matei muito ladrão. A real é essa, simples. Pá! Tive muita ocorrência de troca de tiro, eu ia para cima, entendeu? Quem vai para cima, está sujeito. Troquei tiro várias vezes, e uma atrás da outra. Acabou incomodando, não sei quem, mas veio a ordem de cima para baixo, questão política: ‘Tira o Derrite da Rota.’ E fui convidado a me retirar.”

Mas nem os dez homicídios oficiais, nem a catástrofe do Caso Barracuda surpreendem um criminoso que cumpre uma pena centenária na Penitenciária de Tremembé.

Entre junho e agosto de 2019, Wallace Oliveira Faria, condenado a 102 anos por cinco mortes e seis tentativas de homicídio, prestou dois depoimentos à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, no presídio de Tremembé. Fez denúncias gravíssimas. Confessou que fora matador de um grupo de extermínio que se chamava Eu Sou a Morte e disse que atuava com conhecimento e aval de um tenente chamado Guilherme Derrite.

Faria foi preso aos 23 anos e – considerando que na época de sua condenação ninguém ficava mais de trinta anos na prisão (hoje são quarenta) – ganhará a liberdade, em tese, quando tiver 53 anos, a menos que faça uma delação para reduzir a pena. É um criminoso confesso, executava seus alvos com tiros pelas costas, no rosto. Suas denúncias podem ter sido exageradas apenas para fazer um acordo de delação e, quem sabe, arrancar algum benefício. Ele mesmo escreveu à piauí: “Eu preciso de ajuda […] para tentar baixar a minha pena.[…] Já estou há quinze anos preso e não vou aguentar ficar mais quinze.”

Em seus depoimentos à Defensoria Pública, aos quais a piauí teve acesso, Faria contou que, entre 2001 e 2002 começou a trabalhar como entregador de uma pizzaria em Osasco, onde PMs do 14º Batalhão prestavam segurança privada. Nesse serviço, aproximou-se de alguns policiais e, em 2005, acabou admitido na PM como soldado temporário, uma função que deixou de existir. Deveria se limitar às tarefas administrativas, sem acesso a armas, nem direito de exercer o poder de polícia.

Faria, no entanto, ganhou autorização velada para extrapolar suas funções. “Embora eu não fosse policial, eu usava farda, portava arma da corporação e andava em viatura oficial”, disse. (Em carta à piauí, Faria anexou um punhado de fotos. Numa delas, está usando o uniforme de educação física dos soldados e cabos da PM, ao lado de uma viatura. Em outra, aparece na companhia de seis policiais. Todos, Faria inclusive, usam a farda da corporação, com capacete na cabeça, cinturão atravessando o peito e mosquetão nas mãos.) Em 2006, ano em que se encerrou seu período como soldado temporário, Faria passou a trabalhar exclusivamente para os policiais que faziam segurança privada. Nessa época, o grupo de extermínio Eu Sou a Morte entrou em ação, na esteira de uma onda de atentados promovidos pelo PCC.

De acordo com a denúncia de Faria, o grupo de extermínio era integrado por policiais de dois batalhões da PM em Osasco – o 42º e o 14º. No final de 2006, pouco depois do início das atividades do grupo de matadores, Derrite entrou para o 14º Batalhão, onde ficou até o fim de 2009. Quando chegou, tinha 21 anos e assumiu o Pelotão de Rádio Patrulha, um coletivo que faz policiamento preventivo e atende demandas pelo 190.

À Defensoria Pública, Faria disse que matou “umas vinte pessoas”. O grupo executava suspeitos de pequenos furtos para proteger os estabelecimentos comerciais aos quais dava segurança, mas também executava pessoas com antecedentes criminais e, sobretudo, dependentes de drogas. Faria descreveu o funcionamento das execuções. Disse que o grupo escolhia a vítima e voltava à companhia para colocar jaqueta preta, capuz ou touca e capacete. Depois, saíam com a moto particular de Faria, sem placa, ou com o carro de alguns deles, para localizar a vítima previamente escolhida. Feita a execução, o grupo voltava à companhia, Faria era liberado e os policiais, agora fardados e em viaturas, saíam para atender a ocorrência como se não soubessem de nada.

Faria confessou que, na maioria dos casos, ele próprio foi o autor dos disparos, mas disse que não agia sozinho. Citou o nome de 25 policiais militares, entre soldados, cabos, sargentos e o tenente Guilherme Derrite. “Tudo o que a gente ia fazer avisava o Derrite. Ele tinha comando total”, disse. Em outro trecho do depoimento, afirmou: “O tenente Derrite sabia desse meu ‘trabalho informal’ e dava apoio. Eu falava com frequência com ele pelo [meu] número 8258-xxxx no período de 2008 e 2009. Às vezes, eu ligava para o motorista dele.” (Como as operadoras de telefone não são obrigadas a guardar os dados depois de cinco anos, o registro das ligações pode estar perdido. A piauí confirmou que o número citado pertencia a Faria.)

Em outubro do ano passado, a piauí mandou uma carta perguntando se Faria mantinha as acusações dos depoimentos à Defensoria Pública. No dia 1º de novembro, ele enviou uma longa carta à revista em que manteve as denúncias. Em cartas subsequentes, deu detalhes sobre a suposta atuação de Derrite. “Ele e outros policiais, nos dias de serviço, levantavam o endereço de ladrões, traficantes, pontos de tráfico etc., e selecionavam as vítimas, passavam para eu e outros PMs que estavam de folga fazer as execuções. Depois, ele mesmo ia até o local das execuções colher alguma informação e, como sempre, alterar o local do crime para dificultar a perícia. Ele que era o líder, ordenava onde as viaturas tinham que ficar e, quando ia acontecer alguma execução, ele tirava as viaturas dos bairros para facilitar o serviço. Tudo era combinado antes.” E completou: “Os homicídios aconteciam só na noite em que o tenente Derrite era o comandante. […] Ele dava as ordens e organizava as execuções.”

Até prestar os depoimentos à Defensoria Pública, Faria mandou cartas para todas as autoridades possíveis revelando detalhes do grupo de extermínio, acusando Derrite e se oferecendo para fazer um acordo de delação. Mandou cartas para o Conselho Nacional do Ministério Público, para a Procuradoria-Geral da República, para o Supremo Tribunal Federal. A primeira carta-denúncia, enviada em setembro de 2018, quando Derrite era candidato a deputado pela primeira vez, chegou às mãos do delegado Francisco Pereira Lima. O delegado, que está lotado há mais de vinte anos na Delegacia de Homicídios de Osasco e foi o autor da prisão de Faria quase dez anos antes, mandou a carta-denúncia para o Ministério Público, que, por sua vez, ouviu Faria por vídeo.

Foi seu primeiro depoimento. A promotora de Osasco, Helena Bonilha de Toledo Leite, acompanhou. Ela rememora: “Eu pedi provas, mas ele não apresentou nada de significativo nesse sentido.” De fato, o depoimento de Faria foi tímido. Numa das cartas à piauí, ele explicou a razão. Para fazer a videoconferência, ele fora conduzido até o fórum de Taubaté, escoltado por policiais militares, que ficaram na porta, de onde talvez pudessem escutar o depoimento. “Não consegui falar nada. Tinha policiais na sala ouvindo.”

Mesmo assim, considerando a gravidade das acusações, a promotora Helena Leite acionou o Gaeco, o grupo do Ministério Público especializado no combate ao crime organizado, para avaliar a possibilidade de abrir uma investigação preliminar. O Gaeco achou que não havia elementos suficientemente fortes que justificassem uma apuração e entendeu que, decorrido tanto tempo dos acontecimentos, era “extremamente improvável” que encontrassem provas. Diante disso, o Gaeco não entrou no caso. Inconformado, Faria começou então a disparar cartas-denúncia até que foi ouvido pela Defensoria Pública.

Em dezembro de 2019, depois de colher os dois depoimentos de Faria, os defensores públicos fizeram um documento genérico, pedindo ao Ministério Público que abrisse negociações para uma delação. Disseram que, no acordo de colaboração, Faria pretendia “detalhar todos os crimes de que participou, apresentando provas que permitam a efetiva persecução de todos os autores”. Depois disso, os defensores enviaram um novo documento, com mais detalhes, mas a promotoria continuou achando bastante genérico.

“As provas nunca chegaram”, diz a promotora Helena Leite. “A palavra do denunciante não é suficiente. E não cabe ao Ministério Público correr atrás de provas para um eventual acordo de colaboração premiada que beneficiaria o preso. Isso é papel do advogado”, diz ela, frisando que, mediante qualquer avanço em termos de prova, a investigação será aberta. Faria não tem advogado particular e, estando preso, tampouco dispõe de meios para reunir provas. E denuncia: “Estão tentando colocar panos quentes. Estão tentando me calar, pois eles sabem que eu sou um arquivo vivo.”

A piauí ouviu seis autoridades que tiveram envolvimento com o caso do grupo de extermínio em Osasco. Todas pediram o anonimato, e nenhuma considerou que o relato de Faria traga incongruências gritantes – embora nenhuma das autoridades consultadas tenha qualquer informação objetiva sobre a suposta participação de Derrite no grupo de matadores. Desde 2007, circulam notícias sobre esse grupo. No dia 21 de setembro daquele ano, por exemplo, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem dizendo que a lista das pessoas assassinadas tinha “mais de 40 nomes”, que as “circunstâncias apontam a ação de um grupo de extermínio formado por policiais militares em Osasco” e que boa parte das vítimas tinham “antecedentes criminais, segundo testemunhas que afirmam ter ouvido ameaças dos próprios PMs”.

A mesma reportagem informava que os policiais suspeitos integravam o 14º e o 42º Batalhão da PM. Os crimes ocorreram num período que coincide com o tempo em que Derrite já trabalhava em operações de rua. A reportagem ainda dizia que os policiais agiam encapuzados e se intitulavam Eu Sou a Morte. (O nome do grupo, segundo Faria, veio de um episódio em que um sobrevivente declarou que o atirador, antes de disparar, perguntou: “Você conhece a morte?” E, sem esperar a resposta, o próprio atirador respondeu: “Eu sou a morte.”)

Procurado pela piauí, o secretário de Segurança Pública não quis dar entrevista e preferiu responder às perguntas por escrito. Em um e-mail, a reportagem perguntou se Derrite conhecia Wallace Faria; se sabia de sua tentativa de fazer uma delação premiada; se poderia informar sua escala de plantão no período em que trabalhou no 14º Batalhão em Osasco; se ouvira falar do grupo de extermínio Eu Sou a Morte e o que tinha a dizer sobre a acusação de que ele próprio comandava as ações dos matadores. A nota não responde às indagações e limita-se a dizer o seguinte: “O secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, lamenta que as acusações infundadas, colocadas a partir da denúncia de um criminoso que cumpre pena neste momento, tenham espaço.”

Em julho de 2022, os pais do soldado Patrick Bastos Reis se mudaram de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para a capital paulista. Queriam ficar mais perto do filho único, que estava feliz atuando na Rota, e do neto de 2 anos. O casal não se adaptou bem a São Paulo e, meses depois, se mudou para o interior do estado. “Eu estava assistindo televisão e recebi uma ligação de uma pessoa próxima da família me informando”, lembra Cláudia Reis, mãe do soldado. A informação era de que seu filho havia sido assassinado.

Patrick Bastos Reis, o soldado Reis, tinha 30 anos. Foi baleado entre o ombro e o braço, no Guarujá, litoral de São Paulo, onde a Rota fazia um patrulhamento, na noite de 27 de julho do ano passado. A bala atravessou o tórax e atingiu seus pulmões e a aorta ascendente. Morreu na unidade de saúde em que foi socorrido. Sua morte desencadeou a mais mortífera operação da PM paulista desde o massacre de 111 presos no presídio do Carandiru. Desde julho do ano passado até o fechamento desta edição, no fim de abril, outros três policiais – dois soldados e um cabo – haviam sido assassinados, e a PM havia realizado operações que resultaram numa conta assombrosa e, talvez, até subnotificada: 84 mortos.

Um dos soldados mortos, Samuel Wesley Cosmo, de 35 anos, foi baleado durante uma patrulha em Bom Retiro, em Santos. Morreu no hospital. O assassino fugiu. O mesmo soldado Cosmo vinha sendo investigado havia seis meses sob a suspeita de ter forjado um tiroteio para justificar o assassinato de um homem que vivia em situação de rua. Quando o Ministério Público finalmente apresentou a denúncia contra Cosmo (e outros dois colegas da Rota), o soldado já estava morto com um tiro no rosto. Era a nova rotina selvagem da Baixada Santista desde a morte do soldado Reis: mata-se hoje, morre-se amanhã.

Entre as 84 vítimas dos militares no litoral paulista, estão um deficiente visual (que teria mirado um fuzil nos policiais e foi morto em cima de uma cama), um homem paralítico (que teria disparado uma arma enquanto se sustentava sobre as muletas), um jovem destroçado (que levou oito tiros de fuzil nas costas) e uma mulher de 31 anos, mãe de seis filhos (que foi atingida na cabeça por uma bala perdida). Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, colheu histórias do massacre: “Teve corpo que foi retirado do mangue. Há suspeita de que pelo menos sete homens foram enterrados como indigentes.” Enquanto isso, PMs comemoravam as mortes no Instagram, enfeitando os posts com emojis de caixão. “A operação proporcionou mortes instagramáveis, de gente pobre, preta e vulnerável, que servem para muitos policiais postarem e ganharem seguidores e likes”, diz Cláudio Aparecido da Silva, ouvidor da polícia de São Paulo.

A vingança da PM começou na sexta-feira, dia seguinte à morte do soldado Reis. “No fim de semana, recebemos ligações de moradores sem entender o que estava acontecendo”, lembra Fernanda Balera, coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo. Na segunda-feira, representantes da Ouvidoria da Polícia e da própria Defensoria desceram para o litoral a fim de tomar pé da situação. Balera conta que, ao chegar no Guarujá, já soube que a revanche seria sangrenta. “Ouvi que seriam ao todo trinta pessoas mortas, uma para cada ano de vida do soldado Reis”, diz ela.

A maioria das vítimas que foram identificadas tinha histórico de envolvimento com tráfico de drogas e passagens pela polícia por pequenos furtos e roubos. Algumas viviam em barracos de palafitas nas favelas do litoral. Quase todas eram desempregadas ou se sustentavam fazendo bicos. A maioria, como sempre acontece nas matanças policiais, eram jovens e negros. Com base no perfil da maior parte das vítimas, Samira Bueno conclui: “É um devaneio o governo justificar as ações dizendo que as vítimas são integrantes do alto-comando de facção criminosa. Elas viviam em situação de miséria.”

Até hoje, a Secretaria de Segurança Pública mantém a versão de que a operação não era vingança contra a morte dos policiais, mas fazia parte de um plano prévio destinado a asfixiar a venda de drogas na região portuária, controlada pelo PCC. Depois de 84 mortos, a PM prendeu 2 mil pessoas, apreendeu 240 armas e quase 3,6 toneladas de drogas. Os especialistas dizem que o volume de droga apreendido até agora é de pouco mais de 5% do que o PCC despacha por ano pelo Porto de Santos. (Em paralelo a isso, o Gaeco, do Ministério Público, com trabalho de inteligência, desferiu um ataque duro contra o PCC ao desbaratar duas empresas de ônibus que faturavam mais de 800 milhões de reais e vinham sendo usadas pela organização criminosa para lavar dinheiro do tráfico de drogas. A PM apoiou a operação. Não precisou dar um único tiro.)

A operação no Guarujá também despertou suspeitas no campo das relações nebulosas. Conforme revelou o repórter Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo, o empresário José Vicente Santini, hoje assessor do governador, associou-se com seu irmão Nelson Santini numa empresa, a CampSeg, que presta serviços de segurança à linha férrea da Baixada Santista, região onde a matança aconteceu. Segundo mensagens de WhatsApp divulgadas pelo Estadão, a CampSeg acionava PMs para zelar pela segurança dos seus clientes. Vicente Santini, que deixou a CampSeg em 2019, tornou-se conhecido ao ser demitido (e depois recontratado) no governo Bolsonaro pelo uso de um avião da FAB para voar da Suíça à Índia. Seu irmão Nelson, ex-vereador em Campinas, continua na CampSeg. Ele fez a maior doação financeira individual para a campanha de reeleição de Derrite: 88 655 reais.

A fúria sangrenta da PM não trouxe consolo para a mãe do soldado Reis. Assim que soube da morte do filho, pediu a um comandante da Rota, cujo nome ela não quis identificar, que o enterro fosse em Santa Maria, onde fica o jazigo da família. O oficial negou o pedido, em razão de uma regra segundo a qual o corpo precisaria ficar pelo menos cinco anos enterrado no mausoléu da PM, no Cemitério do Araçá, em São Paulo. (A regra não existe, mas, abalada com a perda do filho, Cláudia não teve energia para pesquisar sobre o assunto.) Ouviu que um helicóptero da PM buscaria a família no interior para comparecer ao velório na capital. “Mas daí ninguém mais ligou. Eu peguei uma carona para não perder o enterro do meu filho.”

O sepultamento tornou-se um grande ato político, com a presença do governador Tarcísio de Freitas e do secretário Guilherme Derrite. Encerrada a cerimônia fúnebre, Cláudia diz que nunca mais teve contato com a PM. “O Derrite nunca se deu ao trabalho de me ligar”, lamenta ela. Depois que soube que a regra dos cinco anos era invenção, Cláudia começou a procurar um advogado para transferir os restos mortais do filho para Santa Maria. Ela diz que não tem sido informada sobre o andamento das investigações. “Fiquei sabendo pela imprensa que a bala que atingiu o meu filho não veio da arma apreendida pela polícia”, disse. De fato, um laudo comprovou que o disparo que matou o soldado Reis não saiu da pistola Taurus modelo PT 92 AF, apreendida pela polícia.

Quando a polícia informou que Erickson David da Silva, de 28 anos, apontado como autor do disparo que matou o soldado, havia se entregado à polícia, o governador Tarcísio comemorou a prisão do “sniper do tráfico”. Pode ter sido precipitação. Afinal, o exame residuográfico posterior não detectou a presença de pólvora nas mãos de Erickson da Silva, o que não é suficiente para descartá-lo como autor do disparo, mas deixa a suspeita de que depois de 84 mortes e 2 mil presos, é possível que o “sniper do tráfico” continue à solta. Apesar de ter se entregado, Silva nega ter atirado contra o soldado.

No dia 8 de março, num evento em comemoração ao Dia da Mulher, Tarcísio voltou a falar sobre a matança. Questionado sobre as denúncias de execução, abusos e falhas na investigação, Tarcísio começou defendendo as operações: “Sinceramente, temos muita tranquilidade com relação ao que está sendo feito.” Mais adiante, irritado com as cobranças, disse a frase que ficará colada à sua biografia: “Aí o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não estou nem aí.” A tropa aplaudiu.

O que estamos vivendo no Guarujá é lamentável, mas é o cenário que nós encontramos”, disse o secretário Guilherme Derrite em entrevista à Jovem Pan, ao comentar as ações no litoral paulista. A matança, pela dinâmica e pela dimensão, tornou-se um divisor de águas na violência policial. De lá para cá, as ações da PM ficaram mais truculentas e o uso das câmeras de segurança no uniforme passou a ser boicotado. Em 2019, a PM matou 697 pessoas. Em 2020, quando três batalhões ganharam as primeiras câmeras corporais, o número caiu para 662. Em 2021, o equipamento chegou a quinze batalhões, incluindo a Rota, e o número baixou para 442. Em 2022, com dezenas de batalhões usando câmeras, o índice de letalidade policial desabou: 260 mortes.

“A situação piorou neste ano com execuções sumárias, torturas e episódios de violência contra idosos e crianças”, afirma Bueno, a diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Os boletins de ocorrência deixaram de identificar se os policiais portavam câmeras ou o batalhão a que pertencem. A maior parte dos casos não teve perícia. Eu recebi um laudo necroscópico que sequer identificava quantos tiros a pessoa levou”, diz ela. Em um caso examinado pelos promotores, identificou-se que o policial havia ligado e desligado a câmera do uniforme mais de cinquenta vezes para consumir a bateria o mais rápido possível. Bueno prossegue: “No ano passado, a polícia dizia que as câmeras estavam descarregadas. Neste ano, eles não dão nenhuma explicação sobre a ausência das imagens.”

A piauí teve acesso a um apanhado de 28 boletins de ocorrência, lavrados entre julho do ano passado e março. Em apenas um, há informação de que os policiais estavam usando câmeras corporais. Os demais boletins nem mencionam o assunto ou, quando o fazem, é para dizer que ninguém estava equipado com o dispositivo.

O sinal de que a situação pode se manter – ou piorar – aconteceu no dia 21 de fevereiro, quando Derrite promoveu uma mudança radical no comando da PM: afastou 34 coronéis, sem aviso prévio. Eles ficaram sabendo da notícia pelo Diário Oficial. Entre os afastados, estão os coronéis José Alexander Freixo, número 2 da corporação, Alexandre César Prates, coordenador operacional da PM, e Edson Luís Simeira, corregedor da PM. No começo da matança no Guarujá, os três estavam de férias. Quando voltaram ao trabalho, se reuniram com o comandante-geral da corporação, Cássio Araújo de Freitas, para pedir moderação e apelar para que apenas policiais com câmeras nos uniformes participassem da operação. Os apelos foram ignorados.

Quando a primeira fase da matança se encerrou, ainda no ano passado, as investigações da PM empacaram. As Comissões de Mitigação de Riscos, que devem ser abertas cada vez que um policial se envolve em uma ação letal, foram protocolares. Todos os policiais seguiram suas atividades nas ruas, sem suspensão temporária. Os IPMs também foram instaurados apenas para cumprir tabela. O trabalho foi tão malfeito que a Justiça Militar recebeu 28 inquéritos e mandou devolver 18, pedindo que fossem refeitos.

A Corregedoria da PM, então ainda sob a chefia do coronel Simeira, se encarregaria de refazer os IPMs. Dias depois, com a dança das cadeiras dos 34 coronéis, Simeira foi removido do cargo e deslocado para a Coordenadoria de Assuntos Jurídicos. Incomodado com a transferência, pediu afastamento e foi para a reserva. No lugar dele, Derrite nomeou Fábio Sérgio do Amaral, responsável pelo Comando do Policiamento de Choque, que atuou na matança do Guarujá. O chefe do setor de inquéritos da Corregedoria, tenente-coronel Fabiano Batista do Prado, também foi removido. Até agora, os IPMs não foram refeitos.

Em outra mudança relevante, mas menos visível, Derrite colocou o cientista político João Henrique Martins, um ex-tenente especializado em segurança pública para a iniciativa privada, no comando de um órgão estratégico de sua secretaria: o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), cuja função é analisar dados para criar projetos de segurança. O CICC tem acesso aos boletins de ocorrência, mas, assim que assumiu, Martins pediu para também acessar o Infocrim, o mais valioso sistema de informações da polícia, cujo banco de dados é sigiloso. Além de mapear a criminalidade, o Infocrim acompanha a produtividade do trabalho policial. O chefe do Centro de Inteligência da PM, João Luís Minghetti Costa, não autorizou o acesso. Havia o temor dentro da corporação de que os dados pudessem ser fornecidos a empresas privadas. Minghetti Costa está entre os 34 coronéis que foram removidos de sua função.

O CICC de Martins expandiu seus poderes no âmbito financeiro. Pela primeira vez na história quase bicentenária da PM paulista, a Diretoria de Logística deixou de ser a única responsável pelas licitações para insumos da corporação. Em dezembro do ano passado, já coube ao CICC promover três leilões para comprar viaturas (23,6 milhões de reais), quadriciclos (4,4 milhões) e coletes balísticos (2,6 milhões). “Causa preocupação que Martins, um oficial afastado e de baixa patente, sem a competência necessária para comandar um órgão sensível como o CICC, esteja agora com essas atividades, ainda mais tendo trabalhado como consultor de segurança no setor privado”, afirma José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM e ex-secretário nacional de Segurança do Ministério da Justiça.

Desde que assumiu seu cargo no governo paulista, em janeiro de 2023, Derrite deu sinais de que também pretendia afrouxar os controles internos da polícia. Antes de completar um mês no cargo, ele defendeu a ação de uma patrulha da Rota que disparou 28 vezes contra um Honda Fit, sob a justificativa de que seus três ocupantes iriam fazer um assalto na Rua da Consolação, na região central de São Paulo. Matou dois. As câmeras dos quatro agentes da Rota não registraram a ação, mas uma câmera da estação mais próxima do metrô gravou a cena, como mostrou a repórter Jeniffer Mendonça, do site Ponte Jornalismo. Nela, o sargento Vinícius de Sena Santos aparece tirando um objeto de sua farda e colocando debaixo do corpo de uma das vítimas. Estava plantando uma arma para simular que houve reação a tiros. Com 28 disparos, dois mortos e uma arma plantada, a ação não rendeu nenhuma punição aos policiais.

No segundo mês no cargo, Derrite cancelou a punição contra quinze agentes da Rota, que estavam afastados do serviço de patrulha em razão do alto índice de mortes. A medida foi comemorada pela tropa. Dois dias antes de transferir os 34 coronéis, Derrite fez outro movimento: perdoou cerca de cinquenta policiais militares que também estavam afastados do serviço de rua  devido à alta letalidade. Os beneficiados trabalham em diferentes cidades paulistas. Derrite colocou todos de volta às ruas, atropelando o trabalho da Corregedoria em casos que remontavam a 2018.

De acordo com um coronel bem posicionado na corporação, a PM registrou o número mais baixo de policiais expulsos e demitidos no ano passado, o que pode ser um sinal do enfraquecimento da Corregedoria. “Uma cultura organizacional que estava sendo construída ao longo dos anos, em respeito à legalidade, foi dinamitada logo de cara. O recado é claro: a polícia tem autorização para matar. Está tudo dominado”, avalia um coronel que pediu para ficar no anonimato porque ainda está na ativa. No início de julho do ano passado, duas semanas antes do assassinato do soldado Reis, o comandante da PM, Cássio de Freitas, divulgou um vídeo nas redes sociais depois que um tenente aposentado foi vítima de latrocínio. Mandou uma mensagem aos policiais: “Não hesite em utilizar a legítima defesa a seu favor.”

Na campanha de 2018, Guilherme Derrite se aproximou de Eduardo Bolsonaro. Na época, os dois eram candidatos a deputado federal e percorriam o interior de São Paulo em campanha. Pediam votos para eles e para Jair Bolsonaro. Deu certo: Jair Bolsonaro foi eleito, Eduardo foi o deputado mais votado do estado e Derrite ganhou seu primeiro mandato, com 119 mil votos. Três meses depois da posse, foi escolhido vice-líder do governo na Câmara.

Cumpriu seu papel. Empenhou-se em afrouxar as regras para o porte legal de armas para fazendeiros e guardas municipais, lutou contra o isolamento social durante a pandemia de Covid, propôs o fim da visita íntima nos presídios e levantou a bandeira do fim da saidinha dos presos, projeto que acabou de ser parcialmente aprovado. Na campanha de 2022, candidatou-se à reeleição – venceu com o dobro de votos do pleito anterior – e aproximou-se de Tarcísio de Freitas, então candidato ao governo paulista. Tarcísio convidou Derrite para fazer o “plano de segurança pública” de sua gestão e colocá-lo em prática, caso fosse eleito.

Derrite fez um plano genérico, propondo usar “tecnologia de ponta”, integrar “bases de dados de interesse policial disponíveis nos níveis federal, estadual e municipal” e combater o crime organizado “sem trégua”. Com a vitória de Tarcísio, ele renunciou ao mandato de deputado e virou secretário de Segurança. Sua posse não foi bem recebida. Era jovem demais (38 anos), inexperiente (nunca tivera cargo de gestão), militar (rivalizava com a Polícia Civil) e tinha baixa patente (tenente, só virou capitão ao se aposentar). Seus antecessores eram procuradores de Justiça, general de Exército, professor de direito, como o atual ministro Alexandre de Moraes, do STF. Tecnicamente mais qualificados, não tinham ligação com qualquer uma das polícias, cuidado que os governadores paulistas tomavam para não estremecer uma relação sempre tensa.

Assim que assumiu, Derrite tentou neutralizar eventuais problemas com a Polícia Civil e escolheu Osvaldo Nico Gonçalves para secretário executivo da pasta. Nico é policial civil, tem mais de trinta anos de experiência, bom trânsito na corporação e apoio dos delegados. Com isso, Derrite afagou a Polícia Civil e pôde se dedicar ao que realmente gosta – a área militar. O assassinato do soldado Reis, ocorrido cerca de sete meses depois de sua posse, serviu como uma luva para colocar na rua a sua estratégia. Em entrevista ao podcast Inteligência Ltda, Derrite admitiu isso: “O caso do Guarujá foi o momento em que o estado mostrou como iria se organizar contra o crime organizado.”

A inquietação da Polícia Civil, no entanto, veio à tona mesmo assim. Há pouco, Derrite obteve o aval do governador para que a PM possa registrar e colher depoimentos de crimes de menor potencial, com pena de até dois anos de reclusão. São os chamados Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCOs). Até o momento, esse papel é exclusivo da Polícia Civil, que não está gostando da possibilidade de compartilhar seus poderes com a outra força. Em mensagem encaminhada aos “prezados comandantes” à qual a piauí teve acesso, Cássio de Freitas, comandante-geral da PM, comemorou a novidade que favorece a sua corporação. Disse que “há uma campanha de desinformação em curso” e garantiu que “a relação entre as polícias nunca esteve tão próxima”. Não era bem assim. A Polícia Civil protestou alto, e Derrite foi obrigado a recuar e instalar uma comissão para discutir o projeto controverso.

A Polícia Civil também não gostou de ser excluída daquela operação que desbaratou as empresas de ônibus que lavavam dinheiro do PCC. Depois disso, no bojo da investigação do caso em que o condutor de um Porsche provocou um acidente que matou um motorista de aplicativo, a Polícia Civil entrou na Justiça exigindo que a PM entregasse as imagens captadas pelas câmeras corporais dos policiais. Com tudo isso, açulando uma disputa entre duas corporações, Derrite e o governador estão, nas palavras de um juiz da Justiça Militar que pediu o anonimato, “virando a pirâmide de cabeça para baixo”.

“Há mensagens sutis de que a polícia tem autorização para matar”, avalia o advogado Rafael Alcadipani, professor de gestão e políticas públicas que acompanha a violência policial. “A começar por um governador que manda reclamar na Liga da Justiça e um secretário de Segurança com um histórico de letalidades.” Alcadipani diz que a razão de tudo está no populismo penal da necropolítica. “Esse é o principal da história: ganhar votos. Funciona à semelhança do Império Romano, quando as pessoas iam assistir gente ser arremessada aos leões. Agora, a população deseja que a polícia mate mesmo.”

Na avaliação de Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, “Derrite está fazendo em São Paulo uma coisa semelhante ao que Bolsonaro fez em Brasília, quando politizou as Forças Armadas. Depois que ele deixou o poder, viu-se a dimensão do estrago, que levou vários oficiais à investigação”. Segundo ele, “Derrite está prestigiando oficiais por afinidades ideológicas com sua história de violência e truculência. Está fazendo uma leitura de segurança pública do passado, apostando na violência como sinônimo de ordem”. Manso prossegue: “Com isso, ele está rachando a polícia. Uma série de oficiais está indignada. Havia um esforço com instalação de câmeras nos uniformes e a criação de uma comissão de letalidade, que vinha dando resultados. Tudo isso está indo por água abaixo.” Um dado grave que não deve ser ignorado: no ano passado, a PM paulista registrou o maior número de suicídios de sua história. Foram 32, dos quais 20 estavam no serviço ativo.

No e-mail que enviou ao secretário, a piauí reuniu um total de 24 perguntas. Entre elas, além de mencionar a denúncia do matador do grupo de extermínio, a revista incluiu questões sobre o perfil das vítimas nas operações realizadas na Baixada Santista, a ausência de câmera corporais, a remoção dos coronéis, o perdão aos policiais que haviam sido retirados das ruas, os IPMs incompletos, a anunciada queda de 30% nos roubos de carga. Segue a íntegra a nota da assessoria de Derrite:

A linha de atuação adotada pelo secretário à frente da pasta é baseada na asfixia financeira do crime organizado com ações que desarticulem a cadeia ilícita.

As forças de segurança do estado de São Paulo são instituições legalistas que operam estritamente dentro de seu dever constitucional, seguindo protocolos operacionais rigorosos, não sendo tolerados excessos, indisciplina ou desvios de conduta. Todos os casos de morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário, que inclusive têm acesso às imagens das câmeras corporais portáteis utilizadas pelos PMs envolvidos nas ocorrências.

O confronto não é uma escolha dos policiais, mas uma reação à ação violenta de criminosos nas operações de combate ao crime organizado. O compromisso das forças de segurança é com a preservação da vida, por isso medidas para reduzir as mortes em confronto são permanentemente avaliadas e adotadas. Temos investido em treinamento do efetivo, aquisição de equipamentos não letais e demais iniciativas voltadas ao aperfeiçoamento dos agentes de segurança, inclusive com o uso do método Giraldi.[1] Somado a isso, o programa de câmeras corporais segue em operação, inclusive está em andamento uma licitação para a contratação de mais três mil dispositivos para serem acoplados às viaturas. Atualmente, 10 125 câmeras corporais estão disponíveis, abrangendo 52% dos policiais do território paulista.

As operações de combate ao crime organizado realizadas na Baixada Santista, entre 28 de julho e 5 de setembro de 2023 e a partir de 3 de fevereiro deste ano, resultaram na prisão de importantes lideranças do tráfico de drogas na região. Entre elas, Karen Tanaka Mori, conhecida como “Japa”, responsável por lavar dinheiro de uma facção criminosa; Caio Vinicius, apelidado de “Nego Boy” e acusado de liderar o tráfico de drogas na comunidade onde o soldado Cosmo foi morto; Patinho, executor de uma série de assassinatos a mando dos criminosos, entre outros. Além destes, mais de mil criminosos foram presos pelas forças de segurança, dentre os quais 438 procurados pela Justiça; também foram retiradas das ruas 119 armas de fogo ilegais e cerca de uma tonelada de drogas, gerando prejuízos significativos às atividades criminosas na região.

Em relação aos roubos de carga, as políticas públicas adotadas têm se mostrado eficientes, possibilitando uma redução de 17,8% no número de ocorrências em todo o território paulista nos dois meses deste ano, em comparação com igual período do ano passado. Quanto à Baixada Santista, houve a queda de 8%, no bimestre. Temos envidado esforços por meio das nossas forças policiais para combater este tipo de delito com uso de inteligência, tecnologia e operações integradas.

(Aparentemente, por um equívoco, a assessoria de Derrite contabilizou prisões e apreensões de armas e drogas ocorridas apenas de dezembro do ano passado em diante. Somando-se os resultados divulgados pela própria Secretaria em relação às operações realizadas antes de dezembro, os números são aqueles que apareceram antes nesta reportagem: 2 mil prisões, 240 armas e 3,6 toneladas de drogas. Quanto ao roubo de cargas, o secretário anunciara queda de 30%, mas a nota corrigiu para 17,8%.)

O governador Tarcísio de Freitas já disse e desdisse o que pensa sobre as câmeras corporais. Afirmou que não tinham nenhuma relevância para a segurança da população, depois disse “não estou nem aí” quanto às preocupações sobre a violência policial e, por fim, falou que o uso das câmeras poderia até ser ampliado na sua gestão. Agora, em resposta a uma consulta feita pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, prometeu implementar o equipamento até setembro deste ano.

Filho do meio de um casal de classe média de Sorocaba, no interior de São Paulo, Guilherme Muraro Derrite queria ser engenheiro ou dentista. Às vésperas de prestar o vestibular, viu uma foto do seu pai dos tempos em que cumpriu o serviço de Tiro de Guerra e se interessou. Conversou com um amigo da família, que cursava a Academia de Polícia Militar do Barro Branco, a instituição que forma militares em São Paulo e cujo ingresso se dava por meio de vestibular. Da conversa saiu convencido de que deveria tentar a carreira militar, mas foi reprovado no teste psicotécnico. No ano seguinte, tentou de novo e conseguiu.

Na academia, localizada na capital paulista, conheceu sua futura mulher Iara Maria de Oliveira, hoje capitão da PM e lotada na Casa Militar do governador. O casal, que teve dois filhos, planejava retornar para o interior, mas Derrite acabou indo para o 14º Batalhão de Osasco. Apaixonou-se pelo ofício, desistiu de voltar para o interior e começou a sonhar em ser membro da Rota. Por volta de 2009, foi rejeitado porque seu currículo de homicídios era farto demais. No ano seguinte, conseguiu a ajuda de um amigo, Rafael Telhada, filho do então comandante da Rota, o coronel Paulo Adriano Telhada. Na época, o coronel Telhada estava atrás de policiais para endurecer o combate ao crime. E abriu as portas para Derrite. O sonho durou pouco. Derrite tinha menos de três anos na Rota quando deixou a tropa depois do Caso Barracuda.

O próprio coronel Telhada estimulou Derrite a tentar a carreira política. A essa altura, ele já era conhecido do público pelas entrevistas à imprensa e pela presença nas redes sociais. Nos tempos da Rota, tornou-se figura frequente nos programas policialescos da Band e da Record. Chegou a ser estrela de um reality show policial, Operação de Risco, exibido pela RedeTV!, que mostrava incursões da Rota pelas ruas de São Paulo. Nas redes sociais, tinha milhares de seguidores. “Tenho certeza absoluta de que eu fui eleito graças à rede social”, disse, numa entrevista a um podcast. Derrite é considerado o candidato de Tarcísio para o Senado, mas já se especula que, se o governador não disputar a reeleição, seu nome pode aparecer para o governo do estado.

Fã do falecido Olavo de Carvalho, o ex-astrólogo que funcionava como guru ideológico da família Bolsonaro, Derrite afirma que o “marxismo cultural” trata os bandidos como vítimas da sociedade. Católico e temente a Deus, ele se diz um “conservador” e tem opiniões previsíveis para alguém que se alinha com a direita radical – é a favor da prisão perpétua, do fim das câmeras nos uniformes dos policiais e do porte de arma de fogo para defesa pessoal.

Derrite diz que é contra a pena de morte.


[1] O método Giraldi, desenvolvido pelo coronel Nilson Girardi, de São Paulo, consiste em técnicas e normas que, aplicadas às ações policiais, destinam-se a limitar o uso de arma de fogo e preservar vidas.

João Batista Jr.

Repórter da piauí, publicou A Beleza da Vida: A Biografia de Marco Antonio de Biaggi (Abril)

Guilherme Derrite acaba de ganhar do governador um assento no "Conselho do Metrô", fato que vai elevar seu salário a R$ 67 mil mensais (leia aqui).

A elite criminosa

O Brasil está nas mãos de uma quadrilha: parcela do empresariado de vários setores, a tecnocracia que está a seu serviço, a adulação sinistra que lhes faz a grande mídia, o bolsonarismo e seus seguidores, o estado de anomia da classe média. Esses segmentos formam uma base social e ideológica que legitima toda a sorte de desmandos - como parece ter ficado comprovado com o desastre infernal do Rio Grande do Sul. O estatuto moral dessa turma é simples e transparente: abandonar o povo à sua própria sorte, raspar o que lhe resta de direitos, assaltar e vender a soberania nacional, descumprir a lei, sonegar os impostos e destruir o que restar de pé depois do saque.  

Enquanto isso...

Pesquisa Atlas mostra crescimento na avaliação positiva do governo e de Lula

*Avaliação negativa da economia tem queda significativa na comparação com o levantamento anterior (Carta Capital) *Quaest: Aprovação geral do governo Lula fica estável no país, mas sobe no sul (Uol)

Governo Tarcísio cai na amoralidade administrativa

# Derrite ganha cargo no Conselho do Metrô (?) e vai embolsar mais R$ 67 mil por mês (Folha)

# Movimentos discutem ações para evitar desapropriações na Raposo Tavares (RBA)

Com o apoio de Tarcísio, interesses privados destroem SP

O que há de novo?

O que a tragédia gaúcha nos ensina


"(...) No que diz respeito à crise climática, sim, chegou a hora de entrarmos em pânico"

Raymond Pierrehumbert, 2018

(expandir)

As palavras da abertura deste texto foram originalmente redigidas por um professor de física da Universidade de Oxford, nos EUA, principal autor do relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) de 2018

Desafortunadamente, não se trata de mero recurso retórico para chamar a atenção para um problema que muitos julgam – ou julgavam – apenas lateral. A humanidade se depara com uma ameaça real, concreta, que talvez pela primeira vez a coloque diante de uma encruzilhada na qual não possa garantir que o futuro será melhor que o presente. A despeito da recalcitrância de teorias conspiratórias e dos escusos interesses de grupos econômicos e negacionistas, há muito a ciência alerta ao agravamento das variáveis que influenciam o aquecimento global, tais como a emissão de gases de efeito estufa, a diminuição da permafrost, a acidificação dos oceanos e o desmatamento de florestas e outros biomas ao redor do planeta. A verdade é que, quanto ao devir da civilização humana no Sistema Terra, projeções de coletivos científicos são cada vez mais sombrias.

Poucos meses após a passagem de um ciclone extratropical que trouxe devastação, prejuízos materiais incalculáveis e mortes ao Rio Grande do Sul, enchentes ainda maiores voltam a castigar a população do estado. Em praticamente todos os telejornais, comentaristas e especialistas afirmam que é necessário se acostumar com um drama que não é exclusivo dos riograndenses, mas experimentado por cada vez mais pessoas ao redor do planeta. Diz-se que é o “novo normal” do mundo em que vivemos, um processo irreversível, resultante das mudanças climáticas em curso. Ao que parece – talvez não pelo caminho mais difícil, mas certamente pelo mais doloroso – depois de muito tempo tentando-se tapar o sol com a peneira do negacionismo, a emergência climática passa a preocupar formadores de opinião pública no Brasil. Mas não apenas estes, haja vista que, além das pessoas que tiveram suas vidas devastadas pelas tragédias climáticas, o tema consterna as que conseguem sentir alguma empatia pela dor alheia ou simplesmente guardam um mínimo de bom senso diante dos fatos.

Contudo, há uma pergunta que parece se evitar a qualquer custo a resposta, a saber: quais as causas de fundo dessa emergência climática que traz prejuízos, desesperança e sofrimento em grande escala? Seguramente muitos responderiam que a causa, em si, é o aquecimento global. É sem dúvida uma resposta atenta ao movimento da realidade concreta tal como a percebemos ou sentimos na carne; mas tampouco alcança a raiz do problema. Afinal de contas, secas cada vez mais longas, enchentes cada vez mais frequentes, ciclones cada vez mais recorrentes, além de acidificação de oceanos e acúmulo de gases de efeito estufa são menos causa do que efeitos do alargamento daquilo que se entende por falha metabólica – ou seja, expressões concretas da disjunção crescente entre o modo de produção e o Sistema Terra. Embora aparentemente rebuscado, esse raciocínio não é difícil de se apreender, especialmente quando se tem em conta que o modo de produção capitalista é um sistema que não se desenvolve no vácuo, mas através do tempo-espaço que reordena em função da lógica do capital. E esta lógica é expansiva e acelerante, visto que comandada pela acumulação capitalista e busca do lucro, em condições de concorrência mercantil. O ato de explorar um espaço finito – como a Terra – a partir de um sistema cada vez mais expansivo choca-se com um limite biofísico; daí as secas, as inundações, os ciclones cada vez mais recorrentes… Como se vê, no fundo, a resposta é outra.

Note-se, por exemplo, o que tem ocorrido desde a década de 1950. As transformações transformações socioeconômicas aceleram-se de forma estonteante. No entanto, no que toca ao metabolismo humanidade/natureza, esse mundo que ganhou impulso com os 30 anos gloriosos do capitalismo e hoje se concretiza repleto de sofisticadas máquinas e inteligência artificial traz consigo implicações preocupantes. Os gráficos abaixo ilustram algumas manifestações concretas da tendência acelerante do sistema capitalista, que ganharam impulso substantivo a partir dos anos 1950 – em consonância com a própria escala sistêmica.

É verdade que o século XX produziu uma explosão demográfica sem precedentes, em especial a partir dos anos 1950. De 3 bilhões, chegamos a cerca de 7 bilhões de seres humanos em meio século, em sua maioria nos espaços urbanos, o que contribui ainda mais à fratura metabólica em curso e implica numa utilização cada vez maior de fertilizantes. Em 1950, a utilização destes era menor que 10 milhões de toneladas; mas ela salta para 200 milhões de toneladas ainda nos anos 2000. O número de veículos automotores também explode nesse meio século: de aproximadamente 200 milhões em 1950, chega-se a cerca de 1 bilhão e 500 milhões em 2000. Nessa toada, conforme ilustram as figuras acima, exacerbam-se também as emissões de CO² e de NO², gases que provocam o efeito estufa.

A grande aceleração das atividades antrópicas ajuda a compreender que a humanidade tornou-se uma força geológica em escala planetária, especialmente a partir de 1950. Do pós-Segunda Guerra até meados dos anos 1970, o sistema capitalista experimentou seus melhores resultados. Quiçá ameaçado pela possibilidade concreta de um modelo alternativo, o sistema capitalista foi impulsionado pela ação decisiva dos Estados, que conformaram, através de pactos tripartites (patronato, sindicatos e governos), os arranjos sociais-democratas de repasses de ganhos de produtividade aos salários e, com isso, garantias de renda, demanda e massas de lucro crescentes. Arranjo que estimulava os investimentos produtivos e o emprego através de um modelo de produção e circulação em massa de mercadorias, que, em conjunto com a reconstrução do aparato produtivo na Europa no pós-Segunda Guerra, engendrou um círculo virtuoso de três décadas de crescimento econômico acelerado, com alguma distribuição de renda nas principais economias. Mesmo que essa etapa do capitalismo tenha sido interrompida com “a virada conservadora” dos anos 1980, essa interrupção não foi acompanhada de uma reversão utilização maciça de combustíveis fósseis e degradação ecossistêmica.

Nessa linha, tragédias como a que estraçalha agora a vida de milhares de gaúchos e gaúchas são menos provocados pela “mãe natureza” e muito mais pela inconsequência de seres humanos que não renunciam a uma espécie de “American Way of Life” e à busca por massas de lucro cada vez maiores em atividades típicas do neoextrativismo — mesmo quando estas acarretam agressões irresponsáveis à natureza. Logo, para não seguirmos a tapar o sol com a peneira, é necessário não escamotear a verdadeira raiz do problema: na sociedade de produção e circulação de mercadorias – ou melhor, no capitalismo – a mola mestra da capacidade humana de transformar a natureza é a acumulação de capital, é ela que está no centro de nosso sistema de reprodução material. E isto significa que o processo pelo qual se obtêm os meios de subsistência e de reprodução da sociedade não é pura e simplesmente um processo produtivo, mas é também – e primordialmente – um processo capitalista. Isto é, um processo de valorização de uma determinada quantidade de valor que é posta em circulação para retornar acrescida ao ponto de onde partiu. O que remete a outro ponto fundamental à compreensão da dinâmica de nossa relação metabólica com a natureza: a aceleração. O sistema não é apenas expansível, ele também é acelerante. Na medida em que a acumulação de capital é a sua mola mestra, e ao passo que capitais que giram mais rapidamente tendem a valorizar-se mais e/ou mais velozmente do que aqueles que não o fazem, a própria concorrência intercapitalista conduz uma corrida pela introdução de inovações que reduzam o tempo de rotação dos capitais. No que toca a reprodução material do sistema, este movimento se consubstancia em tecnologias capazes de produzir mercadorias em períodos produtivos cada vez mais curtos. No entanto, como geralmente estas mercadorias possuem menor valor unitário em vista dos ganhos de produtividade do trabalho, a manutenção de grandes massas de lucro requer volumes cada vez maiores de produção, comercialização e consumo. Dessa forma, as lógicas crescente e acelerante do sistema tendem a se retroalimentar. Quanto maior a escala, maior a necessidade de aceleração – e maiores as repercussões negativas sobre os ecossistemas, que perdem sua capacidade de oferecer serviços ecossistêmicos essenciais, como o de regulação do clima.

Conforme aponta Luiz Marques, no intervalo de tempo de duas gerações – ou o tempo de uma única vida – a humanidade se tornou uma força geológica em escala planetária [daí a ideia de Antropoceno]. Basta ver que entre 1900 e 1930 a taxa média de elevação do nível do mar era de 0,6 mm por ano, que entre 2014 e 2017 essa taxa foi de 5mm por ano, mas que entre os anos de 2018 e 2019 a elevação foi de 6,1mm. Em apenas um século, a elevação do nível do mar decuplicou. E as projeções são de que, em 2040, as inundações que ocorrem em zonas costeiras uma vez por século podem ocorrer anualmente. Se hoje medimos a elevação do nível do mar em milímetros por ano, apenas pelo degelo da Antártida o nível dos oceanos pode subir dezenas de centímetros ainda neste século.

Evitar novas tragédias como a que se atravessa hoje no Rio Grande do Sul passa pelo reconhecimento das contradições da dinâmica da acumulação com as condições naturais de produção, ou seja, da lógica expansiva e acelerante da acumulação que não consegue harmonizar-se com a lógica da biosfera, um sistema de ecossistemas com funcionamento próprio e com dinâmica que não é nem crescente nem acelerante. De maneira geral, a acumulação capitalista tende a trazer sérios problemas na relação humanidade/natureza sempre que a velocidade de consumo de matéria e energia supera a velocidade de regeneração do sistema natural. Mas também quando a escala de dejetos da produção ultrapassa a capacidade que os diferentes ecossistemas possuem de assimilá-los. Estas são, a rigor, as principais vias pelas quais um sistema ecológico pode rumar à desorganização de sua estrutura e, com isto, ter sua mecânica alterada e/ou comprometida em virtude de ações humanas. É neste quadro que se costuma falar em metabolismo ecossistêmico, ou seja, no funcionamento próprio de um determinado ecossistema. É a interação dos elementos que compõem sua estrutura que resulta numa série de funções ecossistêmicas, tais como o sequestro de carbono da atmosfera e as regulações do clima e do ciclo da água.

Por isso, encontrar um caminho que nos afaste de tragédias ambientais exige reconhecer o óbvio: o ser humano não é senhor da natureza, mas parte desta; a Terra não é mera fonte de recursos naturais, mas uma rede de ecossistemas da qual depende o bom funcionamento da própria vida humana. Urge, mais do que nunca, assumir que catástrofes climáticas não são meros acidentes ou obstáculos de percurso, que não há saída tecnológica possível à emergência ecológica – a menos que se abandone o rumo que tomou a civilização humana, embalada por uma superacumulação de capital que se tornou um fim em si mesma e construiu o cenário trágico vivido em diversas porções do planeta – a exemplo do Rio Grande do Sul.

Se a degradação ambiental compromete o fornecimento de serviços ecossistêmicos indispensáveis aos seres humanos, a prevenção de futuras tragédias climáticas implica um corte na raiz do problema – ou seja, acabar com o totalitarismo do sistema que consome substrato material da vida. É possível que ainda haja tempo suficiente para se puxar o freio de emergência, antes que a fratura no metabolismo humanidade/natureza transforme a biosfera num ralo a sugar a espécie humana. O que de fato precisa ser discutido, então, não são meras soluções técnicas, ferramentas que arredem obstáculos de um rumo supostamente natural e inescapável, mas uma forma de se cambiar este rumo, de se construir um modelo civilizacional em que a vida esteja à frente da acumulação, não o contrário.

É nesse sentido que autores como John Bellamy Foster criticam a irrealidade e a irresponsabilidade de muitas das análises desenvolvidas no âmbito do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC). Os modelos que empregam têm o crescimento econômico como pedra angular; logo, a acumulação de capital tal qual santa no altar. Tais análises rebaixam sistematicamente a escala das transformações sociais necessárias e apostam todas as fichas no mesmo mecanismo que conduziu à emergência ecológica – ou seja, o mercado. Assim, ainda que possam acertar no diagnóstico (de que o crescimento econômico acelerado deixou de ser garantia contra as inseguranças do futuro, para se tornar a própria fonte destas inseguranças), tais análises se equivocam nas receitas prescritas, pois passam longe da raiz do problema.

Infelizmente, isto pouco surpreende, pois, como o próprio Foster reconhece, a abordagem do IPCC é ditada em grande medida pela política econômica hegemônica, orientada pelas necessidades de acumulação de grandes corporações transnacionais. Estas – como há muito alertou Milton Santos – tornaram-se o centro frouxo de um mundo desigual, em que a fábula da globalização da economia esconde a triste face do imperialismo. Uma massa gigantesca de recursos é movimentada para fabricar armas e guerras. Mata-se tranquilamente em nome da pilhagem das riquezas de povos que teimam em funcionar com outra lógica – ou de uma superacumulação ensandecida que provoca devastação ecossistêmica.

No exato momento em escrevo, mais de meio milhão de gaúchas e gaúchos são afetados por outra manifestação da falha metabólica em curso. Milhares dessas pessoas não têm a mínima ideia de para onde ir, depois de terem seu lares arrastados ou arrasados por mais uma enchente. Tragicamente, a situação não é muito diferente da que atravessam os milhões de refugiados ambientais em todo o mundo, pessoas que foram forçadas a deixar seus lugares em função de secas, inundações e outras expressões dessa mesma falha metabólica que marca a emergência climática que atravessamos. Para essas pessoas, o sistema calcado na superacumulação não vai desabar em sua relação com a natureza – pois já desabou. Não fechar os olhos a essa realidade é condição indispensável para vislumbrar uma saída do labirinto em que nos encontramos em nossa relação metabólica com a natureza da qual fazemos parte. Um labirinto repleto de tragédias ambientais e guerras, mas não menos por uma concentração material na qual o 1% mais rico da população se locupleta de uma riqueza seis vezes maior do que a de 90% das pessoas do mundo. Um labirinto civilizacional no qual cerca de 46% das pessoas vivem sem acesso a saneamento básico e dois bilhões (23% da população mundial) não dispõem de aceso a água potável. Um labirinto onde os seres humanos não se reconhecem a si mesmos como semelhantes, como partes da natureza e tampouco como integrantes de uma única força capaz de transformar a natureza e a si mesmos nessa transformação. Um labirinto em que a apropriação privada da riqueza coletiva brutaliza, consome energia vital e afasta o ser humano de sua essência, ao matar na raiz a sua criatividade. Um labirinto onde o Minotauro da fome se alimenta do sacrifício de uma vida humana a cada quatro segundos, e onde os que conseguem sobreviver – e não mais do que isso – acreditam que as máquinas que aceleram a acumulação e a devastação ambiental são responsáveis pela riqueza produzida, mas não pela sucção de vida.

Para todos os efeitos, permito-me resgatar uma ideia do filósofo inglês Terry Eagleton, para quem a ideologia é igual a mau hálito – todos têm, mas só incomoda o alheio. Pois, somente com muito mau hálito, ou seja, com muita ideologia, é possível ver como a desenvolvida forma de sociedade humana um labirinto civilizacional que provoca tamanha aflição – ou drama.

Referências

DAILY H. Toward some operational principles of sustainable development, Ecological Economics, v.2, 1990, pp. 1-6.

EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2019

MARQUES, L. O decênio decisivo: proposta para uma política da sobrevivência. São Paulo: Elefante, 2023

JEZIORNY, D. L. “Metabolismo social e pandemias: alternativas ao vírus do crescimento autofágico” pp. 407-428 in Fressato, S. B. & Novoa, J. Soou ao alarme: a crise do capitalismo para além da pandemia. São Paulo: Perspectiva, 2020.

STEFFEN, Will; BROADGATE, Wendy; DEUTSCH, Lisa; GAFFNEY, Owen; LUDWIG, Cornelia. The Trajectory of the Anthropocene: the Great Acceleration. In: The Anthropocene Review, jan. 2014.


Fascistas tripudiam sobre os mortos e zombam das vítimas com escárnio e mentiras

Extrema direita usa tragédia do sul para disseminar fake news contra o governo

Ana Gabriela Sales, GGN (leia mais)

Tarcísio inaugura a pedagogia da boçalidade na educação pública

MBL, Brasil Paralelo, Pátria, Família, Propriedade, Empreendedorismo, Negacionismo, Inteligência Artificial, Privatização e o que  mais couber nessa salada de besteiras indigestas em que o governador está transformando a Educação de uma geração de estudantes que tiveram o azar de tê-lo como dirigente do Estado. Imaginem: para o terceiro bimestre deste ano, o secretário da Educação testa outra mudança na produção das aulas digitais. Elas passarão a ser feitas por uma ferramenta de inteligência artificial, em vez de serem produzidas por professores

Isabella Palhares, Folha (continue a leitura)

Reforma tributária: empresários cogitam cancelamento de planos de saúde se perderem privilégios

Julio Wiziack, Folha, Painel (expandir)

Grandes empregadores cogitam até o cancelamento de planos de saúde aos funcionários porque, com a reforma tributária, não poderão mais aproveitar créditos gerados com a oferta do benefício.

Duas grandes empresas afirmaram, reservadamente, ao Painel S.A. que avaliam o cancelamento caso não seja possível reverter a situação ou obter outro benefício junto ao Ministério da Fazenda.

Pela nova regra, as companhias estarão impedidas de aproveitarem o crédito do imposto pago nas despesas com os planos de seus colaboradores.

Segundo ambas –uma do varejo e outra do ramo de serviços–, isso torna a concessão do benefício praticamente insustentável.

Segundo a Abramge (Associação Brasileira dos Planos de Saúde), com a mudança, a alíquota será de quase 40% contra uma alíquota média que deve ficar em 26,5%.

"Infelizmente no que diz respeito à saúde, o Brasil vai na contramão do que há de mais moderno no mundo sobre IVA", afirma Gustavo Ribeiro, presidente da entidade."A consequência virá de duas formas: redução da oferta de plano de saúde e a consequente sobrecarga do SUS", alertou.

Brasil safado de Madonna é a negação do conservadorismo

Fãs revelam uma identidade coletiva na qual representam a persona que quiserem. E tudo no bairro, que é o mais cantado do mundo, preferido por Bolsonaro para realizar seus atos golpistas. Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense (expandir)

Leia também o texto de Marina Amaral, da Pública: O desejo mutante de Madonna.

Mitos e símbolos são semelhantes em todas as culturas ao longo do tempo. O inconsciente individual existe sobre uma camada mais profunda, o inconsciente coletivo. O sucesso de Madonna, no Rio de Janeiro, com um show gratuito, patrocinado com recursos públicos (não existe almoço grátis), merece uma reflexão sobre o outro lado de um país que parece regredir no tempo, quando olhamos para a política. Mas que passou por mudanças de comportamento humano que não têm mais volta.

Podia-se afirmar que é um fenômeno do Rio de Janeiro, que busca no entretenimento e na transgressão cultural uma espécie de redenção de suas mazelas políticas e iniquidades sociais. Mas, não. Foi gente do país inteiro, de todas as classes sociais e gêneros sexuais, que viajou para o ver o show de Madonna no Rio de Janeiro. Poderia ser no sentido inverso, para São Paulo, Salvador ou Belo Horizonte, o sucesso seria o mesmo. Entretanto, que astro pop resiste ao fascínio de Copacabana?

O bairro boêmio preferido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para realizar seus atos golpistas é o mais cantado do mundo. A "princesinha do mar", como foi chamada no samba de Alberto Ribeiro e João de Barro, o Braguinha, gravado originalmente em 1946, na voz inconfundível de Dick Farney, foi cantada até por Sarah Vaughan.

Dorival Caymmi viveu quase tanto em Copa quanto na Bahia. Na década de 50, com Carlos Guinle, compôs Sábado em Copacabana, gravada em 1951 por Lúcio Alves.

Billy Blanco compôs a censurada Não vou pra Brasília, gravada em 1957, pelo grupo Os Cariocas: Não vou, não vou pra Brasília/ Nem eu nem minha família/ Mesmo que seja/ pra ficar cheio de grana/ A vida não se compara/ mesmo difícil e tão cara/ Quero ser pobre/ Sem deixar Copacabana. Caetano Veloso, Joyce, Eduardo Dusek, Gilberto Gil, Roberto Frejat, Paulo Leminski e Tom Jobim também se renderam à superbacana.

Para o mundo, Copacabana é um arquétipo de paraíso tropical, embora seja "maravilha e purgatório da beleza e do caos", como diriam Fausto Fawcett e Fernanda Abreu. Madonna não resistiu ao charme das suas calçadas e ao icônico glamour do velho Copacabana Palace, frequentado pelas estrelas de Hollywood, astros do mundo pop e a nobreza europeia.

"Safada is coming to Rio" (A safada está chegando ao Rio), anunciou Madonna em suas redes sociais, um mês antes do show, tempo suficiente para que as confecções fluminenses entrassem em produção, com destaque para a camiseta preta dos peitinhos dourados, que provocou a formação de filas nas lojas da Saara (o bairro comercial árabe-judeu do Rio de Janeiro, cuja convivência deveria servir de exemplo para Israel e a Palestina).

Os arquétipos

Fãs se aglomeraram dia e noite à porta de Copacabana e nas imediações do local onde foi realizado o show, desde quando Madonna chegou ao Rio. Havia todo tipo de gente. Madonna é a tradução da "alma imoral" e sua persona, um arquétipo social universal. A palavra latina "archetypum" pode ser traduzida por "primeiro modelo". São memórias de nossos antepassados, que utilizamos para compreender a nossa própria existência. Na psicologia, o "ego" é a mente consciente, o inconsciente pessoal reúne a memória do indivíduo. O inconsciente coletivo é a parte da psique que abriga os arquétipos.

"O velho sábio", "A grande mãe, "A deusa, "O herói" e "A madona" são os arquétipos mais conhecidos. Com o nome artístico nos diz, Madonna representa uma persona da pós-modernidade, que também reúne os arquétipos da heroína revolucionária e da deusa devoradora dos homens — e até de mulheres. Sua imagem pública foi moldada para ser uma persona que não esconde o "animus" masculino da personalidade feminina. Ao seu lado no palco, Pablo Vittar foi a tradução escancarada da "anima", os atributos femininos da psique masculina.

A psicologia social e a antropologia explicam muito mais certos fenômenos políticos do que a sociologia e a ciência política propriamente ditas. Enquanto os gaúchos, que hoje representam a parcela da população mais conservadora do país, enfrentam um momento dramático, em razão das chuvas, a multidão em êxtase com a presença de Madonna no Rio de Janeiro vivia uma outra realidade, muito mais espiritual do que física.

Como nos ritos de passagem das comunidades mais primitivas, os fãs de Madonna adquiriram uma segunda identidade, contestadora, transgressora, livre, na qual cada um pode representar a persona que gostaria realmente de ser.

Nos últimos meses, Madonna passou pelos Estados Unidos, Europa e México com o show The Celebration Tour, que se encerrou nesta madrugada. Louise Ciccone, seu nome verdadeiro, dança e canta há mais de 50 anos, desde que deixou Michigan para iniciar sua carreira artística em Nova York.

No próximo dia 16 de agosto, completará 66 anos, 40 dos quais como pop star à frente do seu tempo. Suas músicas, performances e discursos públicos sempre promoveram a emancipação feminina e a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIA+

De onde vem o perigo?

Para Luis Nassif, Tarcísio de Freitas é "a mais perigosa expressão do bolsonarismo". É possível que seja mesmo, a julgar pela natureza violenta e anti-social de sua gestão à frente do governo de São Paulo (leia aqui). Mais que isso: a matéria da Folha publicada neste domingo (clique aqui para expandir esta postagem) mostra que há um projeto político e ideológico em execução que põe em risco a própria democracia. 

Tarcísio abraça lema ideológico após ser alçado a herdeiro de Bolsonaro

Acenos recentes e repetição de 'Deus, pátria e família' destoam da estratégia inicial de descolamento do bolsonarismo (link para acesso à matéria da Folha)

Ê UM CONTEÚDO


Ana Luiza Albuquerque

SÃO PAULO

Quando Tarcísio de Freitas (Republicanos) perguntou à sua equipe de marketing como vencer as eleições para governador de São Paulo em 2022, recebeu como resposta que ele precisava de Jair Bolsonaro (PL) –mas que o apoio do ex-presidente não seria o bastante. Ele também necessitava do voto de centro, refratário à radicalização representada pelo bolsonarismo.

Advindo do Ministério da Infraestrutura e com longa trajetória no setor, Tarcísio apostou na imagem de político técnico e moderado para conquistar o eleitor paulista. Mostrava gratidão ao ex-mandatário, mas nas entrevistas e discursos tentava se descolar da ideologia bolsonarista, estratégia que manteve durante o primeiro ano de governo.

O governador Tarcísio de Freitas ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro em ato na avenida Paulista - Bruno Santos/Folhapress

"Somos pessoas diferentes, com perfis diferentes. Eu tenho uma cultura muito voltada para o resultado. Não mantive uma postura ideológica na condução do Ministério da Infraestrutura", afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo em junho de 2022. "Eu nunca fui bolsonarista raiz. Não vou entrar em guerra ideológica e cultural", disse à CNN Brasil seis meses depois.

Tarcísio levou para o seu entorno figuras que costumam transitar entre governos de diferentes orientações ideológicas. Assumiu a coordenação da transição Guilherme Afif (PSD), empresário paulista com décadas de experiência política e participação nas administrações de Dilma Rousseff (PT) e de Jair Bolsonaro. Afif é do grupo de Gilberto Kassab (PSD), que também ganhou posto-chave como secretário de Governo, aumentando a influência do PSD em São Paulo sob Tarcísio enquanto garantia para o partido três ministérios no governo Lula.

A proximidade e a influência de Kassab foi um dos motivos que causaram irritação entre os bolsonaristas no primeiro ano de gestão. Tarcísio também foi criticado por ter mantido relações republicanas com o presidente Lula e, em certos momentos, ter inclusive elogiado o governo –como no fim do ano passado, quando afirmou à revista Veja que Fernando Haddad (Fazenda) estava "fazendo a coisa certa". O governador mantinha a postura de não encampar temas ideológicos, e isso incomodava os bolsonaristas.

Nos últimos dois meses, porém, quando seu nome começou a aparecer com mais força como herdeiro de Bolsonaro, inelegível, despontando como a principal alternativa da direita para as eleições presidenciais de 2026, Tarcísio deu mostras de que tem se sentido mais confortável para abraçar o bolsonarismo –e sua ideologia.

O ponto de virada foi na manifestação na avenida Paulista em defesa de Bolsonaro, no fim de fevereiro. Tarcísio rasgou elogios ao aliado, acuado diante do avanço das investigações que apuram se houve tentativa de golpe para mantê-lo na Presidência. O governador afirmou que Bolsonaro, que se hospedou no Palácio dos Bandeirantes naquela passagem pela cidade, não era mais só uma pessoa, mas sim a representação de um movimento.

"Você representa todos eles que descobriram que vale a pena brigar pela família, pela pátria, pela liberdade", disse Tarcísio.

Ao fim do mês de março, na filiação da então secretária Sonaira Fernandes ao PL, o governador voltou a repetir o lema ideológico do bolsonarismo: "Bolsonaro representa o que o PL representa hoje: Deus, pátria, família, liberdade. É o que a gente está falando o tempo todo".

O que hoje se fala o tempo todo não se falava tanto antes. O governador já havia repetido o mote anteriormente, em março de 2022, quando se filiou ao Republicanos, comandado pelo bispo licenciado Marcos Pereira. Mas essas palavras não eram constantes no vocabulário de Tarcísio, e a tônica também não esteve presente em seu programa de governo.

Com origem no fascismo italiano, o mote "Deus, pátria e família" foi adotado pelos integralistas brasileiros e pela ditadura de António de Oliveira Salazar em Portugal, no meio do século passado. Esses pilares também são a base do governo do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, aliado de Bolsonaro. O lema revela a base do orbanismo e do bolsonarismo: o nacionalismo cristão. Essa ideologia associa a identidade de um país e o pertencimento a ele à religião cristã e seus valores morais e culturais.

O dia da filiação de Sonaira ao PL foi também quando o The New York Times revelou que Bolsonaro havia dormido na embaixada húngara, poucos dias depois de ter tido seu passaporte apreendido pela PF. A notícia não provocou desconforto em Tarcísio, que disse que Bolsonaro era um líder como nunca viu igual. "Prazer de servir a esse grande líder e viver este sonho com ele", afirmou.

Dois dias depois, questionado pela Folha sobre o episódio da embaixada, Tarcísio disse que não via "nada de mais". No mesmo dia, em meio à pressão que fazia para o apadrinhado se filiar ao PL, Bolsonaro afirmou que um governador "peso pesado" estaria negociando a troca para o partido. "Pessoas que somam, com pensamento muito semelhante ao nosso, que tem na cabeça Deus, pátria, família e liberdade", disse o ex-presidente.

No mês de abril, Tarcísio continuou a tecer elogios públicos ao aliado e tomou duas decisões alinhadas ao grupo.

Primeiro, no início do mês, nomeou para a secretaria da Mulher a então deputada Valéria Bolsonaro, mantendo o alinhamento ideológico ao bolsonarismo em uma pasta cujas questões têm sido centrais para a direita. Valéria, que adotou o sobrenome ao se casar com um parente distante do ex-presidente, tem uma visão conservadora sobre gênero e família, temas morais que têm sido muito explorados por políticos de direita para mobilizar suas bases.

Depois, no fim de abril, após críticas de bolsonaristas, Tarcísio revogou uma resolução da secretaria de Saúde que submetia à consulta pública uma proposta voltada para a população LGBTQIA+, criada pela própria pasta. O texto falava em "garantir acesso universal e integral às demandas pelo processo transexualizador das pessoas travestis, transexuais e pessoas com outras variabilidades de gênero na rede SUS-SP".

No mesmo dia, no interior de São Paulo, Tarcísio desfilou ao lado de Bolsonaro, em meio à Agrishow. O ex-presidente disse que, mesmo que não retornasse ao cargo, havia plantado sementes. O governador continuou a elencar elogios ao padrinho político e puxou um coro de "Volta, Bolsonaro!", publicado em suas redes sociais. E completou: "Hoje ninguém tem vergonha de dizer Deus, pátria, família".

 A vida como ela é 

Eduardo Leite cobra soluções do governo federal, mas destruiu o código ambiental em 2019

Governador reduziu verbas para Defesa Civil e resposta a desastres naturais, além de acabar com medidas de proteção a áreas de conservação. Camila Bezerra, GGN (expandir)

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), tem causado um grande desconforto com o governo federal em meio a exigências de soluções para recuperar os danos e prestar assistência às vítimas das enchentes que atingem a região desde a última segunda-feira (29/04). 

Ainda que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenha visitado a região acompanhado de ministros e garantido verbas para recuperar o estado, o governador insiste em usar as redes sociais para fazer cobranças. 

Na quinta-feira (2), Leite pediu a continuidade do auxílio das Forças Armadas no resgate de pessoas ilhadas nos municípios gaúchos. O governador também criticou a visita de Lula na última semana, afirmando “que não era um momento para sobrevoos simplesmente” sobre a região. 

O que Leite não posta nas redes sociais são as críticas que vem recebendo dos próprios gaúchos devido aos cortes no orçamento da Defesa Civil nos últimos anos. Enquanto em 2022 a área contava com a verba de R$ 1 milhão, em 2023 o montante foi reduzido para R$ 100 mil. Já em 2024, a Defesa Civil tinha apenas R$ 50 mil em verbas, ainda que o estado tivesse enfrentado três grandes enchentes entre junho e novembro do ano passado. 

Já o orçamento para a pasta de gestão de projetos e respostas a desastres naturais foi reduzido de R$ 6,4 milhões em 2022 para R$ 5 milhões em 2023. Para 2024, a pasta conta com R$ 117 milhões, porém o valor é considerado baixo, uma vez que o governo estadual já previa que a verba necessária para responder a eventos climáticos seria de R$ 83 bilhões. 

Código Ambiental

Ainda no primeiro ano de mandato, em 2019, Eduardo Leite atropelou o Código Ambiental do Rio Grande do Sul, projeto de José Lutzenberger, uma das maiores referências em ecologia no Brasil, cuja concepção levou nove anos e foi resultado de debates e audiências de aperfeiçoamento. 

Leite apresentou um projeto que alterou 480 pontos da lei ambiental do estado, o que um grupo de técnicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) classificou como “uma tentativa de travestir de ‘moderno’ um código que retrocede e precariza não somente o licenciamento, mas tudo o que se refere à garantia dos valores ambientais”.

Na época, a Fepam criticou o fato de que o projeto acaba com os quatro artigos do capítulo 5, que tratavam de medidas de proteção, por exemplo, às áreas adjacentes às unidades de conservação; o afrouxamento da licença ambiental; o fim do veto ao corte de árvores, comercialização e venda de florestas nativas; e a revogação do artigo 35 do Código Florestal, que proibia ou limitava o corte das espécies vegetais em via de extinção.

# Leia aqui a matéria do Esquerda Diário sobre as consequências da política ambiental do governo gaúcho


Justificativa

Na época, a gestão de Eduardo Leite afirmou que o novo código ambiental representaria um melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico, por ser uma lei de modernização das leis que protegem e até aumentariam a proteção ao meio ambiente, ao mesmo tempo em que garantiria mais segurança jurídica e embasamento técnico para empresas. 

Na prática, a proposta representou, entre outras distorções, a possibilidade de auto licenciamento ambiental. 

*Com informações de UOL, O Globo e Brasil 247.

Nota da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA) do Rio Grande do Sul

NOTA – CÓDIGO MEIO AMBIENTE – 5/5 – 16h50

A construção da atualização do Código Ambiental do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, sancionado em 2020, teve como base amplas discussões que envolveram sociedade e instituições como a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). A atualização da lei acompanha as transformações da sociedade, tornando a legislação aplicável, priorizando a proteção ambiental e o desenvolvimento responsável. Mesmo após a sanção, a regulamentação conta com a participação da sociedade, representada por meio do Conselho Estadual do Meio Ambiente, fórum democrático que delibera sobre os regramentos ambientais.  As catástrofes climáticas são uma tendência mundial, com ocorrências mais frequentes e intensas em todo o planeta, sendo assim, não podem ser atribuídas à atualização da lei. 

O governo do Estado reforça a necessidade de adaptação para garantir a sobrevivência na Terra. Reconhecendo a importância da pauta, em 2023 lançou o ProClima2050, que reúne ações e políticas públicas pensando na mitigação das emissões, na adaptação e na resiliência climáticas. No âmbito do programa, instituiu o Gabinete de Crise Climática, que tem como principal função conectar as secretarias de Estado, instituições e pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à crise do clima. 

Entre as medidas em andamento estão a contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil, que será instalado na Região Metropolitana de Porto Alegre e está em fase final de implementação; melhorias na Sala de Situação, responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios; e a implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações relacionadas ao clima em esfera municipal.

LEIA TAMBÉM: # Climatologista explica o fenômeno que gerou a tragédia no RS # O relatório de 2015 que o governo do Estado preferiu ignorar

Pensatas para o fim de semana (atualização)

Não há um único espaço vazio nesse conflito que põe em lados opostos dois projetos radicalmente diferentes em torno do futuro do Brasil. O projeto reacionário mobiliza as forças do passado, embora fantasiadas de modermas: são as elites que se deliciam com a supressão de direitos e com a consagração da pobreza. O projeto progressista quer o primado do interesse público, a emancipação social e a soberania do país: são as classes subalternas que lutam por democratizar radicalmente o estado e a riqueza... É esse o conflito.

Deboche: na pressa de rifar a Sabesp, Freitas, Nunes e Leite se valem de um mambembe estudo de impacto orçamentário com apenas 4 páginas. Refém da privataria: capital paulista corre o risco de herdar dívida bilionária ao término da concessão de 36 anos (Carta Capital)

Em tempo: # Justiça anula decisão da Câmara Municipal (Opera Mundi)

"Em 'clara afronta à determinação judicial', votação não respeitou liminar que determinava a realização de todas as audiências públicas necessárias e a apresentação de um estudo sobre os impactos orçamentários relativos à privatização da Sabesp

Em SP, até as águas correm para trás

Estado que foi a “locomotiva do país” lidera a marcha à ré. Sabesp é emblema: empresa-símbolo da engenharia brasileira [passará por] privatização predatória e ilegal, que afetará serviços e tarifas — para deleite de um punhado de rentistas

# Rita Casaro, em Outras Palavras # Vereadores aprovam privatização da Sabesp e Nunes sanciona texto às pressas (Uol) # Câmara Municipal de SP avaliza dobradinha Tarcísio/Nunes (RBA) # Justiça anula decisão da Câmara Municipal (Opera Mundi) # No Rio, após a privatização, tarifa de água aumentou mais de 100% (GGN)

# Suspeitas a céu aberto

Em ano eleitoral, o suspeitíssimo Nunes não quer fazer licitação para contrato bilionário do Lixo (Folha)

# No primeiro de maio, rentismo mostra suas garras

Desemprego estrutural enfraquece os  trabalhadores  (A. Roncaglia, Folha)

# Como capturar o (...) cotidiano e a própria vida?

 ... esquecidos do dia anterior sem ter conseguido entender e ver o que fomos em um só dia (Maíra Vasconcelos, GGN)

# Derrite já foi investigado por 16 homícidios

 É o total de mortes ocorridas em operações das quais participou o hoje secretário de Tarcísio (piauí)

Para entender a reforma tributária

Imposto seletivo ou subsídio, saúde ou doença. A reforma tributária é uma oportunidade única de corrigir distorções e assimetrias de uma arquitetura tributária que tem impactos significativos sobre a saúde pública, o meio ambiente e a justiça social. Claudio Fernandes, Carolina Marchiori, Marcos Woortmann e Paula Johns (Le Monde). Leia aqui a postagem inteira.

E leia também: Ensaboada de Haddad em Pacheco foi acertada (Marcos Augusto Gonçalves, Folha)

Um dos grandes problemas de uma atividade industrial com poucas empresas no setor é a amplificação dos efeitos negativos de tais empreendimentos, que comprometem adversamente no geral seus resultados positivos particulares. 

Em 1920, o importante economista inglês Arthur Cecil Pigou (1877-1959), um dos fundadores da escola de economia da Universidade de Cambridge, observou que o desequilíbrio causado por mercados assimétricos, ou dominados por grandes conglomerados, poderiam ser melhor regulados a partir da aplicação de tributos específicos, ou seletivos, cujo objetivo seria reduzir as externalidades negativas dessas atividades econômicas para o bem comum. Pigou ancorou sua tese numa das bases da teoria liberal clássica que imputa ao Estado soberano o poder de regulação do conjunto de atividades dos mercados que se multiplicam em seu território e afetam sua população, já que não há ambiente de livre mercado sem Estado organizado e legislação confiante. 

Como todo economista deveria informar, mercados concentrados e imperfeitos, que são o fato evidente da economia contemporânea, deturpam o princípio de competição livre e impõem controle sobre a própria forma de vida das comunidades e sociedades por eles afetadas. Ademais, o poder da aliança entre esse capital concentrado e a indução cognitiva promovida pela publicidade pode até transformar o absurdo e doentio em algo normal. Exemplos não faltam, e incluem o cigarro e a bebida. Antes não sabíamos, agora já sabemos. Bem-vindos ao século XXI. Talvez no futuro saibamos o mesmo sobre combustíveis fósseis. 

Nas últimas três décadas o mundo assistiu ao rápido desenvolvimento de sistemas industriais de alimentação integrados e globalizados. Cada vez mais, muita comida e bebida passaram a ser servidas em caixas coloridas, pacotes prateados, finas vasilhas plásticas e exuberantes latinhas de alumínio. A composição de tais alimentos ultraprocessados é o resultado de fórmulas químicas e um processo de engenharia industrial de re-solidificação de partes pulverizadas ou re-liquidificação de partes concentradas com adição de inúmeros aditivos cosméticos para conferir sabor, aroma e textura tornando-os hiper-palatáveis. Esse é o fundamento irredutível do ultraprocessamento, que cria alimentos com sabor adicionado, não intrínseco, danosos tanto para a saúde humana como animal quando consumidos em alta frequência. 

Os ultraprocessados estão ligados ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como obesidade, diabetes, cânceres, doenças hepáticas e cardiovasculares, segundo o British Medical Journal, que associa mais de trinta doenças ao consumo desses produtos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeou a transição de mercado para sistemas alimentares que ampliam o consumo de ultraprocessados, e a conseguinte proliferação das Doenças Crônicas Não Transmissíveis de “determinantes comerciais da saúde”. 

Os ultraprocessados, ademais, não têm apenas efeitos na saúde coletiva humana, mas também nos ecossistemas, pois são embalados em plásticos cujo grau de poluição atingiu números alarmantes. Tal realidade suscitou a negociação de um tratado global vinculante, em negociação nesse momento, para lidar com os impactos da poluição plástica na saúde humana e planetária. O processo de produção do plástico, da extração ao descarte, contém diversas classes de substâncias químicas nocivas que são disruptores endócrinos que causam graves impactos à saúde e ao meio ambiente, que inclusive afetam de forma desproporcional povos originários em todo mundo. 

Em outras palavras, a força do mercado como co-indutor de doenças não infecciosas pode ser exemplificada de diversas formas: na jovem que sai da academia tomando uma latinha de refrigerante e no jovem trabalhador que come um salgadinho com um refri na volta para casa e, embora jovens, sem o saber são pré-diabéticos. 

Ou no pescador cuja pesca que o alimenta é contaminada por microplásticos. As embalagens dos ultraprocessados estão entre as campeãs na poluição plástica no mundo. O Brasil é o maior produtor de plástico da América Latina, com 500 bilhões de itens descartáveis, e segue recebendo incentivos fiscais (R$ 500 milhões em 2023 e R$ 1 bilhão em 2024 – decreto 11.668 de 2023). Somos o quarto maior produtor de resíduos plásticos no mundo, com uma taxa ínfima de reciclagem, de apenas 1,28%. Grande parte desse volume, que cresce ano a ano, são embalagens de ultraprocessados. 

Recente estudo da Colaboração dos Fatores de Risco de DCNT, publicado no prestigioso jornal de ciência The Lancet, mostra um crescimento logarítmico da incidência de obesidade em jovens nos últimos vinte anos no Brasil. O crescimento acentuado no consumo frequente de calorias com baixo valor nutricional, como o de salgadinhos, salsichas e refrigerantes, fez explodir os casos de diabetes no Brasil, que em quinze anos duplicaram sua prevalência na população, de 5% para 10%. O mesmo processo, ocorrido anos antes nos Estados Unidos pelas mesmas mudanças dietárias, onde ultraprocessados são acessíveis e comida saudável é cara, vem se agravando agora no Brasil. Entre a população dos Estados Unidos, em 2022, 11,3% foram diagnosticados diabéticos, 38% se encontram em estado pré-diabético, e um grande número não tem diagnóstico, por não haver um sistema de saúde público. No Brasil, também já uma a cada dez pessoas são portadoras diagnosticadas dessa DCNT, levando a dados alarmantes do ponto de vista de saúde pública, como o consumo de insulina e o número de amputações.  

A indústria de alimentos ultraprocessados no Brasil é dominada por grandes conglomerados transnacionais que exercem um evidente oligopólio de produção, inclusive com controle indireto nas redes de distribuição de seus produtos. A cadeia de valor dos refrigerantes, por exemplo, inclui produção do insumo principal, o xarope, sob proteção da Zona Franca de Manaus. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes (ABIR), três empresas dominam 92% do mercado nacional dessas bebidas, sendo uma detentora de 60%. Essas indústrias têm alta rentabilidade, porém mais de 80% de seus produtos são compostos de água, e essa não é cobrada, ou tem qualquer tributo inserido em sua exploração. Enquanto as embalagens tamanho família colocaram esses produtos no centro da mesa diária brasileira, as embalagens menores otimizam o lucro por volume – um vício propagado pela publicidade em eventos diversos relacionados ao entretenimento. Somos seduzidos e convencidos a nos refrescar com tais bebidas altamente adoçadas e carbonizadas em copos cheios de gelo, e diante de tanto apelo que a bomba de açúcar traz, imaginar seu controle é, sem dúvida, difícil.  

Foto: Peter Bond/Unsplash

Como mostrou Pigou, célebre economista com foco no bem estar e nos ciclos econômicos virtuosos, diante de tamanha extrapolação de um mercado altamente concentrado, com tamanho poder de impacto e enorme efeito de spill over caracterizado por pressão negativa no sistema de saúde pública e nos ecossistemas, cabe ao Estado a responsabilidade de atuar positivamente para reduzir tamanhos impactos coletivos. Há mais de um século se sabe que o tributo seletivo é o mais eficiente instrumento de mudança de padrões de produção, consumo e de comportamento empresarial. Quanto maior a alíquota nesses casos emblemáticos, melhor para demonstrar o efeito moral da medida para a saúde pública, para a diversificação da economia e para as contas públicas do país, como foi o caso também com os cigarros e o tabagismo. 

A reforma tributária é uma oportunidade única de corrigir distorções e assimetrias de uma arquitetura tributária que tem impactos significativos sobre a saúde pública, o meio ambiente e a justiça social. O projeto de lei enviado ao Congresso Nacional sobre a emenda constitucional da reforma, que por si só tem uma série de ambiguidades, avança em alguns pontos, como imposto seletivo sobre cigarros, bebidas alcoólicas e refrigerantes, além de ampliar o acesso aos alimentos saudáveis e prever cashback para parcela da população mais vulnerável. No entanto, o caminho para de fato conseguirmos beneficiar a saúde e o planeta está exposto aos lobbies que não querem abrir mão de mercados e margens de lucro imensas, e farão de tudo para minar os esforços daqueles que buscam uma reforma tributária que seja saudável, sustentável e solidária.  

Impostos seletivos para produtos danosos à saúde pública e ao meio ambiente afetarão as indústrias, por óbvio. Entretanto, tal efeito pode ser visto de duas formas distintas: com má-fé passiva que não aguenta mudanças e preconiza desastres; ou com boa-fé proativa que impulsionará tais indústrias a inovar e criar novos produtos que contribuam positivamente para a saúde da população brasileira e dos ecossistemas. Essas escolhas não são individuais, mas coletivas, pois seus efeitos não são apenas individuais, são sentidos por todos. A escassez de recursos públicos que deixarão de ir, por exemplo, para cuidados pré-natais na saúde pública, por irem para amputações de pacientes diabéticos, será sentida por mães e filhos que nunca fizeram essa escolha.  

Neste momento, a decisão sobre a regulamentação da reforma tributária está no Congresso Nacional. Esperamos que os parlamentares e o governo ajam aqui não em benefício dos seletos grupos acostumados com privilégios de mercados tão imperfeitos, mas de acordo com a sua responsabilidade pública para com seus eleitores e o bem comum, e em consonância com os princípios de saúde pública e respeito ao meio ambiente consagrados na Constituição Federal. 


Claudio Fernandes é economista da Gestos e do GT Agenda 2030. 

Carolina Marchiori é doutoranda em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp e assessora de Advocacy em Economia Verde do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). 

Marcos Woortmann é cientista político e diretor adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). 

Paula Johns é socióloga e cofundadora e diretora executiva da ACT Promoção da Saúde. 

Simples assim: manter a desoneração traz o risco de outra reforma da Previdência. É o custo extremo do cinismo neoliberal: aumentar a riqueza privada martirizando o pobre mais um pouco

A manutenção da desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia e da desoneração para pequenos municípios traz o risco de uma nova reforma da Previdência em três anos, diz o ministro Fernando Haddad (leia mais)

Para Haddad, o placar de 5 a 0 no Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da liminar que suspendeu a desoneração mostra a necessidade de acordos para evitar mais prejuízos à Previdência Social.

"Estamos desde outubro tentando conversar com os [17] setores e os municípios. O placar do Supremo deixa claro que temos de encontrar um caminho para não prejudicar a Previdência. Ou daqui a três anos vai ter de fazer outra reforma da Previdência, se não tiver receita. A receita da Previdência é sagrada, para pagar os aposentados. Não dá para brincar com essa coisa", disse o ministro ao retornar de reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Apesar da advertência, o ministro se disse confiante em um acordo para resolver o impasse entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Apesar das recentes críticas do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ao governo por ter recorrido ao Supremo, Haddad afirmou que o diálogo trará resultados. "Tem dado muito resultado o nosso diálogo com o Congresso e com o Judiciário. O Pacheco segue sendo um aliado", destacou o ministro.

O ministro esclareceu entrevista publicada neste fim de semana pelo jornal Folha de S.Paulo, em que cobrou o Congresso pela busca do equilíbrio nas contas públicas. Na entrevista, Haddad disse que o Congresso quer governar numa espécie de parlamentarismo, sem assumir as responsabilidades pelo aumento de gastos provocados pelas pautas-bomba.

"O que eu estava dizendo na entrevista é que, como o Congresso ganhou prerrogativas, era importante que as mesmas práticas de respeito à lei fiscal deveriam ser de todos: Executivo, Legislativo e Judiciário, que é o pacto que eu venho falando desde o começo do ano. Vamos fazer um pacto para a gente acertar as contas e continuar evoluindo", concluiu Haddad.

Impacto

No fim do ano passado, o Congresso aprovou o projeto de lei da desoneração que prorrogava, até 2027, a troca da contribuição previdenciária - correspondente a 20% da folha de pagamento - por uma alíquota entre 1% e 4,5% sobre a receita bruta de empresas de 17 setores da economia. 

O projeto também cortou de 20% para 8% a alíquota das contribuições ao INSS por parte dos municípios com até 156 mil habitantes.

A desoneração da folha de pagamento tem impacto de cerca de R$ 9 bilhões por ano à Previdência Social. A ajuda aos pequenos municípios fará o governo deixar de arrecadar R$ 10 bilhões por ano. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou o projeto, mas o Congresso derrubou o veto ainda em dezembro do ano passado.

Na semana passada, com base em uma ação da Advocacia-Geral da União), o ministro do STF Cristiano Zanin concedeu liminar suspendendo a desoneração da folha e submeteu sua decisão ao plenário. Cinco dos 11 ministros votaram por confirmar a suspensão, mas Luiz Fux pediu vista e interrompeu a análise. Ele tem até 90 dias para liberar o processo… 

Editorialistas do Estadão, colunistas da Folha e 'analistas' da Faria Lima se desesperam: "como foi possível isso?"

Brasil fica atrás só dos EUA, segundo dados da Organização de Cooperação e desenvolvimento Econômico (OCDE) 

Eleutério Prado comenta o artigo de Dowbor postado ao lado (AEPET

Que gente é essa?

Da letalidade da PM de Tarcísio (que não está 'nem aí'') à chantagem do Congresso contra o povo na 'desoneração' da folha; do 'rentismo parasitário' à brutalidade dos neoliberais; das disparidades gigantescas na distribuição da renda ao colégio das elites que convive com o racismo de parte do alunado; discurso de ódio corre solto pelo país; o Brasil é um emaranhado de conflitos graves que nos mostram ainda longe da civilidade plena. E tem a mídia que gosta disso...

# MP denuncia motorista de Porsche por homicídio com intenção de matar

Tarcísio de Freitas (o governador que não está "nem aí") diz que equipe "falhou" (varias fontes)

# Fissuras do campo político bolsonarista

Socialmente heterogêneo, policlassista, e por isso repleto de contradições.
(A Terra é redonda)

# Rentismo, um novo modo de produção

Comentários em torno do artigo de Ladislau Dowbor (A Terra é redonda)

# Privatização da Sabesp vai criar a Enel da água

Cresce oposição à proposta de Tarcísio e Nunes (Rede Brasil Atual)

# O neoliberalismo e a hegemonia dos valentões

A vida como uma luta na qual só alguns devem sobreviver (Outras Palavras)

# Sorria, você está sendo filmado, analisado, rastreado

Totens de vigilância particulares se espalham pelas metrópoles que vão até o reconhecimento facial (piauí)

# Sob Tarcísio (que não está 'nem aí'), número de mortes pela PM em SP cresce 138% em um ano

Foram 179 casos no 1o trimestre deste ano contra 75 no mesmo período do ano passado (Folha)

# E se não fosse com a filha de Samara Felippo?

Acusada de racismo contra colega, aluna sai  escola. Pais da menina manifestam-se sobre o episódio (247)

# Grupos espalham discurso de ódio sem moderação das plataformas

Relatório de entidade internacional mapeou mais de 20 organizações extremistas em atividade no Brasil (Pública)

o que há de novo?

Wesley é a prova de que a História não tem fim

 # Não deixe de ler: # Quem pagará a desoneração da folha (Luis Nassif) # O que é a desoneração da folha? (Estadão, claro, para assinantes). Ilustração da postagem: GGN # E o golpe: Campanha alerta para o lobby das 'isenções' na reforma tributária (RBA) # Zanin acerta na desoneração da Folha (F. Salto, Uol)

Desoneração

A desoneração é um dos principais mecanismos de natureza fiscal e político-administrativa que aumenta a concentração da renda no país. Sua justificativa - baseada numa forte pressão dos empresários e da mídia neoliberal - é sustentada por um silogismo no qual a segunda premissa é falsa: se o governo reduzir a cobrança de encargos que incidem sobre a folha de pagamentos, os setores beneficiados "prometem" investir mais, ampliar a oferta de empregos e, eventualmente, conter seus preços. Essa segunda premissa é uma mentira: até quem acredita em duende sabe disso (expandir).

Por que mentira? Em primeiro lugar porque o governo não tem condições de aferir se uma coisa provocou efetivamente a outra. Em segundo lugar, porque a renúncia fiscal, caso não seja coberta por alguma forma de compensação, aumenta o déficit público e reduz os investimentos em vários setores. O resultado penaliza a sociedade como um todo, enquanto beneficia os segmentos empresariais  que têm mecanismos de proteção contra isso, sendo o principal deles a própria desoneração. 

O empresariado, portanto, baseia-se num estragema muito parecido com aquele que a velha oligarquia do café usava para manter seu poder econômico: concentra em suas mãos os recursos da riqueza produtiva, mas... socializa os prejuízos que tornam essa riqueza possível. Eles não pagam impostos, mas alguém vai pagar... Aliás, seria bom que os articulistas neoliberais que defendem isso usassem a célebre frase popularizada por um de seus gurus, o economista MIlton Friedman, aquele que apoiou a ditadura de Pinochet, no Chile. Disse Friedman, de forma sentenciosa: "Não existe almoço grátis". Ou seja: alguém vai ter que pagar a conta...

Essa situação veio se tornando sempre mais aguda nos últimos anos, principalmente depois que o Congresso votou a PEC que estabeleceu o teto dos gastos públicos, fato que provocou uma imensa onda de crescimento da pobreza extrema no país, como é possível observar simplesmente andando pelas ruas das grandes cidades. Temer e Bolsonaro nunca tiveram qualquer preocupação em corrigir isso e não é por outro motivo que foram dois "governos" que receberam o apoio incondicional do empresariado.

A eleição de Lula, em 2022, no entanto, surgiu como a possibildade de uma mudança nesse cenário. E essa talvez seja a principal razão - certamente não a única - da Reforma Fiscal, isto é, uma mudança que pode representar um maior equilíbrio na arrecadação de impostos e uma maior determinação distributiva dos recursos públicos. Resumo: todo mundo paga impostos, de alguma forma, e os setores carentes da sociedade brasileira, se beneficiam das reformas sociais. Mas se é essa a lógica, a isenção fiscal (ou a tal da desoneração) não é possível. E os empresários não se conformam com isso.

Mesmo assim, mesmo diante dessa obviedade, convenceram os senadores que integram os grupos lobbistas do capital, a confrontar o Poder Executivo com o retorno à desoneração. Lula foi ao STF e o STF manteve a posição do governo: a desoneração não existe mais. Haddad foi taxativo: também os congressistas têm responsabilidade no equilíbrio fiscal do país. Ou seja: ou o Parlamento pensa no interesse nacional ou pensa no interesse privado. Com sua decisão, o STF colocou as coisas, provisoriamente, no lugar.

A sociedade brasleira está diante de mais um dos confrontos que põem em lado opostos dois modelos distintos de desenvolvimento. E a mentira sobre os supostos benefícios da desoneração está claramente vinculada a um desses modelos. 

J.S.Faro

"Fui ao Pacaembu e voltei com o coração apertado..."

Vou voltar ao assunto das obras no estádio do Pacaembu porque essa situação está me incomodando muito mesmo. Walter Casagrande (no Uol).

Na sexta-feira passada escrevi um texto sobre a vergonha que a empresa Allegra, responsável pelo complexo, nos fez passar com o cancelamento forçado e necessário do show de aniversário de 83 anos do Rei Roberto Carlos. Queriam realizar esse evento sem a mínima segurança para as pessoas, no meio de obras, andaimes, tudo que não faz parte de um show. A lista de irregularidades é enorme e mesmo assim essa empresa ia desrespeitar a ordem da prefeitura. Com lucidez, o município agiu rápido e interditou o Pacaembu para impedir um evento que poderia terminar em tragédia.

Depois disso, o Juca Kfouri escreveu sobre outros danos que essa empresa está criando no complexo inteiro. Rachaduras, vazamentos no Museu do Futebol, com a Praça Charles Miller virando um depósito de entulho…

(continue a leitura) 

Pois bem, hoje, sexta-feira, acordei cedo e fui ver pessoalmente as obras e os danos que tudo isso está causando. Fiquei perplexo com a falta de cuidado, o descaso, o desrespeito com um lugar histórico para a cidade e para todos os paulistanos. Essa empresa colocou todos os banheiros químicos na frente da entrada do museu, que hoje recebe 50 pessoas aproximadamente. É um absurdo… 

Conversei com pessoas do museu e da loja de esportes que tem no local. Havia vários ônibus de escolas e excursões de todos os lugares para se deliciarem com a história do nosso futebol. Mas hoje, por causa do desleixo da empresa Allegra, já não tem uma entrada atrativa.

Fui na loja e comprei duas camisas retrô. Uma do Flamengo e outra do Vasco de 1973, número 10. Aproveitei e perguntei o quanto as obras estão afetando negativamente a loja. Gente, é desesperador o que as pessoas da loja me falaram. Caiu demais o número de clientes e de interesse para pelo menos entrarem para ver essas lindas camisas antigas… 

A Praça Charles Miller, que é um cartão postal da cidade, com a arquitetura da entrada do estádio do Pacaembu ao fundo, virou um lugar de destruição e não de construção. A grama linda ao redor da praça, que na minha adolescência ficava com meus amigos sentados ali admirando a lindeza do estádio iluminado à noite, virou um matagal. O mato está altíssimo, feio parece mais um terreno baldio do que a linda praça que sempre foi.

A feirinha tradicional está lá encaixotada por entulhos, banheiros químicos, escritórios de madeira. Enfim, a empresa não tem a mínima preocupação, sem nenhuma ligação emocional com esse símbolo da nossa cidade. Está tudo atrasado e no desespero de mostrar algum resultado e também querer jogar na cara dos críticos, como eu, que tudo está andando.

Porém, o preço está sendo muito alto. Em nome de uma "modernidade discutível" estão destruindo a nossa história e tudo que tem ao redor. O aspecto do Pacaembu é de um local que foi vítima de um terremoto de nove pontos na escala Richter.

Não estou inventando e aumentando nada porque estive lá nessa manhã.

Dá uma dor enorme no coração. Ouvi pessoas emocionadas me agradecendo por estar chamando a atenção para essa destruição desde o início. Alguém pode me perguntar assim: "Casão, você acredita que o Pacaembu ficará do jeito que a empresa Allegra está dizendo?" Bom, eu acredito até porque estão pressionados a deixar o estádio moderno e confortável. Mas qual será o preço que a Praça Charles Miller e tudo por ali vão pagar?

Queremos um belo Pacaembu e com tudo que o local nos oferece intactos. Nós não queremos só o estádio. Queremos a praça, o museu, a loja, a banca de jornal, a feirinha e a grama do jeito que sempre foi - ou melhor.

Sou paulistano e não vou sossegar. Vou ficar em cima dessas obras até ficarem prontas. Não sou contra a modernidade. Sou contra o descaso, a falta de respeito e de consideração que a empresa Allegra parece ter com a nossa cidade. Amo São Paulo com tudo que ela tem. Devemos nos unir para cobrar proteção à Praça Charles Miller e tudo de cultural que ela nos oferece…

# A matéria integral do UOL está disponível aqui

Cartilha da abordagem policial induz ao preconceito

Em meio ao noticiário sobre a agressão injustificada sofrida por um cidadão (leia aqui), o anúncio do lançamento de  Cartilha que procura evitar a arbitrariedade em situações de abordagem policial. É uma boa notícia? Pode ser que não...

De boas intenções o inferno está cheio, diz o ditado popular... 

A cartilha que procura esclarecer os policiais sobre como proceder em situações de 'abordagem' comete um erro grave, talvez em prejuízo da 'boa intenção' do projeto. Refiro-me à construção de sentidos presente logo na capa da publicação (observe a ilustração). O que se lê ali é uma construção carregada de signos que produzem um enunciado claro de segregação e de discriminação
(expandir)

Pois então...

O que se vê também é a imagem de um tipo social cuja identidade é caracterizada como inerente ao sujeito alvo de uma possível abordagem: um jovem afrodescendente, cuja aparência revela um estilo copiado e seguido por milhares de outros jovens dispersos por toda a cidade, em especial nas quebradas da periferia onde o 'jeito' da distinção visual compõe a subjetividade da moçada. É um perigo associar essa construção distintiva à suspeita de criminalidade e, com isso, torná-la alvo das abordagens policiais. 

Perigo por quê? Porque a associação de ideias presentes na imagem cria um estigma conceitual que pode ficar incorporado aos critérios da ação policial - fato que me parece ir na contramão da intenção da cartilha. Ou não? Ou estou enganado e a intenção da cartilha é mesmo a de instalar no sujeito-policial a animosidade em relação a uma determina alteridade simbólica?

Acho que o governo do estado, na figura sempre nervosa e estressada do governador Tarcísio, precisa modular (e civilizar) seus impulsos  e cercar-se de pessoas  que não desempenhem seus papeis com o sentimento confuso de uma 'vingança' contra o que quer que seja, como me parecem expressar dois de seus secretários - o da Segurança e o da Educação. Ambos corroem a administração pública por sua incompetência e arrogância e, com isso, toda a gestão da coisa pública fica comprometida, em especial no caso da  segurança cujos erros  (a letalidade da ação policial é um deles) tem efeito imediato  sobre a sociedade. O malefício simbólico da cartilha já está feito e não dá para 
voltar atrás porque seria preciso 'doutrinar' primeiro quem a idealizou, mas convém mudar o rumo da orientação que parece inspirar o documento, ou aquela cena lamentável na matéria que exibiu o policial jogando gás pimenta nos olhos de um cidadão, sobre o qual havia apenas a falsa denúncia de um desafeto, vai se repetir, sabe-se lá com quais possíveis consequências trágicas.

São consequências trágicas que a cartilha quer evitar. Ou será que tem gente no governo do estado que gosta delas e quer apostar na psicologia da violência e do medo como doutrinas da administração?

J.S.Faro

Em SP: 'Não conseguia respirar'

Leia aqui a matéria do G1

Pensatas para o fim de semana

João Candido, o Almirante Negro, anistiado em 2008, continua ainda hoje sendo punido pela ousadia de ter desafiado o poder da elite escravocrata no Brasil

ABAIXO A CHIBATA!

Pois então...

O almirante Marcos Olsen (na foto ao lado), com a autoridade de que se encontra investido, perdeu uma boa chance de marcar sua presença na vida nacional com um gesto de grandeza: reconhecer como herói nacional o Almirante Negro João Cândido, líder da revolta que pôs fim, em 1910, ao castigo humilhante da chibata, em movimento que tomou conta do encouraçado Minas Gerais (continue a leitura)

A rebelião se estendeu para outras embarcações e algumas delas chegaram a bombardear o Rio de Janeiro.

O Presidente da República na época, Hermes da Fonseca, reconheceu os motivos dos revoltosos, mas voltou atrás, prendeu e mandou executar vários dos integrantes do movimento.

João Cândido só foi anistiado em 2008, mas a Marinha se recusa até hoje a incorporá-lo postumamente na força e sua família nunca recebeu qualquer indenização pelo sofrimento que experimentou. Da mesma forma, a concessão da patente simbólica que a anistia lhe permitia jamais foi concedida. João Cândido morreu no Rio em 1969 (excerto parcial da matéria de autoria de Juliana Silva publicada em Brasilidade Negra)

Leia mais: # Conheça João Cândido que há 112 anos liderou a revolta da Chibata (Tom Farias, Folha) # Comandante da marinha quer barrar homenagem a João Cândido (Jéssica Alexandrino, DCM) # Chibatada na História (Bernardo de Mello Franco, Democracia Política e Novo Reformismo)

Dias prometem ser tensos no Planalto

Zanin suspende desoneração da Folha
# leia em
RBA e Carta Capital

Reação instantanea

# Pacheco vai para cima de Lula (Carta Capital)

Tensões 2

# Antigos aliados em choque (Tab, Uol)

O porsche e o andar de cima

O acidente que matou o motorista de aplicativo sintetiza as tensões de um país estamental e profundamente desigual. Visto de perto, o episódio chega a ser um case de sociologia aplicada, um laboratório em carne viva disponível para o mais idiota dos defensores do capitalismo

Leia por aqui as matérias do Uol e da Folha: # Reinaldo Azevedo: Caso Porsche escancara o Brasil dos pobres e o Brasil dos nhonhôs # "Não lembro de nada", diz motorista aparentemente embriagado # "Não queriam socorrer a vítima", diz testemunha # "Pega ele", grita PM.

Com o que há de pior...

Tem de tudo no grupo de safados que apoia a eleição de Nunes para a prefeitura de SP este ano: como disse Rui Falcão, só não tem povo. E muito menos compromisso social. Juntos ou separados, são uma das piores ameaças para cidade.

Leia aqui a matéria da Folha

Em defesa da TV Cultura

Uma TV pública que não pertence ao Estado nem serve a governos. Maria Hermínia Tavares, Folha (expandir)

O estado de São Paulo tem uma longa história de políticas públicas inovadoras —no conteúdo, na forma de organizar a gestão e na entrega de resultados. Isso é especialmente verdadeiro nas áreas de ciência e cultura. Aí o controle estatal direto nunca traz bons frutos, pois tais atividades precisam manter profilática distância dos governos e da política partidária.

Criar organizações públicas não estatais, capazes de sobreviver até às grandes reviravoltas da política, foi ingrediente indispensável da pujança científica e cultural paulista. Basta citar a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, as três universidades paulistas, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Fundação Butantan e a Fundação Padre Anchieta, que gere a TV Cultura. Cada qual com seu modelo jurídico: fundação pública; autarquias de regime especial; organização da sociedade civil de interesse público; ou fundações privadas de interesse público.

Todas, a seu modo, tiveram de lidar com governos que, ignorando o espírito da coisa, tentaram influir —quando não interferir— em suas atividades, reduzindo-lhes a necessária autonomia. Foram muitos os episódios de assédio político na TV Cultura e na fundação que a dirige, como bem observou Roberto Muylaert em artigo publicado nesta Folha, no domingo (21).

Nova investida está sendo ensaiada pelo atual governo. A Secretaria da Cultura contingenciou 100% dos recursos para investimentos. Agora, por iniciativa do deputado Guto Zacarias (União Brasil), a Assembleia Legislativa aprovou a CPI da Fundação Padre Anchieta (FPA). Vindo do MBL (Movimento Brasil Livre), Zacarias é parlamentar novato, sem experiência que se conheça nas áreas da cultura, jornalismo e TV pública. É também —pasmem!— vice-líder do governo na Assembleia Legislativa.

O programa Roda Viva, da TV Cultura - Nadja Kouchi/TV Cultura

Sem propósito definido, a CPI se baseia em vagas acusações de mau uso de recursos públicos, quadro de funcionários balofo, eleições fraudadas.

Nada disso se sustenta. Quarta colocada em audiência entre as TVs abertas, a Cultura é reconhecida pela programação alternativa à das emissoras comerciais. E isso com os recursos públicos que lhe são destinados por lei representando apenas 60% de seu orçamento —o que só cobre o pagamento dos 743 funcionários celetistas.

Mas, acima de tudo, com sua existência, a Fundação Padre Anchieta mostra a possibilidade de manter uma emissora pública que não pertença ao Estado, não sirva ao governos, nem se limite a oferecer mais do mesmo ao público; antes, trate de proporcionar o que ele nem sabe que quer.

Intermitências

Malafaia, quem diria...

# Ministros do STM homenageiam bolsonaristas que atacam o Judiciário
(Pública)

Estado de direito ou Estado de Sítio?

# A transição inacabada: a militarização do Estado 

(IHU)

Argentina: pode ser o fim do pesadelo Milei?

Um milhão de estudantes vão às ruas, nos maiores protestos contra o presidente. Como sua política de neoliberalismo extremo destroça direitos, favorece o agro exportador e forja um país com preços europeus e salários miseráveis?

# Leia mais em Outras Palavras, no GGN e em A Terra é redonda

O que há de novo?

O desmonte

Tarcísio avança sobre a TV Cultura, que enfrenta corte de verbas e pode ser privatizada


"[A última investida de Tarcísio] é sobre a Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura, e um dos símbolos da sociedade civil paulistana. Ao longo do tenebroso período bolsonarista, a Cultura conseguiu se safar relativamente inteira, com exceção de alguns âncoras das rádios. 

"A verduga da Fundação Padre Anchieta é a Secretária da Cultura, Economia e Indústria Criativa do Estado de São Paulo, Marilia Marton. Apenas reeditou a perseguição que o governo Bolsonaro empreendeu contra a Fundação".

Luis Nassif, GGN (expandir)

Sua primeira atitude foi cortar totalmente as verbas de manutenção da Fundação – aquelas destinadas a pagamento de salários, reformas, manutenção e lançamento de programas. Em março houve o bloqueio de R$ 35 milhões para a fundação, que teve que se virar com projetos para terceiros.

Depois, entrou em uma série de conflitos conceituais:

Financiamento: A Secretaria da Cultura questiona o alto custo de produção da TV Cultura, defendendo uma redução de despesas. A FPA argumenta que a verba recebida é insuficiente para manter a qualidade da programação e que cortes afetariam negativamente os serviços prestados.

Gestão: A Secretaria da Cultura deseja ter maior controle sobre a gestão da FPA, incluindo a nomeação de diretores. A FPA defende sua autonomia como entidade de direito privado, reivindicando liberdade para tomar decisões estratégicas.

Conteúdo: A Secretaria da Cultura busca direcionar a programação da TV Cultura para um público mais amplo, com foco em entretenimento e divulgação dos feitos do governo. A FPA defende a manutenção de uma programação educativa e cultural de qualidade, mesmo que direcionada a um público de nicho.

Futuro da FPA: A Secretaria da Cultura avalia diferentes modelos para o futuro da FPA, incluindo a privatização ou a fusão com outras entidades. A FPA defende sua permanência como instituição autônoma, com foco na produção de conteúdo educativo e cultural.

Antes disso, não passou incólume pelo governo José Serra, mas por puro oportunismo de Paulo Markun, que assumiu a presidência. Serra estava em fim de governo estadual e Markun ambicionava ser reconduzido ao cargo. Para mostrar serviço, rompeu o contrato com Heródoto Barbero, por críticas ao preço do pedágio, e a mim próprio, por críticas que fiz à iniciativa de Serra de gastar publicidade da Sabesp no Nordeste.

Mas, em ambos os casos, foi decisão individual de Markun. Quem me contou, na época, foi o Secretário de Cultura João Sayad. O arroubo de Markun acabou irritando o próprio Serra, que foi responsabilizado pelas demissões.

Depois de ter sido desligado da Fundação, por manter postura independente, recebi convite da TV Brasil. E fui alvo de reportagem sensacionalista da jornalista Vera Magalhães, na Folha, me “acusando” de ter sido contratado sem licitação. A repórter ouviu a próprio FPA, que falou o óbvio: não podia haver licitação para a contratação de comentaristas. Vera cortou esse trecho da reportagem. E o factóide quase gerou uma CPI proposta pelo deputado Roberto Freire.

Curiosamente, a única irregularidade da FPA ocorreu com a própria Vera, âncora do Roda Viva: a prorrogação do contrato de Vera com a FPA, assinada quatro meses antes do término do anterior, violou a lei proibitiva de assunção de despesas em final de gestão.

Nenhum dos episódios teve responsabilidade da FPA. Foram atitudes individuais de jornalistas ambiciosos. O modelo institucional da FPA, até agora, tem permitido a manutenção de uma programação de qualidade.

Governo do Estado abandona expansão do Metrô

Nova Raposo: outro crime de Tarcísio contra São Paulo

Nos últimos dias, veio à tona mais um projeto que promete mexer com a cidade: o governo estadual anunciou a concessão de várias rodovias incluindo o trecho da Rodovia Raposo Tavares entre a capital e Cotia. Mauro Calliari, Folha (expandir)

No trecho da chegada a São Paulo, o projeto pode afetar bairros inteiros e causou reação de moradores, que já começaram a se articular para tentar entender e eventualmente se defender dos efeitos de uma mudança gigante.

Como encarar um projeto com potencial de interferência enorme na cidade e que parece querer prescindir de debate?

Estrada é diferente de rua

A cidade de São Paulo é um nó. Estradas entram e saem diretamente do município, o que foi a razão para a criação do Anel Viário, que está incompleto até hoje.

Esse é a contradição: a estrada é construída para circular em alta velocidade. Quando chega à região urbanizada, porém, muda de caráter, precisa se integrar à cidade, acomodar comércios, dar passagem a moradores, oferecer acessos a ônibus urbano, bicicletas e pedestres. As duas coisas não combinam.

Existe até um termo usado por urbanistas americanos: stroad, mistura de street (rua) e road (estrada). A via que tenta ser as duas coisas não é nem uma coisa nem outra.

Não por acaso, o trecho inicial, da capital até o km 34, em Cotia, ficou fora do primeiro programa de concessões da gestão Mário Covas, em 1998. Ao trazer a concessionária para o trecho urbano, revela-se a intenção de pedagiar o trânsito de pessoas que trafegam dentro da própria cidade.

A distância entre as esferas da gestão parece jogar contra a cidade

O governo estadual é responsável pelo transporte entre cidades e pela rede de trilhos. Mesmo assim, não se concebe um novo projeto sem a participação do governo municipal. A Prefeitura de São Paulo está esperando detalhes para se manifestar, o que não parece ser um começo promissor se a ideia é justamente adequar projetos às necessidades da cidade.

Na outra ponta, há outro conflito, advindo da pergunta óbvia que se faz quem olha o mapa. O que vai acontecer com Regis Bittencourt, que chega praticamente ao mesmo ponto da capital? Algumas soluções poderiam ser integradas, mas nada está previsto, o que parece revelar a distância entre a gestão federal (Regis) e a gestão estadual (Raposo).

Comunicação e participação

O processo da Nova Raposo está no mínimo mal comunicado e só gerou reações após uma reportagem em O Estado de S. Paulo. Há duas audiências públicas nessa fase, sendo apenas uma em São Paulo. Não parece republicano nem civilizado começar uma conversa sem convidar moradores, comerciantes, conselheiros, técnicos, representantes do Executivo e Legislativo das cidades por onde passa a estrada.

Ideias descasadas de planos urbanísticos

São Paulo acabou de aprovar a revisão do Plano Diretor, um processo difícil, cheio de idas e vindas. Não há nele –nem no Plano de Mobilidade– nada a respeito da Nova Raposo. Aliás, também não se discutiu outra ideia do governo estadual, a de mudar a estrutura administrativa para os Campos Elíseos.

Premissas antigas para um projeto contemporâneo

O projeto prevê duplicação, faixas adicionais, vias marginais, a construção de pontes e túneis e passarelas para pedestres. Chama a atenção que uma escala de intervenções tão grande possa ser concebida sem considerar alternativas e impactos. Onde estão as considerações sobre o transporte público? Como ficam os ônibus nessa nova configuração?

E, principalmente, onde está o metrô? Ora, há um projeto justamente para essa região: a nova linha 22–Marrom do metrô, que vai ligar São Paulo até a Granja Viana (fase 1) e Cotia (fase 2). O projeto da nova linha está previsto para 2026, quando as intervenções rodoviárias provavelmente já estarão em andamento ou concluídas. Será que ela não poderia aliviar parte considerável do trânsito que se pretende combater agora? Não seria o caso de apressar os estudos para poder fazer uma escolha mais racional?

O impacto nos bairros

A falta de detalhamento e o tempo escasso não permitiram nem que se estude em detalhes os impactos, mas é possível ver no vídeo do site uma extensa rede de viadutos, túneis e derrubada de árvores a partir da chegada a São Paulo. Ora, nós já vimos esse filme em 1971, quando a construção do Minhocão trocou qualidade de vida por mobilidade, sugando a vitalidade do centro pelos lugares onde passou.

A fluidez da Raposo Tavares é importante. O custo do trânsito parado tem impacto econômico, ambiental e de qualidade de vida, assim como a segurança dos pedestres que precisam cruzar a estrada. Entretanto, é possível que haja condições de melhorar essa fluidez, resolvendo gargalos pontuais da estrada sem ter que comprometer o futuro de bairros que circundam a estrada.

A melhor solução será aquela que leva em consideração as infraestruturas existentes, como a segregação de ônibus e o Rodoanel, as futuras, como o metrô e trem e, principalmente, a vida que acontece na cidade que ela vai impactar.

Leitura ampliada

# Nova Raposo requer pedágio urbano e alcança área de casas e parque em SP (Folha)
Governo mente quando diz que projeto foi debatido e também mente quando diz que mudanças vão desafogar rodovia

Eleições SP 2024

Amigos do prefeito disputam contratos milionários na prefeitura

Empresas que tentaram licitação de R$ 19 milhões são ligadas a dirigente de associação na qual prefeito é presidente. Amanda Audi, Pública (expandir)

Leia também a matéria anterior de Amanda Audi (também na Pública):
Nunes contrata por R$ 19 milhões diretor de Associação que ele mesmo preside

As três empresas que disputaram a licitação de R$ 19 milhões na qual a prefeitura de São Paulo comprou armadilhas contra o mosquito da dengue têm ligação direta ou indireta com o empresário Marco Bertussi, próximo ao prefeito Ricardo Nunes, revela nova apuração da Agência Pública. A Pública mostrou que Nunes e Bertussi são presidente e diretor de uma associação de empresas de controle de pragas.

Duas concorrentes da licitação são do próprio Bertussi – a Biovec (a vencedora) e a TN Santos. Agora, a apuração revela que a terceira empresa a disputar a concorrência, a Biolive Proteção Ambiental, também tem relações com Bertussi.

A Biolive, de Salvador, na Bahia, está em nome de Luiz Henrique Faria Martins. Ele é um dos donos da DDM Cobrança Empresarial, uma empresa sediada no Rio de Janeiro que faz parte do Grupo DDM, especializado em cobrança de dívidas. O Grupo DDM pertence a Christiano di Maio, que é sócio de Bertussi em duas empresas – justamente a Biovec e a TN Santos. 

A licitação, feita por meio de pregão eletrônico, necessitava que ao menos três fornecedores enviassem uma cotação para ocorrer. A prefeitura entrou em contato com 19 empresas de controle de pragas, mas apenas as três empresas apresentaram proposta comercial. As demais informaram que não tinham os equipamentos pedidos pelo edital, não atuavam em São Paulo ou não responderam.

“Pode haver uma mácula aos princípios da moralidade pelo vínculo entre o prefeito e o empresário ofertante de um produto que, ao que tudo indica e o Ministério Público investiga, pode ter sido superfaturado”, diz Marcelo Nerling, professor de direito público da Universidade de São Paulo (USP). “Chama atenção o fato de que nem a Câmara Municipal e o Tribunal de Contas investiguem. Deve haver justificativa para cada fornecedor e o preço ofertado deve estar compatível com o de mercado”, continua.

POR QUE ISSO IMPORTA?

Todas as empresas que disputaram a licitação estão ligadas a um mesmo empresário, que é diretor numa associação presidida pelo prefeito de São Paulo

Foi Ricardo Nunes quem abriu as portas para a empresa de Bertussi se aproximar da prefeitura quando ele era vereador. A licitação é hoje alvo de representações no Ministério Público

A DDM Cobrança Empresarial, do dono da Biolive, funciona no mesmo prédio comercial do Grupo DDM, na avenida Ayrton Senna, no Rio de Janeiro. O e-mail usado para registrar a empresa na Receita Federal é de Di Maio.

Na Biovec, Di Maio se tornou sócio e administrador em julho de 2022, com participação de R$ 1 milhão no capital social. No mês seguinte, ele deixou a Biovec, mas segue como único sócio da CMDM Participações, empresa que gere ativos e é sócia da Biovec. Na TN Santos, ele é sócio administrador. 

Quando a licitação paulista ocorreu, no início do ano passado, Di Maio fazia parte das duas sociedades, a Biovec e a TN Santos, com Bertussi. Agora, sabe-se que a outra competidora, a Biolive, também é ligada a ele. 

A licitação de compra das armadilhas já é investigada pelo Ministério Público de São Paulo por suspeita de superfaturamento. Cada armadilha custou cerca de R$ 400 aos cofres públicos, enquanto poderia ter sido fabricada por menos de R$ 10, segundo apuração da Folha de S.Paulo. Após a reportagem da Pública, o órgão recebeu representações para investigar também a ligação de Nunes e Bertussi.

Empresa baiana que disputou licitação em SP fez proposta mais cara

Apesar de ter se candidatado a um contrato milionário com a maior prefeitura do país, não há registros de que a Biolive já tenha prestado serviços para a prefeitura de Salvador ou o governo da Bahia, locais onde está sediada. Também não há nenhuma informação em sua página na internet sobre as armadilhas que ela se propôs a fornecer para São Paulo.

A Biolive se apresenta como uma empresa de controle de pragas, lavagem automotiva, desinfecção de ambientes e tratamento de fossas sanitárias e efluentes. Ela foi aberta em 2006. Os telefones informados estão desativados. Tentamos contato por e-mail, mas não houve resposta.

O endereço que consta no site da empresa é, hoje, de um serviço de emergências médicas. Um atendente disse à reportagem que a Biolive se mudou do local “há anos”, mas não soube informar para onde.

Um outro endereço, registrado pela empresa na Junta Comercial da Bahia, é de uma rua residencial. Ele é o mesmo da Truly Nolen Salvador, do grupo ao qual pertence a TN Santos, de Bertussi, que também participou da licitação. 

Como revelado pela Pública, enquanto as propostas comerciais enviadas pela TN Santos e Biovec para a licitação na prefeitura detalham os equipamentos que seriam fornecidos conforme o edital e fazem uma apresentação das empresas, o da Biolive se limitou a apenas citar os valores dos produtos, sem sequer usar uma logomarca ou papel timbrado.

Os preços da Biolive eram expressivamente mais caros do que os das concorrentes. A empresa se propôs a vender as armadilhas e o sachê inseticida para matar larvas por R$ 33,3 milhões, valor mais de 50% mais alto do que a proposta vencedora, da Biovec, de R$ 21,3 milhões.

Relembre: contrato de R$ 19 milhões começou com doação de empresa do mesmo sócio

A TN Santos é uma velha conhecida da prefeitura de São Paulo. Em 2019, o então vereador Ricardo Nunes articulou para que o município aceitasse participar de um “projeto-piloto” para testar armadilhas contra o mosquito cedidas pela empresa. Na época, a TN Santos acordou com a prefeitura de Bruno Covas uma doação de armadilhas no valor de R$ 118,2 mil.

O projeto resultou na recomendação para que a licitação fosse realizada posteriormente, em 2022, sob a gestão de Nunes. A disputa resultou na compra das armadilhas fabricadas pela Biovec. Em outras palavras, uma das empresas de Bertussi e Di Maio fez uma doação para a prefeitura que, anos depois, foi usada como argumento para realizar a licitação de R$ 19 milhões vencida por outro negócio deles.

As armadilhas são um dos investimentos mais caros pagos pela prefeitura no combate à dengue em meio à pior crise da doença desde 2015. Recentemente, Nunes declarou emergência em saúde por dengue. Apenas cinco distritos da cidade estão sem epidemia da doença.

Armadilhas foram adquiridas a R$ 400 cada

Sem manutenção, as armadilhas perdem a eficácia e estão virando criadouros do mosquito, segundo denúncias recebidas pela reportagem e reveladas pela Pública no início do mês. Há registros de armadilhas há meses sem troca da água e veneno de seu interior, o que faz com que as larvas se desenvolvam e possam ajudar a espalhar a doença.

A Pública procurou os citados nesta reportagem. Apenas a Biovec respondeu, em nota: “A Biovec Comércio de Saneantes LTDA é uma empresa que nasceu com o objetivo de desenvolver, entre outros, programas de combate a mosquitos, especialmente do gênero Aedes, atuando na defesa da saúde pública. A Biovec afirma que todas as contratações realizadas pela empresa seguiram rigorosamente suas políticas de compliance e as legislações vigentes, reafirmando assim seu compromisso com a plena integridade”.

Leia também em A Terra é redonda: # Esquerda brasileira e tradição republicana (entrevista com Luiz Werneck Vianna) # Grandes herois do ressentimento brasileiro (Alexandre Carrasco)

Proletariado perdeu seu papel; mas universalizar os direitos e riquezas é caminho para retomar o projeto emancipatório sob uma condição: recuperar o papel do Estado (Outras Palavras)

Estudantes protestaram contra cortes no orçamento das universidades públicas promovidos pelo governo Milei e teve público de 500 mil pessoas, segundo a Universidade de Buenos Aires (G1)

Bolsonaro volta às ruas para tentar escapar da prisão

Josias de Souza, Uol (expandir)

Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, o capitão recorre à empulhação de atos como o deste domingo, em Copacabana.

Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias que Bolsonaro adota: a declarada e a real. A concentração de poderes nas mãos de Alexandre de Moraes fornece material para a confusão.

No gogó, Bolsonaro mantém Moraes na alça de mira porque o Brasil está "perto de uma ditadura" e "o mundo toma conhecimento do quanto está ameaçada a nossa liberdade de expressão." (continue a leitura)

Festa nos EUA

# 20 de abril: o Dia da Maconha nos Estados Unidos (G1)

 Diferentemente do Brasil, onde a proposta de uma PEC foi aprovada para tornar a simples posse de drogas um crime independente da quantidade, nos EUA a maconha é legal em 1/2 dos estados

Voltem para casa companheiras e companheiros cientistas 

# Governo Lula deve investir R$ 1 bilhão para repatriar cientistas 

Presidente do CNPq fala em critica 'míope' dos que divergem da iniciativa (Carta Capital)

Menos é mais: a infomania que se abate sobre nós

O universo digital tornou-se o paraíso dos pesadelos e, na maioria das vezes, um culto à estupidez. Marília Pacheco Fiorillo, A Terra é redonda (expandir)

1.

O universo digital é o paraíso dos pesadelos: a epidemia de opioides (como fentanil) que hoje mata mais pessoas que algumas guerras só tem um paralelo, igualmente mortífero: o patológico vício em redes digitais.

Esta é a opinião do filósofo coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han, que em seu livro Não-coisas -reviravoltas no mundo da vida, alerta para o insidioso e altíssimo risco de que o universo digital destrua a humanidade mais rápido que a crise climática, por exemplo. Para Byung-Chul Han, vivemos sobrecarregados e esgotados por zarabatanas de informações, a maioria mentirosa, o que nos transforma em zumbis desorientados e narcisistas. O mundo tangível se confunde com o mundo virtual, gerando uma sociedade deprimida, embrutecida e desmiolada. É a “sociedade do cansaço”.

A obsessão com o compartilhamento de informações e dados (sobretudo privados) nos converte em “infômanos” submersos num turbilhão de estímulos que corroem nossa estabilidade e tranquilidade, eliminando os pequenos rituais cotidianos, a pausa necessária à reflexão, a contemplação, o convívio.

“No começo da digitalização, se sonhava que ela substituiria o trabalho pelo jogo. Na verdade, ela explora impiedosamente a pulsão humana pelo jogo”, diz Byung-Chul Han. E o maior dispositivo de subjugação, vigilância e controle sub-reptício é o smartphone/celular, ao mesmo tempo uma prisão e um confessionário digital. O celular na mão é o rosário contemporâneo. E os likes são o amém digital.

No romance de Aldous Huxley Admirável mundo novo, o totalitarismo não operava pela violência explícita, mas pela administração de uma droga do prazer, o “soma”, que fazia de todos uns cordeirinhos satisfeitos. Assim é o universo digital, um anestésico potente. Isso no médio prazo. A curto prazo, a rede digital tem se mostrado uma poderosa ferramenta para fraudes, golpes, falcatruas, crimes financeiros e até armadilha para assassinatos.

2.

Notem o caso Elon Musk versus ministro Alexandre de Moraes, como ficou conhecido, mas que poderia ser definido concisamente como a luta agônica entre o vale tudo (salve-se quem puder) do poder cyber econômico versus as blindagens legais e legítimas para a proteção do cidadão-internauta.

Invocar a liberdade de expressão, o atual mantra da extrema direita, é para lá de ridículo. É estrambótico, estapafúrdio. Costumava ser o clamor típico (de serena pronúncia e empolada elocução) da “direita caviar”, aquela que ciosamente empunha tecnicalidades jurídicas quando se trata de salvar a pele de “moças ilibadas” ou apaniguados – nada diferente, passados quase 50 anos, da tese da “legítima defesa da honra” que absolveu Doca Street, assassino confesso de Ângela Diniz.

Doca Street apenas havia exprimido um descontrole compreensível, “sob forte emoção” diante de uma femme fatale provocadora –matou “por amor”. Não havia X, tik, insta e congêneres. Se houvesse, a decisão seria aplaudida por milhões de seguidores.

A extrema direita motociata aprendeu direitinho com a caviar, exceto gramática e sintaxe (haja vista o “conge” e o massacre do verbo haver), mas quem liga para a língua portuguesa, pois nem mesmo conteúdo importa, se não for bilioso? Ela macaqueia as mesmas proteicas tecnicalidades para fazer das suas, como liberar sem tornozeleira criminosos graúdos, desde que endinheirados.

É tudo lhano (ops, palavra “caviar”), íntegro, ilibado, perfeitamente compulsável nos parágrafos, alíneas e entrelinhas da lei. Pois a lei é para todos, não? Enquanto isso, as redes associais de direita ganham músculos e exultam!

Já passou da hora de combater essa predatória “infomania” (deglutir sem digerir) com a única arma que temos: não dar cadeira para flechadas digitais escandalosas e injuriosas, aquelas que mais viralizam. É bloquear e evitar o contágio. Mesmo quando a boa intenção é debochar dos absurdos, o efeito bumerangue acaba sendo multiplicá-los. Sim, o sensacionalismo é tentador e atraente, suculento e quase irresistível, pisca de graça para nós… e justamente por isso alicia e adoece tão rápido quanto o crack.

Vamos jogar no lixo o que não provém de fontes com credibilidade, e as fofocas de famosidades (antigamente eram celebridades, pois tinham algum talento além de se intitular influencers).

Estamos cansados de saber os efeitos devastadores desta mídia associal: a quantidade de suicídios juvenis que ela provoca, as toneladas de ódio que ela instiga, as megatoneladas de mentiras e calúnias. Sem falar dos abusos sexuais, redes de pedofilia, negócios criminosos, assassinato de reputações ou compras instantâneas de drogas, notadamente os tais opioides que geram lucros astronômicos para a indústria farmacêutica.

3.

Mas nem tudo no universo digital é o culto à estupidez.

Em um artigo publicado no jornal Washington Post em 8 de fevereiro deste ano, um grupo de economistas das universidades de Chicago, Berkeley e Colonia (Köln/Alemanha) mediu o quanto as pessoas pagariam para que estas plataformas sumissem do mapa. Resultado: a maioria pagaria bem, pois achava que não perderia nada se ficasse sem elas. Elementar: somos bombardeados com tal volume e velocidade de informações falsas, estúpidas e inúteis (embora não inócuas) que a atual infomania galopante (acumular, acumular, acumular obsessivamente o que cai na rede) não nos deixa tempo para selecionar, ignorar e, principalmente, pensar.

Isso quanto a informações. Já quando se trata de consumismo, a posição se inverte. Os novos endinheirados penhorariam a alma para adquirir um Rolex e não se sentir um perdedor diante do vizinho, primo ou amigo que ostenta esta ou outras grifes. Não é exatamente que queiram. É que ‘não possuir’ os transformaria em párias no seu círculo social. Que pacto fáustico mequetrefe, mixuruca, brega e perverso. Isso se chamava cobiça (desejar só por impulso de imitação). E, pior, o Rolex do vizinho provavelmente é falso.

Menos é mais. Mais confiável, seguro e proveitoso. E mais chique, até.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).

Veja neste link todos artigos de



Todo apoio às decisões de Moraes

# Os perfis citados em decisões de Moraes e por que foram suspensos (Estadão) # Comitê dos EUA defende até grupo neonazista para atacar Moraes (Intercept)

A imprensa brasileira está em 2o lugar entre as que mais recebem dinheiro das big techs. Leia a postagem do site feita em fevereiro e entenda a troca de carícias entre alguns dos nossos 'jornais' e Musk na agressão ao STF (leia mais)

Os sabujos da extrema direita e os ataques à soberania do Estado brasileiro

A leniência com que o conservadorismo  reacionário trata o crime cometido contra a soberania nacional no episódio da divulgação por Elon Musk de decisões do ministro Alexandre de Moraes, a figura do Judiciário que salvou a democracia brasileira das investidas criminosas do bolsonarismo e de seus seguidores (leia a postagem abaixo).

Ordem Nacional do Mérito para Alexandre de Moraes

A violência à liberdade de expressão é justamente aquela que se volta contra os fundamentos legítimos da informação e não contra os 'produtos' manipulados pelas esferas de poder, como tem ocorrido com as práticas de Musk e da facção bolsonarista que o apoia (expandir)

Pois então... paciência tem limite

Dias a fio a mesma farsa discursiva dos 'grandes' jornais. A proibição, pelo STF, da divulgação de notícias cujo objetivo não é propriamente jornalístico, mas destinado a confundir o escrutínio da esfera pública em torno do Estado e do governo, essa proibição é uma violência contra a liberdade de expressão e deve ser rejeitada quaisquer que sejam os meios para que se consiga isso, diz a extrema direita em seus disfarces.  Na verdade, estamos muito longe disso. A violência à liberdade de expressão é justamente aquela que se volta contra os fundamentos legítimos da informação e não contra os 'produtos' manipulados pelas esferas de poder, como tem ocorrido com as práticas de Musk e da facção bolsonarista que encontrou nele um atalho de expressão e de apoio nacional e internacional.

É essa delicada distinção entre uma coisa e outra que as nossas elites não podem revelar, pois que o emaranhado entre elas reforça o senso comum de que as práticas do STF são arbitrárias e, por isso, antidemocráticas. Para a direita fascista, devem ser combatidas. É esse silogismo fundado em premissas falsas que permite a parte da imprensa advogar a negação de seus princípios liberais: a denúncia a uma suposta censura é, a rigor, a defesa da mentira contra qual não só as instituições devem se opor, mas a própria imprensa que se vale dela para alimentar seu projeto autoritário de poder. 

Resta saber: por qual motivo essa operação é realizada? O motivo é torpedear a expectativa de normalidade do governo. Trata-se de um motivo estratégico que sintetiza uma aversão ideológica profunda a essa "mudança de mãos" em que vive o governo brasileiro desde 2002 (16 anos sobre o total de 22 que se seguiram desde a primeira eleição de Lula), uma verdadeira rotina de sobressaltos das classes dominantes para cujo alívio vale de tudo: corrupção, lava jato, apartamentos, sítios, filhos machistas, ministros suspeitos, semi-analfabetismo, apoio a ditaduras estrangeiras, déficit público, estatização, privatização e o diabo... até que se chegue à decomposição da estrutura do Estado - com a desmoralização do poder que, até aqui, ficou fora das armadilhas das elites - o STF. Em suma, e como disse Vargas, o que essa turma não quer é que o povo seja livre.

Na etapa presente o que estamos assistindo é o refinamento dessa velha conspiração e que agora, na sua sinuosidade e hipocrisia, não transparece como tal: o atrevimento indigno de um apelo à intervenção externa - que em nome de uma suposta liberdade de expressão o poder discursivo da mídia vê como legítima, como demonstra a matéria da Folha que me serve de pretexto e para cuja repercussão o STF se vê no constrangimento de se explicar, como se sua soberania - como poder do Estado brasileiro - não o dispensasse disso. Eu realmente gostaria de ler no editorial da Folha, algum dia desses, a defesa de um pedido de desculpas diplomáticas oficiais dos EUA diante da desfaçatez com que estão se comportando os cafajestes parlamentares aliados de Trump de braços dados com os cafajestes aliados de Bolsonaro, inclusive seus filhos... 

Fazer o quê? Primeiro: é preciso radicalizar os procedimentos que 'cancelam' as iniciativas da extrema direita, quaisquer que sejam elas. A menor denúncia de corrupção, de desmandos em relação ao universo dos direitos humanos, da agressividade física dos delinquentes do MBL e assemelhados, qualquer um desses registros deve resultar em pena. Segundo: eu entendo que pela 2a vez na sua passagem pela Presidência da República, Lula enfrenta o desafio da "governabilidade" e a maneira complacente como ele lida com isso pode enfraquecê-lo (como deixam 'quase' claro os enunciados da mídia). Mas também para esse cálculo político há um limite: o "Centrão" tem que ser tratado a pão e água... de preferência só a pão... Por último: a  "Ordem Nacional do Mérito" - a maior condecoração brasileira - para Alexandre de Moraes... na Praça dos 3 Poderes, no dia 7 de setembro.

J.S.Faro

O que há de novo?

Violência policial aumenta em SP

Embora a PM tenha assegurado que o incidente em Paraisópolis com criança atingida por bala não tenha sido provocado por soldados (leia ao lado), tudo indica que o governador tem pouco controle sobre as ações da corporação. Estressado e dando mostras de evidente despreparo para os problemas que enfrenta, Tarcísio de Freitas precisa, com urgência, ser afastado do governo para tratamento. O  Estado de São Paulo já se ressente do sentido caótico da administração do bolsonarista, fato que gera tensão em todos os setores. Um processo de licença aberto na Assembleia Legislativa poderia aliviar o ambiente da insegurança que cerca as ações do executivo paulista.

Tarcísio e Feder: um quer comprar; o outro quer vender...  Ambos dispostos a substituir o conhecimento pela racionalidade utilitária da tecnologia. Em termos pedagógicos, isso é um crime

# Leia: Especialistas criticam projeto de Tarcísio (Carta Capital)

Tarcísio vai substituir professores pelo ChatCPT

Crime é passível de inquérito que pode levar ao impeachment e à prisão do governador e de seu secretário da Educação.

Até agora, o material didático era produzido por professores especialistas na elaboração dos currículos. Agora, esses docentes terão apenas a função de "avaliar a aula gerada [pela inteligência artificial] e realizar os ajustes necessários para que ela se adeque aos padrões pedagógicos" Quais? Ninguém sabe (leia aqui a matéria da Folha).

Sabesp: desastre anunciado

Privatizar é um retrocesso

Sob controle estatal, a empresa levou São Paulo à liderança nacional na cobertura e qualidade do saneamento. Vendê-la quando privatizações fracassam mundo afora e o cenário climático requer mais gestão pública é tomar a contramão da história (leia mais)

Maioria da população é contra a privatização da Sabesp: 56% dos paulistas a rejeitam, contra apenas 36% que a apoiam

Graciliano e Clarice

Luis Eustáquio Soares

(Outras Palavras)

Ainda falta muito.. 


Não foi preciso nem um dia inteiro para que se frustrassem as expectativas em torno dos poucos avanços que o Brasil tenta consolidar em diversas áreas. A 'absolvição' da juíza Hardt, a criminalização indiscriminada da posse de drogas, a ameaça que as 'saidinhas' sofrem nas mãos do Congresso, a dificuldade na regulamentação das big techs e na tipificação das fake news como crime, as pressões diversas e intensas que um certo tipo de jornalismo de aluguel faz de forma sistemática sobre Lula, o passeio de Eduardo Bolsonaro nos EUA em busca de algum comprador que queira o Brasil, o Tarcísio com sua sanha letal no combate ao crime. Em algumas horas, não mais que um dia, fica evidente que estamos como os Náufragos da Medusa: sem rumo, atarantados diante da necessidade de algum tipo de avanço ou de porto no nosso regramento jurídico e ético que nos abra a porta para a civilidade. A julgar pelo noticiário, ainda falta muito para isso...

Especial (Outras Palavras)

A doutrina intelectual da ultradireita (e seus disfarces)

Para Moysés Pinto Neto, trata-se de um movimento orquestrado por diversos atores que cresce e ascende no cenário mundial, ainda que traga consigo traços de fascismo, nazismo e autoritarismo. Uma “rede de conservadorismo e ressentimento” que se vale das plataformas digitais para disseminar o ódio. Essa é a extrema-direita que chegou ao topo em diferentes países (leia mais).

"Um Netanyahu em plena fuga para frente vai responder ao Irã, e apenas os EUA podem evitar o pior"

Artigo de Jesus Nuñez, IHU (expandir)

A dependência de Israel em relação aos EUA pode fazer com que Biden decida usar as alavancas diplomáticas, econômicas e militares que tem em suas mãos para evitar que o primeiro-ministro israelense acabe por provocar o que racionalmente ninguém pode desejar no Oriente Médio.

O artigo é de Jesús A. Núñez, professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade de Comillas, de membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos e do Comitê Espanhol da UNRWA, em artigo publicado por El Salto, 15-04-2024.

Eis o artigo.

Que Israel vai responder ao ataque realizado pelo Irã no sábado passado não deixa dúvidas. Na verdade, é razoável supor que quando Benjamin Netanyahu ordenou o ataque à sede consular iraniana em Damasco, em 1º de abril, ele estava plenamente consciente de que Teerã não iria aceitar passivamente o golpe. Aliás, Netanyahu estaria hoje muito decepcionado se o bombardeio iraniano não tivesse ocorrido, pois teria arruinado seu plano.

Um plano que buscava sair da dinâmica dos últimos meses, na qual ficava claro que o Irã se limitava a permitir que seus peões regionais mantivessem a tensão com "a entidade sionista", mas garantindo que não levassem a uma escalada regional que resultasse em uma guerra aberta com Israel, ciente de que sairia muito prejudicado dada sua inferioridade de forças em relação à aliança entre Tel Aviv e Washington.

O que aconteceu desde então permite a Netanyahu apresentar Israel novamente como vítima - obrigado a responder -, desviar a atenção internacional sobre o massacre que continua a realizar em Gaza e ancorar ainda mais os Estados Unidos ao seu lado para o que possa vir. Tudo isso pensando muito menos nos interesses de seu país do que em seus problemas pessoais, tanto pela deterioração de sua imagem como garantidor da segurança de seus cidadãos, arruinada após o 7 de outubro, quanto pelo risco de uma antecipação eleitoral que resultaria em sua queda política e sua previsível condenação penal.

O que corresponde agora, portanto, é vislumbrar que tipo de ação Israel vai realizar. Em termos de maior ou menor probabilidade, é mais provável que realize um ataque pontual e limitado. Mas de maneira alguma pode-se descartar que Netanyahu aproveite a oportunidade para ir além, lançando uma campanha militar mais ambiciosa com o objetivo final de eliminar, ou pelo menos degradar seriamente, quem Israel identifica há muito tempo como sua principal ameaça à segurança, muito além do que representam os grupos armados palestinos ou milícias como o Hezbollah ou Ansar Allah.

Se Israel se limitar a restaurar a dissuasão para retornar ao status quo anterior a 1º de abril, as Forças Armadas israelenses têm muitos alvos potenciais ao seu alcance. Pode simplesmente repetir o que já foi feito centenas de vezes, atingindo alguns dos peões iranianos na região, começando pela milícia xiita libanesa e/ou o grupo Resistência Islâmica do Iraque, na medida em que ambos participaram do ataque iraniano, lançando alguns mísseis contra a base aérea israelense de Kila (nos Altos do Golan sírios, de onde partiram os caças que realizaram o ataque à sede diplomática iraniana na capital síria).

Mas, dado que a maioria dos drones e mísseis utilizados partiram do solo iraniano, é muito mais provável que Tel Aviv queira enviar uma mensagem mais contundente, atingindo diretamente o território iraniano. Tem à disposição múltiplos alvos, começando pelas bases de onde partiram os lançamentos e seguindo por outras instalações militares, especialmente as do Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica do Irã, os Pasdaran, que Israel pretende que toda a comunidade internacional termine por classificar como uma entidade terrorista; sem esquecer as instalações onde são fabricados os drones Shaeed-136 utilizados na primeira onda do ataque de 13 de abril.

Nesse mesmo aspecto, é preciso incluir todas as instalações relacionadas ao controverso programa nuclear iraniano, tanto as usinas de Natanz com suas milhares de centrífugas, a usina de água pesada de Arak e a de enriquecimento de urânio de Fordow, quanto a central nuclear de Bushehr, a usina de processamento de Isfahan ou os dois reatores de pesquisa atualmente em operação.

Ataque pontual ou campanha prolongada?

A chave estará em decidir se o ataque a qualquer um desses alvos será pontual - o que provavelmente não será suficiente para destruí-los, dada sua alta proteção - ou sustentado no contexto de uma campanha prolongada por semanas ou até meses. Em qualquer dos casos, e apesar de sua esmagadora superioridade em relação às capacidades iranianas, Israel não apenas precisará da permissão, mas também do envolvimento direto dos Estados Unidos para realizá-lo. Qualquer um desses alvos está a mais de 1.000 km do território israelense e para chegar até eles Israel só possui aviões (incluindo os muito avançados F-35 americanos) e os mísseis Jericó II e III. Isso significa que, em primeiro lugar, precisará da permissão da Jordânia e/ou Arábia Saudita para entrar no espaço aéreo iraniano, o que não pode ser dado como certo. Mas, além disso, especialmente se se tratar de uma campanha prolongada, está fora de seu alcance sustentar o esforço bélico sem o apoio americano, tanto em inteligência quanto em munições e reabastecimento em voo.

Em resumo, resta apenas verificar se essa dependência servirá para que Joe Biden - que indicou que Tel Aviv não pode contar com Washington para uma ação ofensiva contra Teerã - finalmente se decida a usar as alavancas diplomáticas, econômicas e militares que tem em suas mãos para evitar que Netanyahu, em plena fuga para frente, acabe por provocar o que racionalmente ninguém pode desejar no Oriente Médio.

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Nada impede a criação de uma IA que destruirá o mundo

Stuart Russell, professor de ciência da computação da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e autor do livro "Inteligência Artificial a Nosso Favor" (expandir)

Stuart Russell, professor de ciência da computação da Universidade da Califórnia em Berkeley e autor do livro "Inteligência Artificial a Nosso Favor", não é lá muito fã do ChatGPT.

Não porque ele vai tomar seu emprego em uma das universidades mais renomadas dos EUA ou porque vai destruir a sociedade como a conhecemos. É porque, ao contrário do que o entusiasmo em torno das IAs generativas faz parecer, ele não o considera muito inteligente.

"Ele faz coisas interessantes, mas parece que faltam grandes capacidades de raciocínio e planejamento, de refletir sobre suas próprias operações, sobre seu próprio conhecimento", disse, em entrevista por videoconferência à Folha.

O pesquisador está mesmo preocupado é com o controle que exercemos sobre sistemas que nem sequer existem hoje.

São as AGI (inteligência artificial geral, na sigla em inglês), as IAs que serão capazes de fazer tudo que um ser humano faz e provavelmente melhor. Para ele, garantir que essas máquinas poderosas estejam sob o nosso controle é o que vai definir se continuaremos a existir como espécie —mas sem pressão.

É por isso que Russell foi um dos signatários da carta que pediu uma interrupção nas pesquisas avançadas em inteligência artificial. Elon Musk, Steve Wozniak, cofundador da Apple, e o escritor Yuval Noah Harari também assinaram. Sam Altman, CEO da OpenAI, dona do ChatGPT, não.

Russell afirma que sua publicação, em março do ano passado, foi o que deixou o mundo mais atento sobre os perigos da IA.

O professor de Berkeley é um dos palestrantes do próximo ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. Ele dará palestras no Brasil nos dias 30 de abril, em Porto Alegre, e em 2 de maio, em São Paulo.

Há um ano, o sr. foi um dos signatários de uma carta que pediu uma pausa em pesquisas avançadas de IA por ao menos seis meses. O que mudou desde sua publicação?
Mudou quase tudo. É interessante porque, quando a carta foi divulgada, muitas pessoas disseram que ninguém daria atenção. Mas, na verdade, nos seis meses seguintes, não foram anunciados sistemas mais poderosos do que o GPT 4 [versão mais avançada do motor que roda o ChatGPT]. E o mundo basicamente acordou.

Houve reuniões de emergência na Casa Branca e na ONU. A China anunciou uma regulação muito rígida para sistemas de IA. Geoffrey Hinton renunciou ao seu cargo no Google para expressar suas preocupações. O Reino Unido mudou completamente de posição. Se o ritmo de trabalho de pessoas da área é um sinal de progresso, então houve um enorme progresso no mundo, tanto na compreensão da questão quanto na disposição de lidar com ela.

A OpenAI pode lançar o GPT 5 ainda neste ano, então talvez eles não concordem muito com a carta.
Bem, a carta mencionava seis meses, e já se passou um ano. Mas eu acho que as empresas se sentem em uma corrida. Sob a lei atual, nada as impede de construir sistemas muito grandes. Na verdade, nada as impede de construir um sistema que destruirá o mundo.

Elas sentem que é melhor construir esse sistema antes que outra empresa o faça. E elas parecem reconhecer que há mesmo um risco de ser o fim do mundo. Mas, até agora, não parece ter passado pela cabeça delas simplesmente parar. Sam Altman já disse que vai construir a AGI e só depois descobrir como torná-la segura. Isso é loucura.

A pesquisa em IA hoje parece estar concentrada nas big techs. A OpenAI é financiada pela Microsoft e concorre diretamente com o Google. Essa concentração nos estágios iniciais do setor não é prejudicial?
Não sei se isso representa um mercado muito concentrado. Além das grandes empresas, existem algumas startups muito bem financiadas construindo sistemas concorrentes. O custo de entrada é significativo se você quiser que seu sistema se expanda e seja usado por milhões de pessoas, mas eu não acho que as barreiras sejam enormes. O que me preocupa é ver que a Microsoft está absorvendo uma dessas startups, a Inflection. Isso não é saudável.

O ChatGPT foi lançado no momento certo, no final de 2022?
Consigo entender o motivo econômico para terem feito isso. Eles sentiram que sairiam na frente das outras empresas. Isso teve o efeito de expor milhões de pessoas a um aperitivo do que seria se tivéssemos disponível uma IA de verdade.

Foi também um choque para o mundo. Possibilitou conversas com chefes de Estado e políticos sobre os riscos e o impacto da IA. Nesse sentido, eles fizeram um favor ao mundo.

Por outro lado, vimos muitas maneiras pelas quais o ChatGPT falha, dando respostas sem sentido, inventando coisas. Eu acho que eles viram a humanidade como milhões de cobaias de um produto.

Eu gostaria que as empresas se esforçassem para entender como seus sistemas funcionam e dissessem que são capazes de controlá-los, para garantir que não farão coisas inaceitáveis. Mas não estão fazendo isso. E acho que a única maneira de fazerem isso é regulando.

Então o ChatGPT não é uma IA de verdade?
Ele faz muitas coisas interessantes, mas parece que faltam grandes capacidades de raciocínio e planejamento, de refletir sobre suas próprias operações, sobre seu próprio conhecimento.

Se você olhar o AlphaGo, que venceu o campeão mundial de Go, ele não tem nada a ver com o ChatGPT. O AlphaGo é um sistema de IA muito clássico que raciocina sobre possíveis estados futuros do jogo. É um plano básico que remonta aos anos 1950.

Mas com o ChatGPT não temos ideia do que está acontecendo. Ele finge jogar xadrez e, muitas vezes, parece estar fazendo boas jogadas, mas, de repente, fará uma jogada que nem é permitida. E isso sugere que na verdade ele nunca esteve jogando xadrez. É uma miragem.

O AlphaGo seria então mais inteligente, mesmo que o ChatGPT tenha sido treinado com terabytes de dados de toda a internet?
Isso só ilustra a necessidade de ter essas outras formas de computação, além dessa na qual você apenas insere um input em uma rede para obter um output. O ChatGPT não consegue sentar e pensar em algo. Funciona como um circuito onde o sinal entra, passa e sai.

Será que conseguiríamos obter melhorias no ChatGPT de forma que ele seja capaz de raciocinar e planejar de forma confiável? Ou fazemos híbridos nos quais usamos o ChatGPT como apenas um componente? Ou será que precisamos de alguma concepção nova, que não tenha a ver com nenhum desses tipos?

Como o sr. define a AGI?
Em termos gerais, sistemas de IA que podem aprender rapidamente a executar, em nível humano ou super-humano, qualquer tarefa. Isso excederia as capacidades humanas em todas as dimensões.

E esses tipos de IA como o ChatGPT estão próximos de uma AGI?
Temos evidências de que esses grandes modelos transformadores estão aprendendo algo de interessante. Não estão apenas procurando frases semelhantes em seus bancos de dados e depois respondendo. É um circuito complexo.

Ao treiná-lo para prever a próxima palavra, você está forçando-o a desenvolver pelo menos algumas das estruturas internas que representam o mundo e algumas formas de raciocínio que não entendemos completamente.

O grande problema é que não temos a menor ideia do que está acontecendo dentro do GPT 4. E estão produzindo o GPT 5. A solução deles é aumentar e adicionar mais dados. Eu não acho que vai funcionar.

Quando eles chegarem ao GPT 5, terão usado praticamente todo o texto que existe no universo. Então não haverá mais dados de treinamento. E, se o sistema não mostrar uma melhoria nas suas capacidades, pode ser um sinal de que esse tipo de pesquisa atingiu um teto.

Não sei qual impacto isso terá nos investimentos, mas suponho que algumas pessoas ficarão decepcionadas e poderão parar de investir.

Por que diz que não entendemos o que está por trás do GPT?
As pessoas que o fizeram também não entendem. São trilhões de parâmetros. Entender o que está acontecendo por dentro é muito complexo para nós. Pode não ser compreensível, ele pode estar realizando processos estranhos ao pensamento humano.

A chegada da AGI nos levará imediatamente a um cenário distópico, como uma Skynet de "O Exterminador do Futuro" assumindo o controle?
A história da Skynet e de muitos outros filmes envolve a máquina se tornando consciente e depois decidindo que odeia a raça humana. Mas, na verdade, ninguém que trabalha com segurança da IA está preocupado com isso, porque não tem nada a ver com isso.

O que importa é se o sistema é competente. Se ele é bom em agir de forma a alcançar seus objetivos. Se você jogar contra o melhor programa de xadrez, no nível mais alto, você não terá chance alguma. E por que isso? Não é porque ele é consciente, é porque ele é melhor.

Pegue esse conceito e estenda para o mundo inteiro, supondo que o sistema seja simplesmente mais competente do que a raça humana em alcançar seus objetivos. E, então, se esses objetivos não estiverem alinhados com o que os humanos querem que o futuro seja, teremos um problema.

Como manter para sempre o poder sobre entidades que são mais poderosas do que nós mesmos? Essa é a pergunta que precisamos fazer.

Estamos próximos de alcançá-la?
Eu acho que estamos mais longe do que algumas pessoas acreditam. Alguns dos meus colegas muito renomados, como Geoffrey Hinton, que é um dos principais pioneiros nessa área, acredita que a alcançaremos em cinco anos. Eu acho que ainda precisamos de grandes descobertas.

E eu não acho que a AGI virá apenas tornando os sistemas maiores. Acho que precisamos de mais avanços conceituais, que têm acontecido rapidamente nos últimos anos. Então, não tenho certeza, mas acho que levará um pouco mais do que cinco anos.

Podemos ser otimistas sobre o futuro da IA?
Bem, há dois tipos de otimismo. Há o otimismo de que a IA gerará muito dinheiro, produzirá muitos lucros e resolverá muitos problemas importantes no mundo. E, então, há o otimismo de que continuaremos a existir como espécie.

Não tenho certeza se otimismo é a palavra certa, porque temos que decidir como vamos proceder. E, no momento, estamos agindo na direção errada.

Estamos construindo sistemas cada vez mais poderosos que não entendemos e não controlamos. Temos de resolver o problema do controle antes de criarmos a AGI. Os governos deveriam exigir que as empresas garantam que seus sistemas se comportem adequadamente.


Raio-X | Stuart Russell

Uma das maiores referências em inteligência artificial, é professor de ciência da computação na Universidade da Califórnia em Berkeley e autor de "Inteligência Artificial a Nosso Favor". Foi vice-presidente do Conselho de IA e Robótica do Fórum Econômico Mundial e atuou como consultor da ONU para o controle de armas.

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"Vale dizer que a saída temporária foi prevista na legislação pelo General João Batista Figueiredo, presidente da ditadura militar brasileira. O que vemos hoje no Congresso e no Executivo é uma sanha punitiva que ultrapassa, até, os limites estabelecidos no golpe militar", aponta a nota da Pastoral Carcerária Nacional, publicada no seu site,  IHU (expandir)

A Pastoral Carcerária Nacional reconhece a tentativa do presidente Lula ao vetar parcialmente o PL nº 2.253/2022 que propunha, dentre outras medidas, o fim das saidinhas para as pessoas privadas de liberdade. O veto, como está, permite a saída temporária e o direito ao trabalho externo apenas para pessoas que não foram condenadas por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. As saídas temporárias, por sua vez, permitem a volta gradual das pessoas encarceradas ao convívio social e, mais importante, à sua família, respeitando a dignidade e os direitos fundamentais dos presos e presas.

No entanto, manifestamos nossa preocupação em relação ao texto publicado no Diário Oficial da União. O veto parcial do Presidente pode proibir a saída temporária para uma gama altíssima de pessoas, haja vista o crime de tráfico de drogas, por exemplo, ser equiparado a hediondo em nosso país. ⅓ das pessoas presas hoje respondem por crimes contidos na Lei de Drogas e o veto impossibilita que ao menos 200 mil pessoas se relacionem gradualmente com seus familiares.

Além disso, o texto ainda prevê. a obrigatoriedade do exame criminológico o que, além de inviabilizar a progressão de regime, acarreta um gasto público sem precedentes. Além disso, a ampliação do uso de tornozeleiras eletrônicas pode aumentar a estigmatização das pessoas presas e dificultar sua inserção no mercado de trabalho, prejudicando sua reintegração à sociedade.

Vale dizer que a saída temporária foi prevista na legislação pelo General João Batista Figueiredo, presidente da ditadura militar brasileira. O que vemos hoje no Congresso e no Executivo é uma sanha punitiva que ultrapassa, até, os limites estabelecidos no golpe militar.

A Pastoral Carcerária Nacional reafirma seu compromisso com a evangelização e a promoção da dignidade humana de todos/as irmãos e irmãs privados de liberdade e seus familiares, bem como com a busca por políticas públicas que promovam a justiça, rumo ao mundo sem cárceres.

O que é e para o que serve a “saidinha”?

A saída temporária é um direito da pessoa presa de sair do presídio e ficar com a família por 7 dias, ocorrendo 5 vezes por ano, com datas pré definidas, como parte do processo de reintegração do preso na sociedade.

Este é um benefício concedido apenas aos presos e presas que cumprem pena em regime semiaberto. Presos em regime fechado, provisório ou aberto não têm direito a esse benefício. A forma como o preso chegou ao regime semiaberto não influencia a concessão da saída temporária.

Durante a saída temporária, as pessoas presas devem seguir regras específicas, como horários definidos, recolhimento noturno, proibição de frequentar certos locais e possibilidade de uso de tornozeleira eletrônica. As restrições são detalhadas em um documento entregue na saída e o advogado pode esclarecer dúvidas sobre as regras impostas.

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Em Haia, Tarcísio e Derrite são acusados de crimes contra a Humanidade

Denúncia registrada no Tribunal Penal Internacional, por três parlamentares do Psol, aponta responsabilidade do governador de São Paulo e seu secretário de Segurança Pública pelas dezenas de mortes na operação “Escudo”, na Baixada Santista

RBA (expandir)

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário estadual de Segurança Pública, Guilheme Derrite, foram denunciados no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia na Holanda. Tarcísio e Derrite são acusados de crimes contra a humanidade por conta das dezenas de mortes em ações policiais. Especialmente nas operações “Escudo”, na Baixada Santista. Na última fase da ação, realizada entre fevereiro e março, pelo menos 56 pessoas foram mortas pela polícia. O que entrou para a história como a operação mais violenta da Polícia Militar paulista desde o massacre do Carandiru, em 1992.

Antes disso, a primeira fase da Escudo, realizada entre julho e setembro de 2023, deixou 28 mortos em 40 dias. A denúncia de crimes contra a humanidade foi apresentada por três parlamentares do Psol ainda na terça-feira (9). A acusação é assinada deputada federal Luciene Cavalcante (SP), o deputado estadual Carlos Giannazi (SP) e o vereador Celso Giannazi (SP).

Os parlamentares destacam que os números de homicídios e outras violações de direitos cometidas por agentes da PM “aumentaram exponencialmente” depois que Tarcísio e Derrite assumiram seus cargos, em janeiro de 2023. No início de março, um mês após o início da operação Escudo com o nome de “Verão”, a letalidade policial cresceu 94% no primeiro bimestre, em comparação com igual período de 2023. Houve um salto de 69 para 134 mortes por policiais no período. Sendo que a maioria delas, 63, ocorreram na Baixada Santista.

Denúncia ponta deboche de Tarcísio

De acordo com os denunciantes, a decisão de levar as acusações ao Tribunal Internacional surgiu da ausência de investigações a respeito das suspeitas de “execuções sumárias, tortura e prisões forjadas” nas duas operações. “Apesar de inúmeras denúncias sobre as condutas dos Representados (Tarcísio e Derrite), ainda não foi instaurado no país de origem qualquer inquérito ou processo judicial relativamente às pessoas físicas aqui representadas pelos crimes cometidos”, destaca o documento.

A representação no TPI cita, ainda, o tom debochado de Tarcísio ao falar sobre outras denúncias que foram feitas sobre a atuação policial e o aumento da letalidade. O governador chegou a dizer que estava “nem aí”, em uma entrevista em 8 de março, minimizando todas as denúncias e mostrando apoio à operação policial. Na ocasião, o governador paulista havia sido questionado sobre uma denúncia contra sua gestão enviada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU pela Comissão Arns e a organização Conectas. As entidades brasileiras também apontaram ao mundo as “execuções sumárias, tortura e prisões forjadas” nas duas fases da Operação Escudo promovidas pelo bolsonarista.

Na semana passada, uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo revelou que o deboche de Tarcísio foi seguida pelo aumento do números de mortes provocadas por policiais.

SSP responde

Em nota, a SSP-SP defendeu, porém, que “as polícias de São Paulo atuam para proteger a população e combater o crime organizado, que tem forte presença na Baixada Santista”. A pasta também alegou que “as mortes registradas decorreram de confrontos com criminosos, que têm reagido de forma violenta ao trabalho policial”.

“Todos os casos de morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário, reforçando a transparência do Estado sobre a atuação das forças de segurança. As corregedorias das instituições também estão à disposição para formalizar e apurar toda e qualquer denúncia contra seus agentes”, completou. A secretaria também acrescentou que houve mais de mil prisões e grandes apreensões de drogas e armas na operação.

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Redação: Clara Assunção com informações do Brasil de Fato


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# George Orwell sabia que o totalitarismo depende da mentira, das fake news, da ideia de que as narrativas e os saberes se equivalem, de que história e estória são a mesma coisa. Homero Santiago, A Terra é redonda (leia mais)

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Educação, alvo estratégico da ultradireita na Câmara dos Deputados

A Comissão de Educação tornou-se uma cabeça de ponte de setores ultraconservadores e bancadas religiosas para manter sua pauta de costumes na ordem do dia, critica Silvia Barbara diretora do SinproSP (expandir)

A escolha do deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG) para presidir a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados tem um alcance que vai muito além do papel institucional que cabe aos presidentes das comissões temáticas, compostas por parlamentares para discutir e votar projetos de lei específicos.

As comissões foram criadas para serem uma instância de debate mais qualificado sobre os projetos de lei e permitir um diálogo maior com os cidadãos e entidades representativas da sociedade. Em geral, os parlamentares escolhidos para compor esses colegiados têm conhecimento técnico e afinidade com o assunto específico. Não é o caso do deputado Nikolas…

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Não há nada em sua vida pública que o credencia para a Comissão de Educação. Durante a pandemia, Nikolas Ferreira afrontou a ciência, defendeu a cloroquina e, por ironia, foi obrigado a imunizar-se tardiamente para viajar ao Reino Unido e participar de um evento antivacina. 

Em 8 de março, num ato de boçalidade explícita, apresentou-se com uma peruca na tribuna da Câmara dos Deputados, para ironizar os ‘homens que se sentem mulheres’, segundo suas palavras. Por fim, é réu num processo por ter exposto uma adolescente transexual de 14 anos nas redes sociais, filmada (pela irmã do deputado) no banheiro feminino da escola em que estudava. O deputado já tem uma condenação, em segunda instância, por transfobia.

Comissões

Voltando às comissões, embora tenham sido criadas como espaço de debate qualificado, elas perderam parte de seu protagonismo na Câmara dos Deputados, especialmente nas duas últimas legislaturas, face o poder da presidência da casa em levar matérias importantes para serem votadas diretamente no plenário, sem passar por comissão. 

Ainda assim, a disputa pelo comando desses colegiados tem se acirrado por conta dos vultosos recursos destinados a emendas de comissão e dada a polarização política que transformou cada um desses espaços em palco de disputas ideológicas. É esse o contexto, acirrado e belicoso, que explica a opção por Nikolas Ferreira.

A Comissão de Educação tornou-se uma cabeça de ponte de setores ultraconservadores e bancadas religiosas para manter sua pauta de costumes na ordem do dia. Entre as propostas mais frequentes defendidas por esses grupos estão a proibição de abordagens sobre questões de gênero nas escolas, a perseguição e censura a professores, livros didáticos e conteúdos de aula, a educação domiciliar, o ensino de religião, inclusive com uso de recursos públicos, e as escolas cívicos militares.

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A estratégia não se limita à atuação parlamentar na Comissão. Em outubro de 2023, por exemplo, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa da Escola sem Doutrinação Ideológica que tem como vice-presidente o deputado Nikolas Ferreira. 

Segundo reportagem da Agência Pública (Educação é o principal foco de projetos conservadores na Câmara), o Instituto de Estudos da Religião (ISER) monitorou projetos de lei apresentados por deputados identificados como católicos ou evangélicos e concluiu que a educação respondia pela maior parte das proposições, inclusive entre os parlamentares de direita. 

Bolsonaro foi derrotado nas urnas, mas o projeto político da ultradireita continua assombrando. A disputa e o controle pela pauta da educação dão visibilidade a esse projeto e possibilitam que ele se expanda por espaços políticos que vão além do Congresso Nacional. Quem perde com isso é a sociedade brasileira. Se alguém tem alguma dúvida, basta acompanhar uma sessão da Comissão de Educação. É triste, muito triste.

intermitências

Atualizações intermitentes deixam a impressão de que a realidade, apesar de dinâmica na aparência, é estática e sonolenta, mas não é. Rola um ajuste em cada um dos processos dessa crise de curta duração em que o Brasil e boa parte do mundo encontram-se mergulhados. Como diz o Luis Nassif, é um xadrez.

Elon Munsk: o canalha da vez

# Musk e a extrema direita S/A
Nada que o bilionário faz é gratuito. Por trás das provocações a autoridades brasileiras está o esforço para aparecer como um campeão das ideias extremistas – e conseguir favores

Glauco Faria (Outras Palavras)

# Moraes fala sobre as ameaças de Musk

"Liberdade não é para defender tirania"

(Uol)

# Ninguém se engane: estamos sob ataque

Por trás dos ataques de Elon Musk a Alexandre de Moraes e à soberania brasileira estão interesses econômicos e calculada ação da extrema direita internacional

Tereza Cruvinel (247)

# SP: a nova capital e a especulação imobiliária

Projeto de uma sede administrativa gigante, no centro da capital, tem como base lógica predatória

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# Milei busca a recolonização total

Tarifaço. Desmonte dos serviços públicos. População se precariza, mas ganham os exportadores de matérias-primas e fundos especulativos

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Um Estado que faz da barbárie sua lei. A fome como estratégia de guerra

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A terra é plana, li no X

Dirão os fundamentalistas que a liberdade de expressão é um direito inalienável, mas hoje é crucial que haja limites para evitar a disseminação de informações falsas
# Leia o artigo de José Manuel Diogo na Folha

leituras (tensas) da 4a feira

Com o apoio da máquina da propaganda bolsonarista, conspiração da extrema-direita global ataca instituições brasileiras e pode inviabilizar democracia. Elon Musk é o agente número 1 dessa agressão; Bolsonaro, seu cúmplice.

Pois então...

"Vamos dar golpe em quem nós quisermos"

Editorial do site em torno de um tuíte de Elon Musk postado em 2020, recuperado agora por Letícia Casado, no Uol (expandir)

Chama a atenção o jeito adocicado como os "grandes" jornais e veículos de forte presença conservadora na imprensa brasileira vêm tratando nos últimos dias aquilo que já pode ser chamado de "escândalo Musk" (o editorial do Estadão de ontem, 9/4, chega a ser aviltante com a dignidade nacional). O país está diante de um bando de criminosos que encontrou nesse cidadão sul-africano um arrimo, e dos piores: o dono do antigo twitter aposta alto no colapso político que significaria a desqualificação da estrutura jurídica do país - a começar pela Constituição. E aposta alto por 2 motivos. O primeiro é de natureza empresarial, já que alcançar o topo da queda de braço com o STF alavancaria o estado de dificuldades globais que seus negócios enfrentam (leia no GGN e no Intercept). Sob esse aspecto, as bravatas do tuiteiro mostram que o combate ideológico contra Alexandre de Moraes tem muita encenação. Quem deu a esse processo o colorido 'programático' foram os fantoches de extrema direita que viram nos ataques de Musk alguma coisa que poderia se traduzir em dividendo político contra Lula e os setores mais progressistas do cenário nacional. O próprio Bolsonaro, que anda fazendo de tudo para não ser preso, atirou para cima na esperança de que alguém o ajude:  "é o mito da nossa liberdade", disse o imbecil. Ninguém mais leva a sério esse cara...

O segundo motivo é político, mas não diz respeito às condições políticas nacionais e sim ao quadro que vai se desenhando com a proximidade das eleições nos EUA. Musk vê no crescimento das possibilidades eleitorais de Trump a ampliação de seu capital de referências internacionais, e nesse caso o Brasil tem peso e, na hipótese de que o dono do 'X' se saia bem na queda de braço com a nossa suprema corte, sob todos os aspectos, do simbólico ao financeiro, estaríamos diante de um processo de efeitos difíceis de avaliar, embora todos (os efeitos) sejam favoráveis a ele.

A coisa toda fica mais complexa quando a análise volta seu foco para as consequências desse embate no Brasil. As primeiras avaliações dão conta de que a reação conservadora-liberal, social-democrata e de esquerda (esse arco legalista que se formou em paralelo com os desastres da extrema direita) ao ataque de Musk teve o efeito de clarear o quem é quem na crise política, uma coisa que nem mesmo as eleições de 2022 conseguiram, da tentativa de inviabilizar a posse de Lula à cadeia de escândalos bolsonaristas, passando pelo fracasso do asilo do capitão na embaixada da Hungria, da possibilidade de sua prisão, pelo vergonhoso envolvimento de altas patentes das FAs no 8 de janeiro, delações, 1a dama usando joias que não são dela e pelo desencanto dos bolsonaristas com tudo isso, em especial agora que o STF mandou para o espaço, por  unanimidade, a tese do poder moderador das Forças Armadas. O 25 de fevereiro pode ter sido alguma coisa como a sofreguidão do atleta que vê o pódio se distanciando porque depois daquela multidão atarantada na Paulista as notícias só pioraram. Nesse cenário, Musk aparece aos bolsonaristas como a (peço desculpas pelo lugar comum)  'tábua de salvação': todo mundo correndo em seu apoio nos ataques a Moraes, erguendo-o como um demiurgo que vai salvar a democracia no Brasil, campeão dos direitos civis e toda a pataquada que só os bolsonaristas sabem reproduzir.  A exceção fica para a coerência que os "grandes veículos" de comunicação (vários, mas nem todos) guardam com a impressão de descontrole que a cena geral evoca. Se Musk turva a gestão Lula, viva Musk! De manchete em manchete, de artigo em artigo, de condicionais em condicionais... tudo, absolutamente tudo, entra na moedeira das insuportáveis colunas feitas por encomenda contra o equilíbrio orçamentário, contra o Estado do Bem-Estar Social, contra as mazelas dos partidos... Alguns jornais, por conta dessa política editorial caolha e anti-jornalística, acabaram se tornando verdadeiros almanaques de curiosidades com baixíssimo nível de informação. Essa turma está com o canto da boca húmido de prazer, prazer que aumenta agora com a entrada em cena do Sr. Musk

A realidade, no entanto, é mais dura, e nem só de Alexandre de Moraes vive o Brasil. Um dia depois do "ecândalo Musk", quem falou grosso foi o presidente do STF, Luiz Roberto Barroso: empresas de qualquer tipo têm que obedecer a legislação brasileira, disse ele. Mostrou que não está para brincadeira e denunciou "o inconcormismo contra a prevalência da democracia [que continua sendo manifestado na] instrumentalização criminosa das redes sociais". A essa altura, Alexandre de Morais já tinha instalado inquérito contra Musk. Refiro-me a Barroso como poderia tê-lo feito com outros personagens que se distribuem entre esses 2 grandes grupos em que o país está dividido. Para um deles, parece-me que a situação ficou mais difícil...

Minha impressão é a de que essa gente atordoada com o sinuoso mas perceptível isolamento do fascismo mediu mal medida sua carga de recursos políticos e orgânicos para um enfrentamento  dessa dimensão. Vou elencar abaixo aqueles que considero os textos que melhor dimensionam o cenário... É ler e acompanhar...


# Para entender o jogo de Musk (GGN)

# Sakamoto: Musk destampa o esgoto do X/twitter (Uol

#  Bolsonaristas vão às redes e apoiam Musk em ataques a Moraes (Folha

# Anatel de prontidão para retirar X do ar (Uol

# Jamil Chade: Musk e extrema direita repetem no Brasil receituário que aplicaram nos EUA (Uol

# Estadão disfarça, mas aposta em Musk para desestabilizar governo (Estadão)

# Musk joga água no moinho da extrema-direita no Brasil de olho na eleição de Trump (G1)

# PL das redes sociais. Entenda o que o texto diz sobre conteúdo criminoso e obediência a decisões judiciais (G1)

# Musk infla rede bolsonarista e mira interesses comericiais do X (Uol)

# Elon Musk atacou soberania nacional, diz Orlando Silva, relator do PL das fake news (Uol)
# O que pode acontecer com Musk e com o X após decisão de Moraes (Uol

# Pochmann alerta: "o ataque de Musk é uma ação calculada" (247)

# O que as bravatas de Elon Musk têm a ver com Eduardo Bolsonaro? (Pública)

# Musk lucra com vigilância estatal que diz combater (Intercept)
# Empresas de mídia que tiveram atuação suspensa por desobediência à lei (Uol)

# Musk tentou silenciar críticos, pesquisadores e censurar uso de dados (Uol) 

# Gilberto Maringoni: O governo caminha para um não-lugar? (Facebook)

Braços inteiros, mentes quebradas

As crianças e os adolescentes dos Estados Unidos fraturam os ossos cada vez menos. É que eles estão mais isolados, grudados no celular.

Tania Menai, piauí (expandir)

Um adolescente americano de hoje é menos propenso a fraturar os ossos que alguém de sua idade quinze anos atrás. Até seus pais e avôs, ou qualquer pessoa acima dos 50 anos, correm mais risco de se quebrar do que meninos e meninas entre 10 e 19 anos. 

Até o ano 2000, os garotos lideravam as internações anuais por acidentes, com mais de 15 mil casos a cada 100 mil habitantes, seguidos das meninas, com pouco mais de 10 mil. Em 2018, as internações em cada um dos grupos caiu pela metade. Os dados são dos Centers of Disease Control and Prevention, órgão oficial do governo norte-americano, que observa a taxa de hospitalização nos Estados Unidos por lesões acidentais, como braços, dedos e punhos quebrados.  

“Embora possa parecer bom não ter fraturas, esse cenário também significa que não há experiência de vida”, disse à piauí o psicólogo social Jonathan Haidt, autor do recém-lançado livro The Anxious Generation – How the great rewiring of childhood is causing an epidemic of mental illness (A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de doenças mentais), um volume de 385 páginas a ser lançado no Brasil em novembro pela Companhia das Letras. No índice remissivo, a obra inclui palavras que deveriam passar longe do universo infantil, como “ansiedade”, “automutilação”, “depressão” (mencionada em vinte páginas), “hikikomori” (isolamento social grave, identificado em muitos jovens japoneses), “pornografia” e… “Zuckerberg”.   

“Até uma década atrás, adolescentes eram de longe os mais propensos a quebrar um osso por imprudência. Eles andavam de bicicleta, saltavam em rampas, subiam em árvores. Isso aconteceu até a primeira geração passar a puberdade com smartphones em mãos – o primeiro iPhone foi lançado em 2007 e a mídia social ganhou força em 2012. Foi então que o índice de adolescentes feridos psicologicamente escalou incessantemente, e o número de ossos quebrados despencou”, revela Haidt.

Professor de Liderança Ética na Stern School of Business, na New York University, Haidt compilou estudos, debates e sugestões, tornando-se mais uma voz que engrossa o crescente movimento contra smartphones nas mãos de crianças e adolescentes no país. Ele ainda lançou o site Free The Anxious Generation (Liberte a geração ansiosa). O lançamento do livro, na última semana de março, dominou a mídia americana. O autor Simon Sinek, um entre dezenas de entrevistadores que convocaram Haidt nos últimos dias, fez em seu podcast uma pergunta com resposta embutida: “O que aconteceu com os pais que levavam lápis-de-cera, papéis e livrinhos para os restaurantes em vez de colocar crianças na frente de telas de celulares para almoçaram em paz?”

Haidt, que por três anos agregou estudos e debates, alerta que a Geração Z, nascida entre 1995 e 2010, é a primeira a ingressar na puberdade com um “portal em seus bolsos”, longe de interação presencial e sugada por um mundo virtual viciante e instável.   

Consequentemente, esta é a geração mais avessa a correr qualquer tipo de riscos, e entrará para a história como a que carrega mais problemas de saúde mental, sedentarismo e falta de habilidades sociais. “Essas crianças raramente vão para a casa dos amigos, apenas ficam sozinhas em casa no telefone.” E essa falta de convivência é uma das principais fontes de depressão: as taxas de depressão e suicídio entre meninos e meninas basicamente duplicaram. Entre os anos 2010 e 2019, o aumento de meninos americanos entre 10 e 19 anos que tiraram suas próprias vidas foi de 35%. No caso de meninas da mesma faixa etária, o salto ficou em 59%, na tabulação de dados feita pelo autor.

A disparidade entre meninos e meninas, como mostra o resultado de estudos cruzados feitos pela psicóloga e autora Jean Twenge, tem uma relação com o fato de se isolarem no quarto sozinhas, mergulhadas nas mídias sociais, comparando seus corpos e cabelos às imagens online. Os meninos isolam-se em casa, em vez de brincarem ao ar livre, mas pelo menos se juntam mais frequentemente em grupos em torno dos videogames. 

Na semana do lançamento, esses dados alarmantes sobre a saúde mental dos menores de idade estavam estampados numa caixa de leite de aproximadamente 3 metros de altura. Era uma instalação criada pelo artista Dave Cicirelli, que ficou fixa nos dias 25 e 26 de março numa esquina da Union Square, em Nova York, antes de seguir para a capital Washington. Uma das laterais da caixa imitava o design de informação nutricional, mostrando as porcentagens mencionadas acima, além do aumento de depressão entre meninos de 12 a 17 anos (96%) e meninas (97%), e tempo passado com amigos na faixa dos 15 a 24 anos: para meninos, uma queda de 48%, e meninas, 52%, também entre 2010 e 2019.  

Na parte frontal da caixa, estava a foto da capa do livro, em preto e branco, onde uma menina está fissurada em seu telefone. Destacava em letras maiores: Missing Childhood (infância desaparecida). Em um texto menor, estampava os dizeres: “Vista pela última vez com um portal no bolso que a atraiu para longe das interações pessoais e para um mundo virtual emocionante, viciante e instável. A infância em si foi sequestrada. Mas podemos salvá-la.”

A arte é uma alusão às caixas de leite dos anos 1980 nos Estados Unidos, que serviam de veículo para divulgar as crianças desaparecidas em suas comunidades. Na instalação, quem desapareceu foi a infância. Haidt passou algumas horas no local da instalação interagindo com o público, que veio de diversos cantos para falar com ele, e na semana seguinte, a ação seguiu para Washington DC. Na primeira semana de lançamento, o livro já liderava as vendas na Amazon. 

“Entrei nesse debate para fazer com que a Geração Alfa, nascida a partir de 2011, não passe pela puberdade com um smartphone em mãos. Se isso acontecer, acredito que a saúde mental dessa nova geração será muito melhor do que a da Geração Z”, diz ele. “Nos Estados Unidos, as crianças ganham smartphones na quinta série, aos 10 e 11 anos. E esses aparelhos passam a ser o centro de suas vidas, empurrando o restante para escanteio. Não há qualquer segurança ao colocar um celular na mão delas, além de ser impossível garantir qualquer bem-estar digital”, diz. Ele é a favor de que as crianças acessem a internet por computadores, mas não que estejam conectadas o tempo inteiro a um dispositivo pessoal.

Haidt, que nasceu em 1963, reforça que a mudança de hábitos deve começar a partir de quatro regras, a serem implementadas conjuntamente pela sociedade: a primeira é não colocar um smartphone na mão de ninguém até o início do High School, que nos Estados Unidos equivale à nona série, ou 14 anos completos. “Os anos entre a sexta e oitava séries são uma época muito difícil da vida das crianças. Temos que tirar esses aparelhos inteiramente dessa faixa etária”, diz o autor. Nos Estados Unidos, crianças começam a ir para a escola sozinhas por volta dos 11 anos, então um telefone básico se faz necessário para se comunicarem com os pais no caminho. Haidt, inclusive, é a favor da volta ao flip-phone tradicional (só ligação e SMS) para crianças com menos de 14 anos, além de apoiar o uso de telefones feitos especialmente para elas, como as marcas Gabb, Pinwheel e Bark, inexistentes no Brasil, que são despidas de internet, jogos ou aplicativos nocivos. São aparelhos mais elementares, com câmeras, SMS, e opções como Duolingo. Vale notar que o WhatsApp é pouco usado entre americanos no dia a dia e não é uma ferramenta comercial (usa-se mais para se comunicar com quem vive no exterior). Por isso, não faz falta nos telefones sem internet.

A segunda regra proposta por Haidt é proibir acesso às redes sociais até os 16 anos, idade também indicada por Vivek Murthy, cirurgião-geral do governo americano, num estudo divulgado em 2023, como a piauí mencionou nesta reportagem em setembro passado. Haidt celebrou ainda a decisão do governo da Flórida, que em março passado vetou a mídia social para menores de 14 anos, um passo para alcançar a idade ideal de 16.

A terceira sugestão é abolir celulares das escolas, uma vitória vencida pelo secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro, Renan Ferreirinha, que implementou a prática na rede pública. Professor universitário, Haidt sabe que as notificações são um imenso fator de distração e observa que os jovens navegam até em sites de pornografia em sala de aula. Haidt também apoia as pochetes Yondr, usadas em escolas para trancar os telefones durantes as aulas. A escola judaica Alef Peretz, de São Paulo, foi a pioneira no Brasil a adotar o produto depois de a pochete ser também assunto da reportagem de setembro da piauí. Curiosamente, Haidt cita que nos Estados Unidos são justamente as escolas judaicas que têm mais sucesso na empreitada, porque as crianças já estão acostumadas a ficarem desconectadas durante o Shabat, o sábado de descanso. 

Quarta regra: acabar com a onda de superproteção parental que tomou conta das últimas gerações. Haidt, que tem dois filhos, enfatiza a importância de promover mais independência para as crianças, mais brincadeiras ao ar livre e responsabilidades no mundo real, incluindo tarefas domésticas. “Não devemos proteger nossos filhos de se estressar, porque o estresse faz parte da vida. Com uma ressalva: é fundamental estar atento ao estresse duradouro, a longo prazo. Ninguém deve ficar ansioso ou preocupado por dias. Isso é muito ruim.” 

Haidt diz que essas quatro mudanças, de custo quase zero, não são difíceis de implementar se feitas coletivamente. “Quando os pais e as mães se comprometem em conjunto, eles livram seus filhos da tirania do smartphone e da mídia social. E ainda dão a eles uma infância divertida com amigos que brincam pessoalmente. Os pais têm um grande papel conjunto em promover a brincadeira e a independência, além da função crucial de adiar o ingresso de seus filhos no mundo virtual.”

O objetivo inicial do autor era escrever um livro chamado Life After Battle, que trata do impacto das mídias sociais na democracia. O ano era 2021 e, ao escrever o primeiro capítulo, sobre a influência das mídias sociais nos adolescentes, e fazer os gráficos em conjunto com o pesquisador Zach Rauch, notou que esse tema merecia uma obra específica. O projeto de um livro virou dois, e a nova ideia passou na frente na lista de prioridades. “[O vício em telas] é uma das maiores epidemias do nosso tempo. Eu não podia passar para o segundo capítulo do livro original e deixar esses dados para trás. Resolvi investigar a causa do problema, e  ver que podemos fazer para resolvê-lo”, diz ele.

No Brasil, onde o problema é semelhante, o combate à superexposição dos menores às telas está alguns passos atrás: não existem telefones celulares especializados para crianças e adolescentes, que ajudam a adiar o acesso às mídias sociais. Nos Estados Unidos, há ainda dezenas de movimentos de pais americanos engajados, que pregam, baseados em ciência e informação, adiar o ingresso de crianças às redes sociais e reduzir ao máximo a exposição às telas – entre eles, o Wait Until 8th , Delay is the Way , Defend Young Minds, 1000 Hours Outside e Protect Young Eyes. Esses pais, juntos, têm um grande poder de persuasão para atrair mais famílias nessa luta para adiar a compra do smartphone para os filhos.

“O contato com a tecnologias faz parte da vida. Mas adolescentes precisam de muito mais”, diz o hebiatra (médico especializado em adolescentes) gaúcho Felipe Fortes. “Eles precisam conviver presencialmente com seus amigos, praticar esportes, assistir a uma peça de teatro, fazer as refeições com a família, brincar com um bicho de estimação, desenhar, escrever, namorar, estar na natureza, escutar uma música ou até não fazer nada”, alerta o médico, que atende em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, além de falar sobre o assunto para 46 mil seguidores no Instagram. 

“Os pais e cuidadores têm um papel fundamental na construção desses hábitos. Devemos encarar o assunto “conectividade” de nossos adolescentes como o novo grande tema da parentalidade contemporânea, da mesma forma como nos preocupamos que eles mastiguem de boca fechada ou que olhem para os dois lados ao atravessar a rua”, alerta Fortes. 

Ele reforça a necessidade constante de monitorar o conteúdo que os filhos acessam online, limitando o tempo de tela (qualquer tipo, somadas) a duas ou três horas por dia. “Durante as minhas consultas, alguns jovens entram em crise aguda de ansiedade. Choram e dizem que não conseguem imaginar como seria a vida com apenas ‘duas horas de telas’ diárias”, revela Fortes. No livro, Haidt compara esses tipos de reações à abstinência de usuários de drogas pesadas como cocaína e heroína que, assim como o vício em smartphone, estimulam a dopamina no cérebro, dando uma sensação de prazer, mas não de satisfação: elas fazem o usuário pedir mais.

A atenção deve seguir na maioridade. Fortes ensina que entre a adolescência e os 25 anos de idade há um intenso desenvolvimento do tecido cerebral. Nessa fase, habilidades cruciais estão sendo desenvolvidas, como capacidade motora, raciocínio, sensibilidade artística, competências sociais, afetividade, resiliência, saúde emocional e comunicação. Por isso, o cérebro é mais plástico, moldável, adaptável. Para que essa evolução aconteça, precisamos oferecer múltiplos estímulos sensoriais ao adolescente e seu tecido neuronal. E quanto mais diversificado esse estímulo, maior o desenvolvimento cerebral e de habilidades. “No entanto, a atual geração está fechada em apenas um desses estímulos: as telas.” 

O cérebro lê todo o conteúdo digital – seja um vídeo, uma foto no Instagram ou um movimento no videogame – como um único tipo de estímulo. A riqueza sensorial (textura, cheiro, tato, atividades físicas) é fundamental para a neuroplasticidade. “O resultado inevitável é a falta de desenvolvimento em habilidades fundamentais para a nossa existência”, alerta. Fortes explica ainda que o tecido nervoso, que recebe e transmite sinais elétricos, é segmentado em áreas específicas para cada habilidade. Ou seja, em lugares pouco estimulados surgem “apagamentos neuronais”. Isso significa que alguns circuitos são “desligados”. “Por isso, nossos adolescentes estão com menos “aptidões”, o que pode ser irreversível e devastador para um indivíduo em franco desenvolvimento socioemocional”, lamenta o médico.

“No entanto, o papel do limite não cabe apenas aos pais. Muitas vezes, escolas já extrapolam o tempo de telas conectando os alunos ou pedindo deveres de casa em plataformas digitais. Defendo um ambiente escolar 100% livre de telas”, diz o médico, que também apoia a exigência de regulamentação das redes e elaboração de algoritmos pelas big techs que protejam crianças e adolescentes. “O tempo excessivo de telas prejudica o sono, que atrapalha a rotina alimentar, que prejudica o crescimento físico e mental saudável, e piora as relações interfamiliares, já delicadas na adolescência. Precisamos arrumar essa cadeia de acontecimentos, antes que seja tarde,” diz ele.

Para muitos Gen Z, os efeitos já são sentidos. Haidt argumenta que essa é a geração mais tímida, que menos arrisca, menos namora e faz menos sexo. Essas características já são aparentes no mercado de trabalho: gerentes que empregam esses jovens dizem que essa é uma turma difícil de administrar, e de empregar: a mão de obra tornou-se mais escassa. Até no Vale do Silício, onde grandes empreendedores até pouco tempo atrás despontavam já na faixa dos 20 anos, a Geração Z anda devagar. Desde 1970, esta é a primeira vez que nenhum deles figura entre os fundadores mais promissores da indústria. 

Haidt, que dedica o livro a professores e diretores de quatro excelentes escolas públicas de Nova York, por onde suas duas crianças passaram, esmiuçou a vida infantil em diversos aspectos, sugerindo inclusive que tirar o recreio como castigo de uma criança arteira é o pior que se pode fazer, porque talvez tempo e espaço para arejar seja o que ela mais precise. 

Entre as sugestões de experiências no mundo real que ele lista no livro, está o movimento CISV International, que estimula debates e engajamento multicultural em colônias de férias em todo o mundo, incluindo onze cidades brasileiras, e onde celular é como uma persona non grata. O autor sabe que muita gente acredita que essa epidemia é irreversível, porque, como se diz em inglês, “o trem já deixou a estação”. Para essas pessoas, Haidt manda um recado: “Ora, se o trem está cheio de crianças em direção a uma ponte quebrada, é hora de freá-lo.”

Tania Menai

autora de seis livros, entre eles Unicórnio Verde-Amarelo: Como a 99 se Tornou uma Startup de um Bilhão de Dólares, pela Companhia das Letras

Moro escapa, mas TSE deve reverter julgamento do Paraná

Por 5 votos a 2, TRE do Paraná rejeita pedidos de cassação do ainda senador (leia em Carta Capital)

O que há de novo?9-4/24

A polícia do Tarcísio em ação: governador inspira covardia e morte

Elon Musk: arrogância e prepotência podem ter dias contados no Brasil

Gangster das redes sociais ameaça democracia e põe em risco a soberania nacional

Dono do antigo twitter e promotor das fake news no mundo inteiro, recebe apoio do bolsonarismo e questiona decisões do Supremo Tribunal Federal.

Que gente é essa? (editorial)

"Vamos dar golpe em quem nós quisermos"

De um tuíte de Elon Musk postado em 2020, recuperado agora por Letícia Casado, no Uol (expandir)

Pois então...

Chama a atenção o jeito adocicado como os "grandes" jornais e veículos de forte presença conservadora na imprensa brasileira vêm tratando nos últimos dias aquilo que já pode ser chamado de "escândalo Musk". O país está diante de um bando de criminosos que encontrou nesse cidadão sul-africano um arrimo, e dos piores: o dono do antigo twitter aposta alto no colapso político que significaria a desqualificação da estrutura jurídica do país - a começar pela Constituição. E aposta alto por 2 motivos. O primeiro é de natureza empresarial, já que alcançar o topo da queda de braço com o STF alavancaria o estado de dificuldades globais que seus negócios enfrentam (leia no GGN e no Intercept). Sob esse aspecto, as bravatas do tuiteiro mostram que o combate ideológico contra Alexandre de Moraes é mais encenação do que qualquer outra coisa. Quem deu a esse processo o colorido 'programático' foram os fantoches de extrema direita que viram nos ataques de Musk alguma coisa que poderia se traduzir em dividendo político contra Lula e os setores mais progressistas do cenário nacional. O próprio Bolsonaro, que anda fazendo de tudo para não ser preso, atirou para cima na esperança de que alguém o ajude:  "é o mito da nossa liberdade", disse o imbecil. Ninguém mais leva a sério esse cara...

O segundo motivo é político, mas não diz respeito às condições políticas nacionais e sim ao quadro que vai se desenhando com a proximidade das eleições nos EUA. Musk vê no crescimento das possibilidades eleitorais de Trump a ampliação de seu capital de referências internacionais, e nesse caso o Brasil tem peso e, na hipótese de que o dono do 'X' se saia bem na queda de braço com a nossa suprema corte, sob todos os aspectos, do simbólico ao financeiro, estaríamos diante de um processo de efeitos difíceis de avaliar, embora todos (os efeitos) sejam favoráveis a ele.

A coisa toda fica mais complexa quando a análise volta seu foco para as consequências desse embate no Brasil. As primeiras avaliações dão conta de que a reação conservadora-liberal, social-democrata e de esquerda (esse arco legalista que se formou em paralelo com os desastres da extrema direita) ao ataque de Musk teve o efeito de clarear o quem é quem na crise política, uma coisa que nem mesmo as eleições de 2022 conseguiram, da tentativa de inviabilizar a posse de Lula à cadeia de escândalos bolsonaristas, passando pelo fracasso do asilo do capitão na embaixada da Hungria, da possibilidade de sua prisão, pelo vergonhoso envolvimento de altas patentes das FAs no 8 de janeiro, delações, 1a dama usando joias que não são dela e pelo desencanto dos bolsonaristas com tudo isso, em especial agora que o STF mandou para o espaço, por  unanimidade, a tese do poder moderador das Forças Armadas. O 25 de fevereiro pode ter sido alguma coisa como a sofreguidão do atleta que vê o pódio se distanciando porque depois daquela multidão atarantada na Paulista as notícias só pioraram. Nesse cenário, Musk aparece aos bolsonaristas como a (peço desculpas pelo lugar comum)  'tábua de salvação': todo mundo correndo em seu apoio nos ataques a Moraes, erguendo-o como um demiurgo que vai salvar a democracia no Brasil, campeão dos direitos civis e toda a pataquada que só os bolsonaristas sabem reproduzir.  A exceção fica para a coerência que os "grandes veículos" de comunicação (vários, mas nem todos) guardam com a impressão de descontrole que a cena geral evoca. Se Musk turva a gestão Lula, viva Musk! De manchete em manchete, de artigo em artigo, de condicionais em condicionais... tudo, absolutamente tudo, entra na moedeira das insuportáveis colunas feitas por encomenda contra o equilíbrio orçamentário, contra o Estado do Bem-Estar Social, contra as mazelas dos partidos... Alguns jornais, por conta dessa política editorial caolha e anti-jornalística, acabaram se tornando verdadeiros almanaques de curiosidades com baixíssimo nível de informação. Essa turma está com o canto da boca húmido de prazer, prazer que aumenta agora com a entrada em cena do Sr. Musk

A realidade, no entanto, é mais dura, e nem só de Alexandre de Moraes vive o Brasil. Um dia depois do "ecândalo Musk", quem falou grosso foi o presidente do STF, Luiz Roberto Barroso: empresas de qualquer tipo têm que obedecer a legislação brasileira, disse ele. Mostrou que não está para brincadeira e denunciou "o inconcormismo contra a prevalência da democracia [que continua sendo manifestado na] instrumentalização criminosa das redes sociais". A essa altura, Alexandre de Morais já tinha instalado inquérito contra Musk. Refiro-me a Barroso como poderia tê-lo feito com outros personagens que se distribuem entre esses 2 grandes grupos em que o país está dividido. Para um deles, parece-me que a situação ficou mais difícil...

Minha impressão é a de que essa gente atordoada com o sinuoso mas perceptível isolamento do fascismo mediu mal medida sua carga de recursos políticos e orgânicos para um enfrentamento  dessa dimensão. Vou elencar abaixo aqueles que considero os textos que melhor dimensionam o cenário... É ler e acompanhar...


# Para entender o jogo de Musk (GGN)

# Sakamoto: Musk destampa o esgoto do X/twitter (Uol

#  Bolsonaristas vão às redes e apoiam Musk em ataques a Moraes (Folha

# Anatel de prontidão para retirar X do ar (Uol

# Jamil Chade: Musk e extrema direita repetem no Brasil receituário que aplicaram nos EUA (Uol

# Estadão disfarça, mas aposta em Musk para desestabilizar governo (Estadão)

# Musk joga água no moinho da extrema-direita no Brasil de olho na eleição de Trump (G1)

# PL das redes sociais. Entenda o que o texto diz sobre conteúdo criminoso e obediência a decisões judiciais (G1)

# Musk infla rede bolsonarista e mira interesses comericiais do X (Uol)

# Elon Musk atacou soberania nacional, diz Orlando Silva, relator do PL das fake news (Uol)
# O que pode acontecer com Musk e com o X após decisão de Moraes (Uol

# Pochmann alerta: "o ataque de Musk é uma ação calculada" (247)

# O que as bravatas de Elon Musk têm a ver com Eduardo Bolsonaro? (Pública)

# Musk lucra com vigilância estatal que diz combater (Intercept)
# Empresas de mídia que tiveram atuação suspensa por desobediência à lei (Uol)

# Musk tentou silenciar críticos, pesquisadores e censurar uso de dados (Uol) 

60 anos do golpe de 1964

As universidades públicas brasileiras e a violência 'confidencial' dos anos de chumbo

Gaspar Paz (A Terra é redonda)

Na foto,  o físico Mário Schenberg, uma das vítimas da ditadura

Sergio Barbo (Pública)

Batidas policiais nas madrugadas...

Renan Quinalha (A Terra é redonda)

A bela homenagem de Maringoni

O traço de Ziraldo devia ser símbolo nacional

Por Gilberto Maringoni, DCM (expandir)

NUNCA HOUVE NO MUNDO UM ARTISTA GRÁFICO COMO ZIRALDO. Não estou exagerando: nunca houve! Em tempo algum. Até porque seria um reducionismo classificar o mais famoso filho de Caratinga – desculpem Ruy Castro, Miriam Leitão, Agnaldo Timóteo e Silvio Brito – apenas como “artista gráfico”.

O PAI DO MENINO MALUQUINHO abraçou os ofícios de editor, quadrinhista, chargista, locutor, jornalista, escritor, teatrólogo, publicitário, entrevistador, roteirista, jurado de televisão e ator. Sim, ator: procurem no Youtube “Esse mundo é meu” (1964), filme de Sérgio Ricardo, no qual nosso herói faz papel de padre. E ainda se gabava de cantar boleros com a competência de um Gregório Barrios. Ninguém foi tantos, nenhum foi muitos assim. Um showman, um dínamo, um azougue, como se dizia muito lá atrás (ele só não se entendia com a internet).

ISABEL LUSTOSA LEMBRA que apenas dois artistas poderiam se equiparar a ele na imprensa brasileira: Angelo Agostini, absoluto em jornais e revistas na segunda metade do século XIX, e J. Carlos, explosão criativa nos primeiros 50 anos do seguinte. O mineiro surgiu nessa época e esparramou seu talento daí por diante.

ZIRALDO CRIOU A PRIMEIRA série de quadrinhos do mundo a ter como protagonistas um menino negro com deficiência – o Saci – e um membro dos povos originários – Tininim. Era a Turma do Pererê, que mesmo publicado esparsamente nos últimos 65 anos, não tem comparação a altura. Com suas namoradas – Boneca de Pixe e Tuiuiú -, conviviam com a onça (Galileu), o macaco (Allan), o jabuti (Moacir), o tatu (Pedro Vieira) e um coelho estranhamente vermelho (Geraldinho) – tudo supervisionado por Mamãe Docelina. Os nomes vinham de amigos de infância. O gibi vendia como água, entre 1959-64. Saiu de circulação no mesmo mês do golpe.

O PERERÊ SINTETIZOU modos de vida da transição demográfica do Brasil rural para o urbano. O país que em 1930 tinha quase 80% da população distribuída esparsamente no campo passou a ter, três décadas depois, metade de sua gente habitando cidades do sul-sudeste, inchadas e carentes de infraestrutura e instituições que amparassem os fugitivos da fome e da miséria.

NAS PÁGINAS DO GIBI, isso é mostrado sem cacoetes acadêmicos, através de uma trupe em infindáveis peripécias num ponto incerto do “Brasil central”, defendendo seu modo de ser, sua floresta e até mesmo o direito de estar vivo num mundo que se transformava aceleradamente. Moacy Cirne destacou, em “A linguagem dos quadrinhos” que “poucas vezes, no quadro geral da literatura e arte brasileiras, uma obra refletiu com tanta agudeza crítica os problemas sociais de sua época”.

NO DESENHO, SUAS INFLUÊNCIAS MAIORES vieram da geração de cartunistas europeus surgidos no pós-Guerra – Sempè, Steinberg, André François e outros – e expoentes do modernismo brasileiro. “A partir de determinado tempo, passei a olhar mais os trabalhos de Portinari e Di Cavalcanti, com formas justapostas de efeitos gráficos muito originais”, me contou numa conversa em fins de 1990. Seus traços do começo dos anos 1970 revelam uma crescente preocupação formal, tendente ao geometrismo, que resultava em composições quase construtivistas

ZIRALDO FOI TAMBÉM O MAIS POPULAR autor de livros infantis brasileiros da atualidade. O seu “O menino maluquinho” (1979) já passa de 2,5 milhões de exemplares vendidos, tendo sido convertido para teatro e cinema, além de gerar uma série de outros produtos. Marcante foi sua atuação durante a ditadura (1964-1985), não só através dos trabalhos para a imprensa, mas também em colaboração com as campanhas da Anistia e das Diretas Já, bem como para inúmeras entidades populares. Deve entrar nessa conta, também, seu papel decisivo para o sucesso do “Pasquim”, a partir de 1969.

UMA AMIGA EM COMUM – Sonia Luyten – me sintetizou o significado afetivo de Ziraldo, depois de viver anos no Japão, num tempo em que não existia internet ou facilidades de comunicação instantânea. “Vi por acaso uns desenhos dele numa publicação e senti uma saudade imensa do Brasil. Aquilo para mim é um pedaço de nosso país”.

É ISSO MESMO. O traço de Ziraldo – agora um imortal sem nunca ter entrado na Academia – é um símbolo nacional. O Pererê bem poderia estar no centro de nossa bandeira.

Valeu, Ziraldo

Bonita e abrangente matéria sobre Ziraldo publicada neste fim de semana: o resgate da história de um dos maiores artistas brasileiros. 

Do Menino Maluquinho à luta contra a ditadura: irreverência e delicadeza a serviço da cultura brasileira (leitura indispensável no G1)

pensatas para o fim de semana 4-6/4/24

60 anos depois do golpe...

"Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue" (Fernando Pessoa, Livro do desassossego).

"Eu nem sabia que eram 56", disse Derrite (em 2o plano) sobre o número de mortos durante a Operação Verão

Tarcísio, Derrite, a Operação Verão e a banalidade da morte

# Programa de ação da PM acabou oficialmente nesta 3a feira (2/4) e acumula denúncias de torturas e execuções. Somados os números da Operação Escudo, do ano passado, o total de mortos chega a 80 (leia mais na Carta Capital e na Folha), abaixo portanto do número mágico que inspira Tarcísio: 111. Mas ele chega lá... se o MP não adotar alguma restrição legal que o impeça de conduzir a política de segurança da forma como vem fazendo.

Licença para matar

Um retrato da Polícia Militar de Tarcísio. Fernando de Barros e Silva, Piauí (expandir)

No dia 2 de fevereiro, Lula e Tarcísio de Freitas participaram das comemorações de aniversário do Porto de Santos, que completava 132 anos. A plateia, quase toda simpática ao petista, chegou a ensaiar vaias contra o governador de São Paulo, mas foi contida pelo presidente, que pediu respeito aos presentes. Quando chegou a sua vez de falar, Lula disse que o fato de estar ali, ao lado de Tarcísio, era um “ato civilizatório”: “Mais do que um anúncio de investimentos em Santos, este ato significa que precisamos restaurar a normalidade neste país”, disse o presidente. Sobraram sorrisos, afagos e amabilidades de lado a lado, tudo registrado pela lente de Ricardo Stuckert.

A cerimônia foi marcada pelo anúncio da parceria de 6 bilhões de reais para a construção do túnel Santos-Guarujá, uma demanda já muito antiga, considerada estratégica para desafogar o trânsito da região e modernizar a infraestrutura do maior porto do país.

Ato civilizatório. Restauração da normalidade institucional. Túnel para o progresso. São palavras que não faziam – e não fazem – o menor sentido a poucos quilômetros dali, nas favelas das cidades que compõem a Baixada Santista, onde uma multidão de brasileiros aviltados, vivendo em condições de vulnerabilidade extrema, vem sendo aterrorizada pelas ações da polícia. 

Enquanto Lula gastava saliva, Tarcísio estava trabalhando. A verdade da retórica civilizatória do petista não estava na imagem da confraternização flagrada por Stuckert, mas no túnel da barbárie que a polícia de Tarcísio, o engenheiro do bolsonarismo, não para de cavar. Se estivéssemos diante de um quadro – a tela da “restauração da normalidade” –, Lula seria o encarregado pela definição da moldura, enquanto Tarcísio seria o artista responsável pelo desenho sinistro da nova aquarela do Brasil.

Eis a nova cara da normalidade. Essa é a mensagem do governador  – a quem alguns humoristas da imprensa insistem em caracterizar como gestor moderado – quando afirma que “o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não estou nem aí”.

Em 2012, diante da execução pela Rota de nove integrantes do PCC, num sítio em Várzea Paulista, município próximo da capital, o então governador Geraldo Alckmin lançou mão de uma frase cínica que ficaria famosa: “Quem não reagiu está vivo.” A era do cinismo foi para o raio que o parta, ficou para trás, mas não porque as coisas tenham melhorado – elas na verdade se agravaram. O “eu não estou nem aí” de Tarcísio equivale ao “eu não sou coveiro” de Bolsonaro. Não basta empilhar cadáveres, é preciso tripudiar sobre eles.

Vamos aos fatos.

Até o dia 18 de março, a polícia havia matado 76 pessoas na Baixada Santista ao longo de duas operações supostamente destinadas a combater o crime organizado, mas voltadas, na verdade, para vingar a morte de dois policiais. A primeira delas, chamada Operação Escudo, foi deflagrada após o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, da Rota, em 27 de julho de 2023, e resultou em 28 mortes. A segunda, conhecida como Operação Verão, foi desencadeada após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, também da Rota, numa favela de Santos, no mesmo dia 2 de fevereiro em que Lula e Tarcísio se encontravam na cidade. Em um mês e meio, a reação policial havia resultado na morte de 48 pessoas.

Os números falam, ou gritam, por si. Mas não traduzem todo o horror patrocinado por Tarcísio e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite: execuções sumárias; modificação das cenas dos crimes; ausência de socorro e falsos socorros, como o transporte ao hospital de pessoas já mortas, impedindo a perícia no local do crime; tiros de fuzil a longa e a curta distância, em regiões letais, como rosto e tórax; ameaças e intimidações a testemunhas; abordagens violentas e torturas, especialmente quando as vítimas já tiveram passagens criminais; omissão de informações no boletim de ocorrência; violação do direito ao luto e ao acesso a informações, impedindo que as famílias das vítimas conheçam os laudos necroscópicos ou façam o reconhecimento do corpo de seus parentes no IML.  

Esse inventário de ilegalidades (e atrocidades) praticadas pelos agentes do Estado consta do mais recente Relatório de monitoramento de violação de direitos humanos na Baixada Santista, documento assinado por um coletivo de entidades que se dedicam a mapear, entender e combater em várias frentes a violência brasileira.

A socióloga Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que integra o grupo, foi à Baixada mais de uma vez desde fevereiro. Entrou nas casas invadidas pela polícia, conversou com parentes das vítimas, documentou in loco as marcas da matança e não hesita em dizer que este é um caso “sem precedentes” na história da polícia paulista (excetuando, claro, o massacre do Carandiru, em 1992). “A situação é mais grave, muito mais grave do que a imprensa tem conseguido reportar. E não vai parar por aqui.” De fato, não parou: depois da publicação do relatório, a polícia havia assassinado mais cinco pessoas na Baixada: já eram 53 mortes no âmbito da Operação Verão até o fechamento desta edição.

Samira Bueno compara o que acontece na Baixada aos piores momentos das operações policiais em morros cariocas – “a gente só via algo parecido com isso no Rio de Janeiro”. Despreparo, descontrole, sadismo e fúria são palavras que usou durante nossa conversa.

Entre os fatores que explicam a escalada da violência em São Paulo, a socióloga destaca o abandono quase completo do uso das câmeras corporais por parte dos policiais desde que Tarcísio tomou posse. Os números gritam mais uma vez. No caso da Rota, as câmeras haviam sido adotadas em junho de 2021, na gestão de João Doria. Entre janeiro e maio daquele ano, a Rota havia matado 42 pessoas. De junho a dezembro de 2021, foram 4 mortes, uma queda superior a 90%. Em 2022, o único ano em que as câmeras foram usadas todos os meses, a Rota matou 9 pessoas. A partir de 2023, sob Tarcísio, a coisa muda: 33 mortes em 2023, 18 mortes só no primeiro bimestre de 2024.

Estamos diante de uma política de Estado. Tarcísio está fazendo com a Polícia de São Paulo o que Bolsonaro não conseguiu fazer com a Polícia Federal. A bolsonarização está em curso: em 21 de fevereiro, no meio da matança, o governador anunciou a mudança, de uma só vez, de 34 coronéis em funções de comando na Polícia Militar. Os cargos mais importantes da PM paulista agora estão sob a direção de oficiais que fizeram carreira na Rota. Derrite emplacou sua patota na cúpula da principal polícia estadual do país.

Vale lembrar quem é o secretário: um ex-capitão da Rota, afastado de lá em 2013, apenas três anos depois de seu ingresso na corporação, por comportamento excessivamente violento – acreditem. “Eu matei muito ladrão”, disse ele a um canal do YouTube em 2021, quando repetiu diversas vezes que a Rota era sua “grande paixão”.

Famoso nas redes sociais, eleito duas vezes deputado federal, em 2018 e 2022, Derrite é um tipo desclassificado o bastante para ter futuro político no bolsonarismo. Já se fala que ele seria um nome para suceder Tarcísio em 2026, caso o governador se aventure a disputar a Presidência da República. São só especulações. Há outras, talvez mais preocupantes, ou mais próximas de nós. Um coronel da PM legalista e defensor do uso de câmeras corporais, devidamente escanteado pela atual gestão, disse a Samira Bueno que se o Oito de Janeiro fosse hoje, o comportamento da polícia de São Paulo talvez fosse diferente. Podemos imaginar o que isso significa. A carnificina na Baixada seria só o primeiro sintoma de uma onda capaz de varrer, e cobrir de sangue, o Brasil.

Tarcísio é uma ameaça à democracia

# Para Comissão Arns projeto de reforma da PM põe em risco Estado Democrático de Direito (Folha) # Tarcísio é a mais perigosa expressão do bolsonarismo (Luis Nassif, GGN) # O batalhão de Derrite. Editorial da Folha denuncia política de desprofissionalização da PM em favor de práticas criminosas na ação policial # Tarcísio promove a coronel PM condenado por violência policial em SP (Folha) # "Tô nem aí" de Tarcísio funcionou como "senha" para execuções na Baixada Santista (Folha)

Arqueologia de um crime: Os bastidores da investigação do caso Marielle

Chico Otávio, Piauí (expandir)

- Tem visto a Cris? – perguntou o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz à sua mulher, que o visitava na Penitenciária Federal em Brasília, no início do ano passado. Queiroz estava preso desde março de 2019, sob a acusação de participar do atentado que, um ano antes, matou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. “Cris”, na verdade, era um código que o casal combinara para designar a ajuda financeira que sua família recebia do comparsa Ronnie Lessa, outro ex-policial militar, que estava preso pela mesma razão. O dinheiro era o pagamento que Queiroz recebia em troca de sua lealdade. Quando sua mulher, Suzana, lhe respondeu que a Cris não aparecia havia tempos, Queiroz percebeu que estava sendo abandonado – ou “cheirando a peixe”, expressão que, no submundo do crime no Rio de Janeiro, significa apodrecer na prisão.

Quando foi preso, Queiroz passou a receber uma ajuda de 10 mil reais mensais, fornecida por Ronnie Lessa. Eram 5 mil reais para a família e outros 5 mil para os advogados, valores sempre entregues pelo ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, conhecido como Suel. Com o tempo, a ajuda aos advogados foi cortada e, aos poucos, a parcela destinada à sua família foi minguando. Em 2022, o dinheiro já estava em apenas 2 mil reais, depois caiu para 1,5 mil – até que parou por completo. Queiroz chegou a pensar que o corte do pagamento decorria do fato de que Suel estivesse no “spa”, outro código, que se refere à prisão. “Que nada”, respondeu a mulher de Queiroz, durante a visita ao marido, segundo a reconstituição feita mais tarde pelo próprio preso. Suel continuava em liberdade naquela altura. “A Cris é que sumiu mesmo”, disse Suzana.

A Polícia Federal, que em fevereiro de 2023 fora acionada para voltar à investigação dos dois assassinatos, aproveitou a penúria financeira. Cada vez que agentes federais visitavam Queiroz na prisão, exibiam algum novo indício da participação de Lessa e dele próprio no assassinato de Marielle e Anderson. Era uma forma de tentar quebrar sua resistência e induzi-lo a falar o que sabia – e o sumiço da Cris foi providencial.  

Numa ocasião, os agentes mostraram um trecho do depoimento da mulher de Lessa, Elaine Pereira Figueiredo Lessa. Ao falar com a PF em abril do ano passado, ela admitiu que, no dia do crime, 14 de março de 2018, havia passado quase todo o tempo em casa. Saiu apenas para levar o filho na aula de inglês às 15h30 e estava de volta às 18h30. E introduziu uma revelação decisiva. Disse que só viu o marido chegar em casa na manhã seguinte. Aparentemente, ela não percebeu que sua informação derrubava o álibi de Lessa e Queiroz, que insistiam em dizer que estavam juntos, na casa de Lessa, no momento do crime, que ocorreu por volta das 21h30.

Em outra ocasião, os investigados exibiram para Queiroz os comprovantes de que Lessa fizera uma busca online para descobrir dados pessoais de Marielle na tarde do dia 12 de março de 2018, dois dias antes do crime. No CCFácil, um site de dados cadastrais para a concessão de crédito, Lessa pesquisou o CPF de Marielle e seu endereço residencial – Rua do Bispo, nº 227. Quatro minutos depois de obter o endereço, fez nova pesquisa no Google Maps com as palavras-chave “rua do bispo 227”. O cerco, lentamente, estava se fechando. Mas, o pior de tudo para Queiroz, era mesmo a sensação de abandono, de estar “cheirando a peixe”.

Em junho de 2023, magro e abatido, Queiroz estava rendido. Resolveu contar o que sabia. Fez um acordo de delação premiada e contou sobre sua participação no crime, deu detalhes sobre a atuação de Ronnie Lessa e falou do envolvimento de outros dois comparsas. As suas revelações jogaram luz no caso e pulverizaram as chances de absolvição dos envolvidos no crime – e, seis meses depois, abriram caminho para a mais decisiva delação no caso. 

Pressionado pela confissão de Queiroz e convicto de que jamais seria absolvido, Ronnie Lessa capitulou e selou um acordo de colaboração. Confessou que ele próprio executara Marielle e o motorista. Foram treze tiros de uma submetralhadora alemã HK MP5. Disse que os mandantes do crime eram os irmãos Domingos Inácio Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e João Francisco Inácio Brazão, o Chiquinho, deputado federal então filiado ao União Brasil. E contou que todos receberam a garantia de que o crime ficaria impune da boca do próprio chefe da Polícia Civil do Rio, o delegado Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior, que assumira o cargo um dia antes do crime e ajudara a planejar o atentado. A menção ao delegado era uma surpresa, mas apenas parcial. Afinal, quando Barbosa foi nomeado para chefiar a Polícia Civil em 2018, a subsecretaria de Inteligência da própria corporação avisara ao comando da intervenção federal na segurança do Rio que não o nomeasse devido às suspeitas sobre seu comportamento. No entanto, os interventores, liderados pelo general Walter Braga Netto, ignoraram o alerta.

No início deste ano, com as delações na mão, estava tudo se encaminhando para anunciar publicamente o desfecho da investigação sobre o assassinato de Marielle e Anderson, o crime de maior repercussão no Brasil e no exterior nos últimos anos. Os investigadores esperavam dar a notícia antes do aniversário de 6 anos do atentado, em 14 de março. Mas, no dia 21 de janeiro, quase tudo foi por água abaixo.

Naquele dia, o colunista do jornal O Globo, Lauro Jardim, publicou uma nota com o seguinte título: Assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes faz acordo de delação com a PF. O furo provocou uma crise interna. Lessa, que contava com a promessa de sigilo total, pensou em desistir da colaboração. Outras delações, já engatilhadas, emperraram. Era previsível. A PF sabia que, no mundo violento do crime, onde impera a lei do silêncio, a notícia de que um criminoso está em processo de colaboração pode ser fatal. Tanto que, dentro da própria equipe da PF, houve quem quisesse abandonar o caso.  

Desde o primeiro momento, os policiais federais haviam selado um pacto de que não haveria qualquer vazamento à imprensa no curso das investigações. O acerto teve resultados concretos. A imprensa só soube da delação de Queiroz quando houve o anúncio oficial. Também só soube da prisão do ex-bombeiro Suel – acusado de participar dos preparativos do crime e depois de apagar os rastros – no dia exato de sua detenção, em 24 de julho do ano passado. A nota publicada em O Globo era um sinal de que a unidade se rompera, mas o grupo – desconfiado de que o vazamento tivesse partido de advogados – logo se reaglutinou.

Entretanto, os investigadores continuaram preocupados com as notícias que saíam aqui e ali. Antes mesmo da assinatura do acordo de delação de Ronnie Lessa, alguns sites noticiosos retomaram uma especulação antiga: a do possível envolvimento de Domingos Brazão no crime. Os agentes ficaram tensos diante da certeza de que haviam perdido o elemento-surpresa. Quando a delação foi concluída, Brazão sentiu que as coisas estavam ficando nebulosas e começou a se movimentar. Na sede do Tribunal de Contas, ele andava inquieto. Dizia que não tinha nada a ver com o crime e nunca vira “esse tal de Lessa”. Mas não conhecia o conteúdo da delação.

Em busca de informações, Brazão acionou advogados e aliados para ter acesso à investigação. Disparou ofícios para todo mundo: o Ministério Público do Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o Tribunal Regional Federal, o Superior Tribunal de Justiça e, por fim, o Supremo Tribunal Federal. Ofereceu-se para depor, alegando que não tinha nada a esconder. Seus argumentos não surtiram efeito, seus apelos caíram no vazio – e Brazão, segundo apurei com fontes muito próximas do conselheiro, convenceu-se de que sua prisão era inexorável.

Tomado pela angústia, Brazão montou um dossiê. Nele, segundo me foi relatado por uma fonte que teve acesso ao conteúdo, Brazão aponta quem foi o culpado pela morte de Marielle e Anderson: o ex-bombeiro e miliciano Cristiano Girão. Na tentativa de provar sua denúncia, Brazão lembra que o nome de Girão apareceu oitenta vezes no relatório final da CPI das Milícias, presidida em 2008 pelo então deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), que era assessorado por Marielle Franco. (No mesmo relatório, o nome do próprio Brazão também aparece, mas é citado apenas três vezes.) No encerramento da CPI, Girão acabou na prisão, de onde só saiu em 2017. Na tese de Brazão, o assassinato de Marielle era uma vingança do miliciano pelos anos passados na cadeia.

O dossiê também recorda que Girão voltou à prisão, onde está atualmente. E, desta vez, foi preso em decorrência de uma investigação que concluiu que Girão mandou matar outro policial miliciano – André Henrique da Silva Souza, o André Zóio – e quem executou o crime foi o mesmo Ronnie Lessa. Para Brazão, são indícios suficientes para convencer as autoridades de que Girão é o mandante do assassinato da vereadora e do motorista. Quando foi preso, Brazão entregou o dossiê na mãos dos investigadores da Polícia Federal.

Na prática, mediante as especulações do seu envolvimento, Domingos Brazão estava voltando ao primeiro plano das investigações. Seu nome entrara no radar da Polícia Federal em 2019, quando foi acusado de obstrução da justiça no inquérito do caso Marielle, então conduzido pela Delegacia de Homicídios do Rio. Na época, os investigadores da PF , que foram chamados para fazer uma “investigação da investigação”, suspeitaram que Brazão usara um policial federal aposentado, Gilberto Ribeiro da Costa, que trabalhava no seu gabinete no Tribunal de Contas, para embaralhar as investigações ao plantar uma testemunha falsa, o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha.

A suspeita dos agentes federais empacou no Ministério Público do Rio, que não viu razões para denunciar Brazão por obstrução da justiça. A posição do MP foi referendada pela Justiça estadual, e assim Domingos Brazão voltou a submergir. Até que Ronnie Lessa fez o acordo de delação e trouxe seu nome à tona, junto com o do irmão Chiquinho Brazão.

Para chegar neste resultado, a Polícia Federal teve que percorrer um calvário, onde se misturaram clamorosas falhas investigativas, sabotagem institucional, crise corporativa e pressões políticas.

Em fevereiro do ano passado, quando o então ministro da Justiça, Flávio Dino, ordenou que a Polícia Federal voltasse a se envolver na investigação do caso Marielle, os agentes federais encontraram um cenário desalentador. Tiveram que trabalhar como se fossem arqueólogos, buscando vestígios sob os escombros de uma investigação que, até ali, se empenhara mais em esconder do que em revelar. Já fazia cinco anos que o crime fora cometido e muita coisa havia se perdido. Não havia esperança de recuperar os dados telemáticos dos suspeitos, desprezados pela Delegacia de Homicídios.

Também já era tarde demais para buscar as imagens das câmeras de segurança nas vias públicas. O Centro de Convenções SulAmérica, que fica a poucos metros do local do atentado, tinha seis câmeras. A rota de fuga do Cobalt, o automóvel usado por Queiroz e Lessa para cometer o crime, passava em frente a esse prédio. No entanto, segundo consta no relatório da Polícia Federal, um agente da Polícia Civil esteve no local logo depois do crime, mas nem sequer apresentou um pedido formal para recolher as imagens, contentando-se em tirar uma foto com seu celular da sala de monitoramento.

As falhas proliferaram. O celular da pessoa que clonou a placa do carro dos assassinos chegou a ser apreendido, mas sumiu dentro da delegacia e jamais foi encontrado. O último a ter contato com o aparelho foi o delegado Giniton Lages, que, na época, comandava as investigações. Lages nunca explicou a razão do sumiço. Mais: uma semana depois do crime, a repórter Vera Araújo, de O Globo, voltou ao local do atentado, no mesmo dia da semana (quarta-feira) e na mesma hora em que tudo aconteceu (21h30), e encontrou o que procurava: uma testemunha direta do caso. No entanto, essa testemunha acabou desprezada nas investigações pelo delegado Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil.

Além do acobertamento, o rumo das investigações também foi errático. Durante cinco anos, a Delegacia de Homicídios conduziu as apurações e, neste período, teve cinco delegados diferentes, entre eles Daniel Rosa, que esteve à frente da unidade entre 2019 e 2020. Nestes anos, desconfiou-se – ou simulou-se a desconfiança – de que o crime tivesse o envolvimento dos chefões da contravenção no Rio, supostamente em disputa para demarcar o domínio de territórios. Pelo menos dois bicheiros, Rogério de Andrade e Bernardo Bello, um pessoalmente e outro por meio de emissário, fizeram chegar a pessoas ligadas a Marielle a garantia de que eram inocentes. O desfecho da investigação mostrou que a suspeição sobre os bicheiros era um equívoco.

Os atropelos na investigação se somaram a complicações corporativas. Quando o procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos, foi nomeado para um novo mandato, abriu-se uma crise no Ministério Público. Mattos fora derrotado na eleição interna do MP e, ao aceitar a recondução pelo governador Cláudio Castro, estava descumprindo o acordo segundo o qual todos os candidatos ao cargo respeitariam a ordem da lista tríplice. A equipe do Gaeco, grupo especializado em combate ao crime organizado, não gostou da atitude do procurador-geral e pediu as contas. A demissão coletiva interrompeu a parceria do Gaeco com a Polícia Federal.

Em paralelo a essa crise, a Polícia Civil do Rio ainda vivia a ressaca da prisão, ocorrida em setembro do ano anterior, do ex-chefe da instituição, o delegado Allan Turnowski, sob suspeita de pertencer a uma organização criminosa e manter ligações com bicheiros. Diante disso, a Polícia Civil não demonstrava maiores interesses em Marielle. Era outro problema, mas, neste caso, a crise acabou virando uma vantagem: a Polícia Federal, aproveitando-se da distração dos policiais civis, assumiu o caso com carta branca.

Os entraves chegaram também no terreno político. Em Brasília, havia pressão para que a investigação se resolvesse o mais rápido possível. No Rio de Janeiro, o poder parecia caminhar noutra direção. O ex-deputado Marcelo Freixo, atual presidente da Embratur, diz que, desde o início da investigação, o governador Cláudio Castro jogou contra a nomeação do delegado Leandro Almada à Superintendência da PF no estado. Almada montara uma força-tarefa para investigar a plantação de informações falsas na investigação. Conhecia bem o caso e, como chefe da PF, poderia ampliar suas condições para elucidar o crime. Segundo Freixo, Castro desconfiava que Almada era um dos responsáveis pela investigação que o envolvia num caso de corrupção.

A pressão do governador não surtiu efeito. Almada virou superintendente da PF no início de 2023. Era uma vitória de Freixo e uma derrota do governador, que já haviam se embrenhado em outros embates. O governador, por exemplo, cortara a segurança pessoal que Freixo recebia desde 2008, quando presidiu a CPI das Milícias. Em janeiro passado, o então secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, estava tentando restabelecer a segurança de Freixo e lhe perguntou se tinha algo para dizer ao governador. Freixo respondeu: “Mande ele tomar no cu.” Desde então, a segurança de Freixo – cujo irmão, Renato, foi assassinado pela milícia em 2006 – passou a ser feita pela PF.

A jornalista Fernanda Gonçalves Chaves, que assessorava Marielle e foi a única sobrevivente do atentado, também se irritou com a postura do governador. No dia 20 de março passado, ao sair de uma audiência com o presidente Lula em Brasília, Castro foi indagado sobre a investigação que corria no Rio. “A gente espera o desfecho o mais rápido possível”, disse, para acrescentar em seguida: “Só o que tem até agora são fofocas jurídicas e políticas.” Logo depois, Fernanda Chaves aproveitou uma reunião da bancada federal do Psol com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para fazer um desabafo. Reclamou que o governador fora desrespeitoso com a investigação e com a memória de Marielle.

De todos os ex-assessores da vereadora, ninguém carrega mais traumas do atentado do que a jornalista. Marielle morreu no seu colo, no banco de trás do carro em que estavam. Nas investigações da Polícia Federal, ela foi uma colaboradora importante, lembrando de detalhes e informações relevantes para o inquérito. Sempre esteve disponível para esclarecer dúvidas. Os policiais às vezes não conseguiam a mesma atenção da parte de outros colaboradores e conhecidos de Marielle, que não escondiam ainda o medo e a desconfiança. Por tudo isso, Fernanda Chaves achou que a postura do governador não era admissível.

(Em nota à piauí, o governador do estado alega que os policiais estaduais estavam prestando segurança irregularmente a um deputado federal (Freixo cumpriu mandato em Brasília de 2019 a 2023) e, aparentemente, suspendeu o serviço. Quando o governo parecia tentar regularizar a situação, o deputado já estava sendo atendido por forças federais, acionadas pelo Ministério da Justiça. A nota é confusa, deixa informações pela metade, não informa as datas das movimentações e termina acusando Freixo de disseminar “mentiras, calúnias e fake news”. A nota não diz uma palavra sobre o caso Marielle.)

Com essa sucessão de problemas – políticos, policiais e corporativos –, os agentes federais logo se voltaram para o último recurso que restava para esclarecer o crime: a delação premiada. Liderados pelos delegados Guilhermo de Paula Machado Catramby e Jaime Candido da Silva Júnior, os investigadores apostaram inicialmente em obter a colaboração de Queiroz por considerá-lo o elo mais fraco. A dupla era experiente. Catramby vinha de uma investigação vitoriosa sobre o ex-garçom Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como Faraó dos Bitcoins, que dera um golpe milionário em quase 90 mil pessoas. Jaime Candido da Silva Júnior, delegado regional de Polícia Judiciária, mais velho que o colega, conhecia como poucos o mundo do crime no Rio, já que passara pela chefia do Setor de Inteligência da PF fluminense.

Os dois, ainda sem saber que Queiroz já se sentia “cheirando a peixe”, pensaram em quebrar sua resistência apontando aquelas provas da investigação. Além disso, tentavam convencê-lo de que, com a Polícia Federal na jogada, era seguro fazer uma delação. Afinal, Queiroz estaria livre da areia movediça da Polícia Civil do Rio. Quando aceitou abrir negociações, Queiroz foi transferido da Penitenciária Federal em Brasília para o Complexo Penitenciário da Papuda, considerado mais seguro para o próprio detento. O hangar da PF, vizinho ao Aeroporto Internacional de Brasília, foi o cenário das negociações.

Queiroz foi logo alertado de que nada resolveria se tentasse proteger alguém em suas revelações. Naquela altura, ele já havia mudado de defesa. Dispensara o advogado Fernando Santana, que também defendia Lessa, e lhe garantia que seria absolvido. Santana achava que as provas contra seu cliente eram frágeis demais. Em seu lugar, Queiroz contratou a advogada Ana Paula de Araújo Fonseca Cordeiro. Antes de começar a falar no hangar da PF em Brasília, Queiroz, segundo me relatou uma testemunha, virou-se para a advogada e perguntou: “Tenho chance de ser absolvido?” A resposta foi dura, mas clara. “Não, você será condenado”, disse ela.

Com uma caneta e um bloco de notas na mão, Cordeiro começou a anotar os detalhes do longo relato de Queiroz. Sim, ele era o motorista do Cobalt que levou Lessa da Barra da Tijuca até a Casa das Pretas, no Centro do Rio, onde Marielle participou de um evento, e dali até a Rua Joaquim Palhares, no Estácio, onde seu comparsa disparou a submetralhadora contra a vereadora e seu motorista. Queiroz também deu detalhes da trama, que começara a ser montada cinco meses antes, e apontou mais dois envolvidos: Edmilson da Silva de Oliveira, o Macalé, ex-sargento da Polícia Militar, que vigiou a vítima, e o próprio Suel, o ex-bombeiro, que também vigiou a vítima e se encarregou depois de dar um fim ao Cobalt, que foi desmontado num ferro-velho.

Seu relato era claro e detalhado, mas não apontava os mandantes. Os delegados nem insistiram nesse ponto porque conheciam o modo de agir de Lessa: ele compartimentava as informações e nunca dizia tudo para uma só pessoa. Queiroz, observando a movimentação de Macalé, chegou a desconfiar – e disse isso na delação – que o bicheiro Bernardo Bello, um dos chefes da contravenção carioca, pudesse estar entre os mandantes do crime. Era um engano. Mais tarde, a PF conseguiu comprovar que o alvo de Bello era outra mulher, Regina Celi, então presidente da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. (Macalé foi assassinado em dezembro de 2021. Bello está foragido.)

De volta ao Rio de Janeiro, a advogada de Queiroz pegou suas notas e ordenou o relato, arrumando tudo em anexos, antes de submeter o material ao seu cliente. Estava tudo certo, mas Queiroz ainda precisava fazer uma escolha. Seguindo o protocolo, a PF ofereceu-lhe o ingresso no programa federal de proteção a testemunhas. Se aderisse, Queiroz teria de cortar o contato com sua família, para, entre outros motivos, não expor o local de acolhida. Nem Queiroz, nem seus parentes aceitaram a oferta. Preferiram uma proteção convencional. Entenderam que a sua liberdade não estava tão longe: ele deve ser sentenciado a doze anos, dos quais já cumpriu cinco.

Os agentes federais chegaram ao mês de julho do ano passado com o processo dos executores do crime praticamente resolvido. Era a hora de se concentrar nos mandantes. Os irmãos Brazão voltaram a atrair a atenção dos investigadores. Afinal, em 2019 já tinham sido alvos da PF por plantar informações falsas sobre os mandantes do atentado. Mas os agentes federais precisavam encontrar um motivo, ou pelo menos uma suspeita de motivo. A tese de que os Brazão poderiam ter matado Marielle para se vingar da CPI das Milícias não parecia fazer muito sentido. Embora os irmãos tivessem influência em regiões dominadas pela milícia, sobretudo em Jacarepaguá e Rio das Pedras, o fato é que o relatório final da CPI mal mencionava os nomes dos irmãos.

A outra possibilidade dizia respeito à Operação Cadeia Velha, deflagrada em novembro de 2017 para investigar um esquema de corrupção em que empresários de ônibus pagavam propina para deputados estaduais – a chamada “caixinha da Fetranspor”, a entidade que representa as empresas de transporte público. Na época, o então deputado estadual Marcelo Freixo entrou com uma ação civil pública que abortou uma manobra que os parlamentares suspeitos bolaram para escapar da prisão. Três acabaram em cana – Jorge Picciani, Edson Albertassi e Paulo Melo –, e a morte de Marielle seria uma retaliação contra Freixo. Ocorre que Domingos Brazão nem sequer fora alvo da Operação Cadeia Velha.

Descartadas as duas hipóteses, a equipe da PF voltou-se para a suspeita de que Marielle, mesmo sem saber, poderia ter contrariado um negócio vital para a família Brazão: a exploração irregular de terras na Baixada de Jacarepaguá, uma região extensa com muitos vazios urbanos e sob forte influência de grupos milicianos. Essa suspeita já existia desde 2018 na Delegacia de Homicídios. O esquema das terras funcionava assim: um empreendedor malandro, que muitas vezes é também grileiro, ergue um condomínio ao arrepio da lei. Constrói casas de classe média, algumas com piscina e quadras esportivas, sem oferecer as contrapartidas exigidas por lei, como arruamento, iluminação pública, área de praças e outros equipamentos urbanos. Feito isso, os vereadores aprovam uma lei destinada a legalizar o loteamento que nasceu irregular, quase sempre sob o argumento de que a área tem “relevante interesse social”.

Inspirada na lógica da desconcentração de poderes, a Constituição de 1988 criou condições para que os vereadores interferissem nas regras de ocupação das cidades, definindo o uso das áreas urbanas e a fixação de gabaritos de edificação. A intenção dos constituintes era boa: democratizar o controle de questões essenciais para a vida urbana. A medida, no entanto, permitiu a aproximação entre vereadores e empresários do setor que, juntos, começaram a alavancar uma fartura de empreendimentos urbanos – e não pararam de criar atalhos.

Um dos atalhos, aberto pela Câmara Municipal do Rio, resultou na criação das chamadas Áreas de Especial Interesse Social (Aeis), que ficam autorizadas a receber um tratamento diferenciado da Prefeitura. As Aeis – em geral, ocupadas por uma favela, um loteamento irregular, um conjunto habitacional de baixa renda – podem operar com gabaritos e dimensões de lotes diferentes dos padrões previstos em lei. Como, na prática, ninguém fiscaliza se os projetos de fato contemplam moradores de baixa renda, abriu-se a porta da farra.

Em 2016, o então vereador Chiquinho Brazão – que pouco depois viraria presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara Municipal – propôs um audacioso projeto de lei, o PLC nº 174. O objetivo da proposta era facilitar a regulamentação de loteamentos em áreas valorizadas da Zona Oeste do Rio, como Vargem Grande, Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá – regiões onde sua família tinha interesses imobiliários. Depois de seis meses tramitando, o projeto acabou sendo aprovado por um triz, mas não contou com o voto de Marielle, nem dos demais integrantes da bancada do Psol.

Depois dessa votação, um assessor de Marielle pediu a assinatura de Brazão em favor de um projeto do Psol. “Vocês votaram contra meu projeto e, agora, pedem meu apoio?”, reagiu ele, irritado, segundo a lembrança do assessor. Era uma negativa inusitada. A troca de assinaturas entre vereadores – os chamados “apoiamentos” – destina-se apenas a viabilizar a apresentação de um projeto, e não sua aprovação. É uma prática comum entre os parlamentares, mesmo aqueles com divergências ideológicas. Os assessores alertaram Marielle sobre a recusa irritada de Brazão. Ela também estranhou. Sabia que o colega conhecia as posições do Psol em relação a projetos sobre ocupação urbana e achava que ele não tinha razões para se aborrecer.

(Em abril de 2018, no mês seguinte ao assassinato de Marielle, o projeto de Chiquinho Brazão foi vetado pelo então prefeito Marcelo Crivella, sob o argumento de que a iniciativa em matéria de zoneamento urbano é uma atribuição reservada ao prefeito. A Câmara derrubou o veto no mês seguinte, mas o Órgão Especial do Tribunal de Justiça considerou o projeto inconstitucional, enterrando de vez o assunto.)

O antagonismo repentino de Chiquinho Brazão contra Marielle podia ser um alerta sobre as relações tensas, mas era preciso investigar mais a fundo. Como os irmãos Brazão tinham direito a foro privilegiado, o caso foi então transferido para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Com isso, a Polícia Federal evitava qualquer passo que pudesse mais à frente gerar a nulidade da investigação. Diante da mudança de competência, o Gaeco estadual, depois de cinco anos e meio envolvido no caso, precisou sair de cena. Deixou então de atuar no processo dos mandantes, mas ficou no caso dos executores.

Enfim, tudo começava a avançar.

Ao saber que a esfera jurídica do caso fora transferida do Rio para Brasília, duas figuras relevantes ficaram otimistas: as promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile, que haviam deixado o inquérito do atentado quase dois anos antes por desconfiar de interferência externa no caso que investigavam. Quando estavam envolvidas na apuração de Marielle, as duas fizeram progressos significativos. Um deles veio na forma de uma perícia nas imagens do Cobalt, quando o veículo estava estacionado perto da Casa das Pretas à espera de Marielle. A perícia mostrou que o braço apoiado no banco traseiro do carro era compatível com o de Lessa.

Outra contribuição decisiva das promotoras foi descartar a linha de investigação escolhida pelo delegado Giniton Lages, que comandava a Delegacia de Homicídios e de onde foi afastado em 2019. Lages insistia em apontar o então vereador Marcello Siciliano (PHS) como mandante e o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, como executor. As promotoras discordavam dessa tese e chegaram a romper relações com Lages. Como ficou comprovado mais tarde, elas estavam certas: os nomes de Siciliano e Curicica foram plantados para desviar a atenção dos reais mandantes do crime.

Convidadas a retornar ao Gaeco, as promotoras aceitaram voltar e passaram a dar orientações aos colegas. Logo retiraram dos arquivos um dos achados relevantes da apuração que haviam feito: as provas de que Ronnie Lessa consultara os dados pessoais de Marielle online. E não só de Marielle. A pesquisa de Lessa também buscara informações sobre Luyara, filha de Marielle, sobre Isadora, filha de Freixo, e dos então vereadores Renato Cinco e Chico Alencar, ambos do Psol. Resgatados das gavetas do Ministério Público, os dados foram entregues à Polícia Federal, que os usou para convencer Queiroz a assinar um acordo de delação.

Nessa altura, com a entrada do STJ no caso, onde a relatoria do inquérito ficou a cargo do ministro Raul Araújo, praticamente todas as instâncias da Justiça estavam envolvidas na investigação, menos o STF – por enquanto. A teia jurídica se ampliou de tal modo que chegou a confundir os agentes federais. Coube a um desembargador do Rio, por exemplo, assinar a ordem de prisão contra Edilson Barbosa dos Santos, o Orelha, dono do ferro-velho onde o Cobalt do crime foi desmontado. Assinada pelo desembargador Paulo Sérgio Rangel do Nascimento às 16 horas de 28 de fevereiro passado, uma quarta-feira, a medida pegou a equipe da PF de surpresa. Os agentes montaram às pressas uma operação para capturar o suspeito.

(Nem o Gaeco, nem a Polícia Federal estavam muito interessados na prisão do dono do ferro-velho. Ninguém acreditava nas chances de recuperar, ainda que apenas partes, o Cobalt que os criminosos usaram na noite do atentado. Mas, se não era um passo relevante para o caso Marielle, a detenção fazia sentido: Edilson dos Santos continuava usando sua oficina para desmanchar carros roubados. Hoje, ele está preso.)

O alvo principal dos investigadores eram os mandantes. A motivação dos irmãos Brazão estava sendo mapeada, mas os federais tinham um caminho claro: insistir em dobrar a resistência de Lessa a fazer uma delação. Nas primeiras abordagens, ele reagia com evasivas. Segundo ouvi de um dos investigadores federais, o pistoleiro sempre dizia alguma variação da seguinte frase: “Não tenho nada a dizer. Sou inocente.” Lessa foi então confrontado com as mesmas provas que venceram a resistência de Queiroz. Quando soube que havia evidências concretas de sua pesquisa online sobre Marielle e que sua mulher derrubara seu álibi, Lessa se abalou. “Isso é igual uma bomba de Hiroshima e Nagasaki nos meus peitos”, disse.

Mas manteve a couraça. Os criminalistas que faziam sua defesa, Fernando Santana e Bruno Castro, que até então estavam confiantes na absolvição, começaram a perder a fé. Eles trabalhavam com a estratégia de esvaziar a natureza política do caso e levar o embate com os promotores para a arena técnica. Pretendiam mostrar que, ao contrário do que afirmava a carga acusatória, Lessa não tinha condições físicas de se mover com destreza dentro de um carro apertado para efetuar os disparos. Ele perdera uma perna em um atentado a bomba em 2009 quando trabalhava como segurança do bicheiro Rogério de Andrade.

Lessa desmontou de vez ao saber que, em meados do ano passado, Queiroz fizera uma delação e Suel, que cuidava de sua operação financeira, fora preso. Tudo somado, Lessa perdeu a esperança de tentar a absolvição. Seus advogados, que trabalham num escritório avesso a acordos de delação, abandonaram o caso. E ele enfim soltou o verbo. Contou que teve três encontros com os irmãos Brazão para discutir o crime. Contou que os mandantes acreditavam que Marielle estava atrapalhando os negócios da família com terras urbanas. E contou que o delegado Rivaldo Barbosa não só prometera impunidade, como ajudara a arquitetar o crime. O delegado, na versão de Lessa, chegou a sugerir que o assassinato não fosse cometido nas imediações da Câmara Municipal para que não caracterizasse um crime político, o que poderia atrair a competência da Polícia Federal para o caso.

Monica Benicio, viúva de Marielle, ainda estava dormindo na manhã de domingo, 24 de março, quando o celular começou a vibrar na mesa de cabeceira. Eram cerca de seis da manhã. Ainda sonada, ela viu na tela que era uma ligação do delegado Jaime Candido da Silva Júnior. Observou, ainda, que perdera várias ligações do delegado e, inclusive, do superintendente da PF, Leandro Almada. Seu coração acelerou. “Bom dia, o que houve, Jaime?”, disse, sem rodeios. O delegado respondeu que, assim como fazia em cada novidade do caso, estava telefonando para dar a notícia que todos esperavam havia seis anos: os mandantes do assassinato de Marielle e Anderson, finalmente, estavam sendo presos.

Assim que ouviu a notícia, Monica Benicio, hoje vereadora pelo Psol, perguntou se poderia saber os nomes ou se teria que esperar o noticiário da manhã. “Sim, posso dizer. Domingos Brazão, Chiquinho Brazão e Rivaldo”, informou o delegado. Surpresa, Benicio achou que não tinha escutado bem. “Rivaldo?” Sim, era ele mesmo, Rivaldo Barbosa, o ex-chefe da Polícia Civil, o homem que se dizia especialmente empenhado em resolver o atentado e que se apresentara como amigo de Marielle.

“Naquele momento, minha cabeça girou 360 graus”, lembra Benicio. “Rivaldo foi a primeira autoridade a receber a família. Marcelo Freixo nos apresentou como uma pessoa confiável.” Estava impressionada e saiu logo buscando na memória sinais de que havia, desde o início, algo errado com o delegado. “Me incomodava que Rivaldo tinha aquele constante sorriso no rosto mesmo num momento tão grave”, rememorou. Logo depois do assassinato, houve uma reunião que não saiu da cabeça de Benicio. “Quando ele disse que era amigo pessoal de Marielle, não aguentei. Pedi a palavra e respondi que os amigos pessoais de Marielle frequentavam a nossa casa e eu não me lembrava dele. Depois, quando ele se referiu a Marielle como uma mulata bonita, lembrei a ele que eu era a viúva e perguntei se ele faria o mesmo comentário se eu fosse homem.”

Horas antes, em pleno sábado, o delegado Guilhermo Catramby, que coordenava a força-tarefa da PF, chamou às pressas sua equipe de nove agentes à sede da corporação, na Praça Mauá. Todos entraram tensos na sala de briefing, com a certeza de que algo importante estava por vir. Logo entenderam: foram recebidos com um sonoro “parabéns” pelo superintendente Leandro Almada e outros chefes. O desfecho do assassinato de Marielle e Anderson estava a poucas horas de ser anunciado. A equipe, então, recebeu uma homenagem pelo bom trabalho: seus parentes haviam gravado vídeos elogiando o resultado da investigação – e dizendo que as longas horas de trabalho longe do convívio familiar tinham valido a pena. Alguns se emocionaram. Só depois disso, foi dada a ordem para que os agentes buscassem no aeroporto os reforços que estavam chegando de Brasília, São Paulo e Minas Gerais. Ninguém dormiu.

Enquanto o delegado Jaime Candido dava a notícia para Benicio, os agentes da Polícia Federal estavam na rua. Por volta das 6 horas, deram voz de prisão a Domingos Brazão, o conselheiro do TCE, que estava em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. O deputado federal Chiquinho Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa  foram presos em seus apartamentos, também na Barra. Os três foram levados para o prédio da Superintendência da pf e, de lá, voaram para Brasília a bordo de uma aeronave da polícia. Na capital federal, os Brazão desembarcaram do avião algemados. O delegado, por falha dos funcionários do Departamento Penitenciário Nacional, estava com as mãos livres – e só foi algemado dentro do veículo que levou o trio até o presídio da Papuda. Depois de três dias na Papuda, cada um deles foi transferido para uma penitenciária federal diferente.

Como o ministro Raul Araújo, do STJ, havia transferido o caso para o STF, a ordem de prisão foi assinada pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito. Fora outra surpresa para a Polícia Federal no âmbito jurídico. Como o deputado federal Chiquinho Brazão cumpria mandato de vereador no Rio na época do atentado, os agentes entendiam que ele não tinha direito ao foro privilegiado no STF. Mas se tranquilizaram quando souberam que Alexandre de Moraes fora o sorteado para cuidar do caso. Confiavam que o ministro, como de praxe, seria rigoroso em suas decisões.

Em entrevista coletiva realizada em Brasília no dia das prisões, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, deu por encerrada a investigação. Mas restam muitas indagações, a começar pelo destino que será dado ao material apreendido nas operações de busca nos endereços do delegado Giniton Lages, ex-titular da Delegacia de Homicídios, e do inspetor da Polícia Civil, Marco Antônio de Barros Pinto, o Marquinho. Os dois são suspeitos de ajudar a fazer do inquérito policial uma farsa. Continuam em liberdade, mas agora com tornozeleira eletrônica.

Outra indagação diz respeito ao conteúdo integral da delação de Ronnie Lessa, que continua inédito. Apenas alguns trechos foram divulgados até agora. Ouvi fontes que me garantiram que o pistoleiro falou de outros crimes – homicídios, inclusive – que foram mantidos na impunidade em razão da blindagem cevada pela propina do crime organizado na Delegacia de Homicídios. E como se comportará a polícia de Cláudio Castro, o governador que, até poucos dias, considerava o caso um amontoado de “fofocas jurídicas e políticas”?

A divulgação do relatório da Polícia Federal, naquele chuvoso domingo carioca, fez muita gente afundar no sofá, com o celular na mão. O texto de 479 páginas revelou um desenho assustador: o crime não envolve um único bandido convencional. São todos agentes públicos: um conselheiro de tribunal, um deputado federal, um chefe de polícia, delegados, ex-policiais militares. À luz dessa realidade, o jornalista Elio Gaspari, em sua coluna publicada nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, escreveu: “Desvendada a trama do assassinato de Marielle Franco, resulta que nela não havia um só bandido desorganizado, daqueles que assaltam, roubam casas ou celulares.” E, referindo-se às autoridades presas, completou: “Essa casta não rouba carros, alguns usam veículos oficiais.”

A imprensa deu ampla cobertura às prisões, mas as críticas não demoraram a aparecer. A principal delas é o fato de que a Polícia Federal se baseou na delação de Ronnie Lessa, mas não trouxe provas – de acordo com o que foi divulgado até agora – capazes de corroborar o que o pistoleiro denunciou. Não há provas dos três encontros que ele diz ter mantido com os irmãos Brazão – no primeiro dos quais, ocorrido em setembro de 2017, o crime já foi encomendado, segundo Lessa. A intermediação dos encontros, ainda segundo Lessa, foi feita por Macalé, o miliciano assassinado em 2021. Também não há provas concretas da ligação entre os Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa, além da afirmação do pistoleiro de que ouviu Domingos Brazão dizendo que “o Rivaldo é nosso” e que ajudou a preparar o crime. Todos eles – os Brazão e o delegado – negam qualquer envolvimento no caso.

Desde 2019, a lei diz que denúncias apresentadas durante uma delação não se bastam. Precisam ser acompanhadas por provas que as comprovem. Por isso, os investigadores já estavam preparados para as críticas. Sabiam que era impossível encontrar imagens dos supostos encontros entre Lessa e os irmãos Brazão, por exemplo. “Vai ser a palavra de um contra a palavra de outro”, me disse uma autoridade envolvida no caso. O delegado Catramby, conhecido pela discrição e pela economia verbal, certa vez, quando a investigação começava a decolar, comentou com amigos: “Não vamos entregar exatamente a resposta que gostaríamos. Já passou muito tempo, as dificuldades são grandes. Mas vamos entregar uma resposta à sociedade.”

A arte imita a vida ou é o contrário?

Zona de Interesse: para os vizinhos de Auschwitz, foi como se nada estivesse acontecendo

Crítica de Wison Ferreira sobre The Zone of Interest (Oscar de melhor filme internacional em 2024), reproduz o estado da brutal indiferença que o cotidiano provoca com o cancelamento sistemático da vida. Olhando de perto, o diretor do fime, Jonathan Glazer, tem em Tarcísio de Freitas e no seu secretario Guilherme Derrite fortes concorrentes ao Prêmio Hannah Arendt(*). Clique aqui para ler a postagem expandida

Link para o acesso à postagem orginal do site de Wilson Ferreira: https://cinegnose.blogspot.com/2024/03/zona-de-interesse-quando-banalidade-do.html 

Oscar de Melhor Filme Internacional, “Zona de Interesse” (The Zone of Interest, 2023) se diferencia de todas outras produções premiadas sobre o nazismo e o Holocausto como A Vida é Bela, O Pianista, O Filho de Saul etc. Vai além da época que pretende retratar. E a fala do diretor Jonathan Glazer na cerimônia do Oscar foi totalmente coerente com o seu filme: “Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer ‘olhe o que fizeram na época’, mas para olhar o que fazemos agora”, criticando o genocídio de Israel em Gaza. A família de um oficial da SS vive uma vida bucólica e pastoral, indiferentes ao que ocorre do outro lado do muro da propriedade: o genocídio de Auschwitz. A poucos metros do Holocausto, acompanhamos uma típica vida de classe média de comerciais de margarina na TV. Glazer tem um conceito radical: e se a banalidade do mal se transformou em uma “banalidade do bem” na sociedade de consumo pós-guerra?

Premiado no Oscar 2024 (Melhor Filme Internacional e Som), Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023) para muitos é mais um filme sobre o capítulo horrível do Holocausto na História, ao lado de uma lista de produções como Noite e Nevoeiro, A Lista de Schindler, O Pianista, Cidade Ocupada etc.

Outro apontam como grande diferencial do filme de Jonathan Glazer, vagamente baseado no livro de 2014 de Marin Amis, a perfeita figuração cinemática do conceito de banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt – a recusa (ou a indiferença) do caráter humano em assumir por iniciativa própria as consequências dos seus próprios atos.

A família de um oficial da SS mora confortavelmente em um casarão com sua esposa e filhos, cercado por um jardim espaçoso, uma piscina ao lado de um escorregador de água, colmeias, estufas e grandes hortas de legumes e canteiros de flores meticulosamente bem cuidados – vivendo um cotidiano idílico de piqueniques às margens de um rio próximo e encontros sociais regados a licor. 

Tudo seria normal, não fosse que o muro coberto por arame farpado que fica atrás do casarão separa a propriedade (a “zona de interesse”), nada mais nada menos, do mais sinistramente famoso campo de concentração da História, Auschwitz. Com suas chaminés fumegando 24 horas por dia a morte em escala industrial de judeus nos crematórios. Ouve-se à distância gritos, tiros, marchas de soldados e a intensa movimentação de caminhões trazendo prisioneiros. Mas nada que abale o cotidiano bucólico da “zona de interesse”.

Mas há algo mais. Algo que incomodou este humilde blogueiro. Até visualizarmos esse muro cinzento de concreto e arame farpado, além do espectador tomar consciência do terror que cerca a vizinhança, parece que estamos acompanhando uma típica vida de uma família de classe média suburbana, isto é, desses condomínios fechados vendidos por comercial de TV de margarina. Aquilo que ficou conhecido como “o sonho americano” ou o “american way of life”, irradiados para o planeta pela sociedade de consumo dos EUA.


É notório como no pós-guerra os ilustradores publicitários americanos emularam o estilo das ilustrações dos cartazes publicitários nazistas – principalmente aqueles que figuram rostos sorridentes de arianos perfeitos. 

Mais do que isso, tentaram reproduzir no sonho americano urbano o estilo de vida idílico pastoral do imaginário nazista da raça pura retornando aos valores da terra, família e sangue. Basta uma rápida comparação semiótica da propaganda política e da publicidade para percebermos isso - veja imagens acima.

Em Zona de Interesse, o oficial, comandante do campo de Auschwitz Rudolf Höss (Christian Friedel) e chefe daquela família acredita que está cumprindo uma sagrada missão de Hitler: a colonização ariana do Leste Europeu – o campo de Auschwitz (hoje transformado em museu) fica na Polônia.

 Esse viés de Jonathan Glazer (que vai muito além do livro de Amis) confere uma complexidade maior ao conceito de banalidade do mal: e se o “sonho americano” (casa, jardim, piscina, carro na garagem e cercado de gadgets tecnológicos comprados em um shopping mall) for a própria extensão da banalidade do mal no pós-guerra?  A vida perfeita dentro de bunkers suburbanos (condomínios e shopping centers) que nos separam da violência, desigualdade e a miséria social no qual todo o luxo consumista de sustenta. Mais do que isso, evitando que olhemos diretamente para o Mal.

A proximidade desse paraíso pastoral com o campo de Auschwitz (cujos vários edifícios pontilham a vista) é um choque baseado em fatos históricos.

A verdadeira família Höss, assim como suas contrapartes fictícias, vivia no complexo de Auschwitz, uma faixa de cerca de 15 milhas quadradas de tamanho que abrigava diferentes campos em uma área chamada “Interessengebiet” ou “zona de interesse”. 


A casa estava escondida perto de um canto do campo mais antigo, Auschwitz I, que tinha quartéis de prisioneiros, forca, uma câmara de gás e crematório. Depois que Höss foi preso em 1946, ele escreveu que “minha família estava bem em Auschwitz, todos os desejos que minha esposa ou meus filhos tinham foram realizados. As crianças corriam livres e minha esposa tinha seu paraíso de flores”. 

Ele foi enforcado em Auschwitz em 1947, não muito longe de onde a família morava. 

O Filme

O período do tempo em que se passa aa adaptação de Glazer é vago, embora pareça ocorrer principalmente em 1943 antes que o verdadeiro Höss fosse transferido para outro acampamento. 

O filme abre em uma tela preta acompanhada por uma música lúgubre, uma longa abertura que dá lugar a uma cena pacífica em um rio com um grupo de pessoas em trajes de banho. Eventualmente, eles se vestem e vão embora.

Grande parte do resto do filme acontece na casa da família Höss, onde as câmeras cuidadosamente emolduradas e muitas vezes fixas de Glazer, gravam as crianças brincando enquanto os pais conversam e às vezes discutem. Você vê Rudolf indo trabalhar no acampamento enquanto a esposa Hedwig Höss (Sandra Hüller) supervisiona a casa. 

A realidade de horror que cerca esse paraíso doméstico aparece pontualmente. Como quando observamos um dos prisioneiros, que faz as vezes de empregado da família, silenciosamente adubando, com cinzas humanas dos crematórios, os jardins floridos. 

Logo somos apresentados à casa dos sonhos deles, uma alta estrutura de concreto cercada por espaços luxuosos. Do outro do muro farpado está o próprio acampamento de prisioneiros. Com exceção de uma única cena - um ângulo contra-plongée de Rudolf, emoldurado por fumaça preta dos fornos ao fundo - nunca vemos realmente dentro do acampamento. 

Em vez disso, os espectadores são convidados a visualizar auditivamente o horror na vizinhança – não por menos o filme ganhou o Oscar técnico de Melhor Som.


A família Höss vive ao lado do genocídio em curso, mas nunca comenta os gritos horríveis ou o cheiro da morte nas proximidades. Assim, há uma frieza que se infiltra na falta de sentimentalismo do filme. Eles criam seus filhos sob o pretexto de normalidade - Rudolf conta histórias de fadas aos seus filhos antes de dormir, os leva a passeios a cavalo e participa de outras atividades pastorais. 

Toda essa frieza e indiferença de Rudolf é premiada: ele é promovido a comandante geral de todos os campos de extermínio e será transferido de Auschwitz para Oranienburg. Surge uma tensão doméstica: a esposa Hedwig quer permanecer na “casa dos sonhos” com seus filhos. Rudolf aceita ir sozinho. Afinal, sua família está realizando o sonho programático de Hitler: espalhar a raça ariana pelo Leste europeu.

Uma banalidade do bem? – Alerta de Spoilers à frente

O final do filme é irônico. O que fez reforçar a percepção inicial desse Cinegnose sobre a analogia entre o estilo de vida ariano e o sonho americano.

Rudolf recebe a notícia de que ele será pessoalmente responsável pela maior operação de transporte de prisioneiros da guerra: milhares de judeus que serão transferidos por trem da Hungria para os fornos de Auschwitz. 

A cena é cortada para o museu atual em que se transformou Auschwitz. Glazer filma funcionários limpando com vassouras e aspiradores de pó o interior de uma antiga câmara de gás e nos corredores onde estão em exibição pilhas de sapatos, muletas e outros dispositivos médicos e uniformes dos presos. 


Tudo muito asséptico e preciso, para tornar o lugar apresentável para a visita dos turistas. Glazer parece sugerir que existe tal coisa como uma espécie de “banalidade do bem”, que também torna o Mal silencioso e abstrato. 

Auschwitz se tornando parte de um roteiro turístico mórbido, em que transforma uma tragédia histórica em mais uma atração em um roteiro de consumo. Algo parecido como as violentas favelas do Rio (como a da Rocinha, p. ex.), transformando o caos urbano brasileiro em atração turística para gringos – algo como fazer um passeio turístico pelas selvagens savanas africanas.

Esse final irônico proposto por Glazer parece reforçar o conceito inicial do filme: a extensão da banalidade do mal através da sociedade de consumo do pós-guerra – a bunkerização urbana dos condomínios fechados, shopping centers etc. A promessa para poucos de uma vida idílica, familiar, entre os iguais, perto da natureza e longe do caos urbano resultante da desigualdade e exploração que sustentam esse estilo de vida elitizado.

  

Ficha Técnica 

Título: Zona de Interesse

Diretor:  Jonathan Glazer

Roteiro:  Jonathan Glazer e Martin Amis

Elenco: Christian Fiedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus

Produção: A24, Access Entertainment, Film4

Distribuição: A24

Ano: 2023

País: Reino Unido, Polônia


(*) Prêmio Hannah Arendt é uma invenção minha e uma referência àquela que considero uma de suas principais obras: Eichmann em Jerusalém (ou a Banalidade do Mal)

No genocídio, uma civilização em colapso

Por que as bombas continuam caindo e o Ocidente tolera a mão macabra de Tel-Aviv? Toda a sua moralidade é uma mentira? Ou ele é Israel, intoxicado de supremacismo e convencido de que os não-brancos nada valem, quando frágeis?

Chris Hedges, Outras Palavras (expandir)

Não há surpresas em Gaza. Cada ato horripilante do genocídio de Israel foi anunciado antecipadamente. Tem sido assim há décadas. A expulsão dos palestinos de suas terras é o coração pulsante do projeto colonial de Israel. Esta espoliação teve momentos históricos dramáticos — 1948 e 1967 — quando grandes partes da Palestina histórica foram tomadas e centenas de milhares de palestinos sofreram “limpeza étnica”. O processo também ocorreu de forma crônica — o roubo em câmera lenta de terras e a limpeza étnica constante na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental.

A incursão em 7 de outubro em Israel, feita pelo Hamas e outros grupos de resistência, que deixou 1.154 israelenses, turistas e trabalhadores migrantes mortos e cerca de 240 reféns, deu a Israel o pretexto para o que há muito anseia — o apagamento total dos palestinos.

Israel derrubou 77% das instalações de saúde em Gaza, 68% da infraestrutura de telecomunicações, quase todos os prédios municipais e governamentais, centros comerciais, industriais e agrícolas, quase metade de todas as estradas, mais de 60% das 439.000 casas de Gaza, 68% dos edifícios residenciais — o bombardeio da torre Al-Taj na Cidade de Gaza em 25 de outubro matou 101 pessoas, incluindo 44 crianças e 37 mulheres, e feriu centenas — e pulverizou campos de refugiados. O ataque ao campo de refugiados de Jabalia em 25 de outubro matou pelo menos 126 civis, incluindo 69 crianças, e feriu 280. Israel danificou ou destruiu as universidades de Gaza, que agora estão todas fechadas, e 60% de outras instalações educacionais, incluindo 13 bibliotecas. Também destruiu pelo menos 195 locais de patrimônio, incluindo 208 mesquitas, igrejas e os Arquivos Centrais de Gaza, que continham 150 anos de registros e documentos históricos.

Os aviões de guerra, mísseis, drones, tanques, projéteis de artilharia e canhões navais de Israel pulverizam diariamente Gaza — que tem apenas 32 quilômetros de comprimento e oito de largura — em uma campanha de terra arrasada não vista desde a guerra no Vietnã. Ele lançou 25.000 toneladas de explosivos — equivalente a duas bombas nucleares — em Gaza, com muitos alvos selecionados por Inteligência Artificial. Lança munições não guiadas (“bombas burras”) e bombas de 1 tonelada, “perfuradoras de bunker” em campos de refugiados e centros urbanos densamente povoados, bem como nas chamadas “zonas seguras” — 42% dos palestinos mortos estavam nessas “zonas seguras” onde foram instruídos por Israel a fugir. Mais de 1,7 milhão de palestinos foram deslocados de suas casas, obrigados a buscar refúgio em abrigos superlotados da UNRWA, corredores e pátios de hospitais, escolas, tendas ou ao ar livre no sul de Gaza, muitas vezes vivendo ao lado de poças fétidas de esgoto bruto.

Israel matou pelo menos 32.705 palestinos em Gaza, incluindo 13.000 crianças e 9.000 mulheres. Isso significa que Israel está matando até 187 pessoas por dia, incluindo 75 crianças. Matou 136 jornalistas, muitos – se não a maioria deles – deliberadamente alvejados. Matou 340 médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde — 4% do pessoal de saúde de Gaza. Esses números não refletem o quadro real de mortes, uma vez que apenas são contdos os mortos registrados em necrotérios e hospitais, a maioria dos quais não funcionam mais. O número de mortos, quando se incluem os desaparecidos, é bem superior a 40.000.

Os médicos são obrigados a amputar membros sem anestesia. As pessoas com condições médicas graves — câncer, diabetes, doenças cardíacas, renais — morreram por falta de tratamento ou morrerão em breve. Mais de cem mulheres dão à luz todos os dias, com pouca ou nenhuma assistência médica. Os bortos espontâneos aumentaram em 300%. Mais de 90% dos palestinos em Gaza sofrem de insegurança alimentar grave, com pessoas comendo ração animal e grama. Crianças estão morrendo de fome. Escritores, acadêmicos, cientistas palestinos e seus familiares foram rastreados e assassinados. Mais de 75.000 palestinos foram feridos, muitos dos quais ficarão aleijados para o resto da vida.

“70% das mortes registradas foram de mulheres e crianças,” escreve Francesca Albanese, a Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos no Território Palestino ocupado desde 1967, em seu relatório emitido em 25 de março. “Israel não foi capaz de provar que os restantes 30%, ou seja, os homens adultos, eram combatentes ativos do Hamas — uma condição necessária para que fossem alvejados legalmente. No início de dezembro, os assessores de segurança de Israel afirmaram ter matado “7.000 terroristas” em uma fase da campanha em que menos de 5.000 homens adultos no total haviam sido identificados entre as vítimas, implicando assim que todos os homens adultos mortos eram “terroristas”.

Israel usa truques linguísticos para negar a qualquer pessoa em Gaza o status de civil e a qualquer edifício — incluindo mesquitas, hospitais e escolas — status protegido. Todos os palestinos são rotulados como responsáveis pelo ataque em 7 de outubro ou descartados como escudos humanos para o Hamas. Todas as estruturas são consideradas alvos legítimos por Israel porque são supostamente centros de comando do Hamas ou alegadamente abrigam combatentes do Hamas.

Essas acusações, escreve Albanese, são um “pretexto” usado para justificar “o assassinato de civis sob o manto de uma legalidade aparente, cuja abrangência total expõe intenção genocida”.

Em escala, não vimos um ataque aos palestinos dessa magnitude, mas todas essas medidas — o assassinato de civis, o desapossamento de terras, detenção arbitrária, tortura, desaparecimentos, restrições impostas a cidades e vilarejos palestinos, demolições de casas, revogação de permissões de residência, deportação, destruição da infraestrutura que mantém a sociedade civil, ocupação militar, linguagem desumanizadora, roubo de recursos naturais, especialmente aquíferos — têm há muito tempo definido a campanha de Israel para erradicar os palestinos.

A ocupação e o genocídio não seriam possíveis sem os Estados Unidos, que dão a Israel US$ 3,8 bilhões em assistência militar anualmente e agora estão enviando outros US$ 2,5 bilhões em bombas, incluindo 1.800 bombas de 1 tonelada MK84, 500 bombas de 250 kg. MK82 e aviões de combate. Isso, também, é nosso genocídio.

O genocídio em Gaza é a culminação de um processo. Não é um ato. O genocídio é o desenlace previsível do projeto colonial de assentamento de Israel. Está codificado no DNA do Estado de apartheid de Israel. É onde Israel queria acabar.

Os líderes sionistas são francos sobre seus objetivos.

O ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, após 7 de outubro, anunciou que Gaza não receberia “nenhuma eletricidade, nenhum alimento, nenhuma água, nenhum combustível”. O ministro das relações exteriores de Israel, Israel Katz, disse: “Ajuda humanitária para Gaza? Nenhum interruptor elétrico será ligado, nenhuma hidrante de água será aberta.” Avi Dichter, o ministro da Agricultura, referiu-se ao assalto militar de Israel como “a Nakba de Gaza”, referindo-se à Nakba, ou “catástrofe”, que entre 1947 e 1949, expulsou 750.000 palestinos de suas terras e viu milhares massacrados por milícias sionistas. O membro do Likud da Knesset israelense Revital Gottlieb postou em sua rede social: “Derrubar prédios!! Bombardear sem distinção!!… Arrasar Gaza. Sem misericórdia! Desta vez, não há espaço para misericórdia!” Para não ficar para trás, o ministro do patrimônio Amichai Eliyahu apoiou o uso de armas nucleares em Gaza como “uma das possibilidades”.

A mensagem da liderança israelense é inequívoca. Aniquilar os palestinos da mesma forma que aniquilamos os nativos americanos, os australianos aniquilaram os povos das Primeiras Nações, os alemães aniquilaram os herero na Namíbia, os turcos aniquilaram os armênios e os nazistas aniquilaram os judeus.

Os detalhes são diferentes. O processo é o mesmo.

Não podemos alegar ignorância. Sabemos o que aconteceu com os palestinos. Sabemos o que está acontecendo com os palestinos. Sabemos o que acontecerá com os palestinos.

Mas é mais fácil fingir. Fingir que Israel permitirá a entrada de ajuda humanitária. Fingir que haverá um cessar-fogo. Fingir que os palestinos voltarão para suas casas destruídas em Gaza. Fingir que Gaza será reconstruída. Fingir que a Autoridade Palestina administrará Gaza. Fingir que haverá uma solução de dois Estados. Fingir que não há genocídio.

O genocídio, que os EUA estão financiando e sustentando com envios de armas, diz algo não apenas sobre Israel, mas sobre nós, sobre a civilização ocidental, sobre quem somos como povo, de onde viemos e o que nos define. Diz que toda a nossa moralidade autoexaltada e respeito pelos direitos humanos é uma mentira. Diz que pessoas não brancas, especialmente quando são pobres e vulneráveis, não contam. Diz que suas esperanças, sonhos, dignidade e aspirações por liberdade não têm valor. Diz que garantiremos a dominação global por meio de violência racializada.

Essa mentira — que a civilização ocidental é baseada em “valores” como respeito pelos direitos humanos e pelo Estado de direito — é uma que os palestinos, e todos aqueles no Sul Global, bem como os povos originários americanos e os afro-americanos e latinos, conhecem há séculos. Mas, com o genocídio de Gaza transmitido ao vivo, essa mentira é impossível de sustentar.

Não interrompemos o genocídio de Israel porque somos Israel, infectados pelo supremacismo branco e intoxicados por nossa dominação da riqueza global e o poder de obliterar outros com nossas armas industriais. Lembre-se do colunista do The New York Times, Thomas Friedman, dizendo a Charlie Rose na véspera da guerra no Iraque que os soldados americanos deveriam ir de casa em casa de Basra a Bagdá e dizer aos iraquianos “chupem aqui”! Esse é o verdadeiro credo do império dos EUA.

O mundo fora das fortalezas industrializadas do Norte Global está ciente de que o destino dos palestinos é o destino deles. À medida que a mudança climática ameaça a sobrevivência, à medida que os recursos se tornam escassos, à medida que a migração se torna um imperativo para milhões, à medida que as colheitas agrícolas diminuem, à medida que as áreas costeiras são inundadas, à medida que as secas e incêndios florestais proliferam, à medida que os Estados fracassam, à medida que movimentos de resistência armada surgem para lutar contra seus opressores junto com seus representantes, o genocídio não será uma anomalia. Será a norma. Os vulneráveis e pobres da terra, aqueles que Frantz Fanon chamou de “os deserdados da terra”, serão os próximos palestinos.  

Chris Hedges

Chris Hedges, jornalista e professor, escreveu 11 livros, incluindo "Days of Destruction, Days of Revolt", em parceria com o cartunista Joe Sacco

Mídia adota discurso privatista e depreciativo sobre educação pública

Thaís Rodrigues Marin analisou mais de mil textos sobre ensino básico publicados em jornal paulistano

Adriana Vilar de Menezes (texto), Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti (fotos), Jornal da Unicamp, via Lidiane, do SinproSp (expandir

Ao analisar 1.197 artigos de opinião e 145 editoriais publicados pelo jornal Folha de S.Paulo entre 2005 e 2020, a pesquisadora Thais Rodrigues Marin se surpreendeu: encontrou nos textos uma postura reiterada de desqualificação do sistema brasileiro de educação pública, em ataques que atingiram também os professores dessa rede. A pesquisadora já esperava, por conta do recorte que fez para realizar seu doutorado, na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, deparar-se com essa insistente narrativa privatista. Marin, contudo, não previu o tom dos textos, um dos elementos a confirmar sua conclusão sobre o papel da grande imprensa brasileira na disseminação desse discurso em relação à educação básica no país.

“Embora já soubesse que encontraria falas dizendo que políticas educacionais das quais participam atores não estatais são melhores ou mais eficientes, porque essa já era a hipótese da minha pesquisa, eu me surpreendi com o modo como isso apareceu nos textos. São recorrentes as expressões exageradamente negativas, catastróficas e mesmo grosseiras para caracterizar a educação pública, tais como ‘tragédia’, ‘desastre’, ‘fracasso’ e ‘mediocridade’. Fiquei impressionada, pois não esperava encontrar esse tipo de registro em um dos veículos mais importantes do país, principalmente nos editoriais, porque esses deveriam abordar o debate político de modo mais qualificado e menos espetacularizado.”

Orientada pela professora Theresa Maria de Freitas Adrião, que há mais de 20 anos estuda a privatização da educação e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (Greppe), Marin analisou um volume expressivo de artigos e editoriais publicados ao longo de 16 anos. Seu objetivo: localizar o e dar materialidade ao que a tese qualifica como “discurso da privatização da educação básica”, que adquiriu caráter de senso comum e sobre o qual, até então não havia uma pesquisa aprofundada no país.

Seis narrativas que se repetem

Marin utilizou uma metodologia de análise de conteúdo categorial, com a qual definiu temáticas para classificar os textos, identificando seis diferentes formulações discursivas que se repetiram ao longo do período. Cada categoria corresponde a um tipo de narrativa, direta ou indiretamente, favorável à privatização da educação. A primeira delas – “a mais expressiva”, nas palavras da pesquisadora – é a da desqualificação da educação pública de modo geral no Brasil e a da consequente necessidade de reformá-la. “Esse ideário de crise da má qualidade respalda as iniciativas de reforma da educação, ou reforma empresarial da educação, que temos hoje.”

A pesquisadora Thais Rodrigues Marin: localizando o “discurso da privatização da educação básica”

A segunda narrativa, a do financiamento, defende não faltar recursos para a educação básica, mas faltar eficiência na gestão do Estado. A terceira, a de desqualificação dos professores da escola pública, descreve-os como acomodados, malformados e corporativistas. “Esse discurso coloca o professor como inimigo e nega sua condição de trabalhador.”

A avaliação educacional relacionada a mecanismos de vigilância do trabalho do professor e de mensuração em larga escala configura a quarta narrativa identificada na pesquisa. “Isso é reflexo do modo de funcionamento corporativo e meritocrático, de mensurar o trabalho com métricas, para premiar ou punir. A qualidade da educação passa a significar posições em rankings, e o professor é responsabilizado por esses resultados, desconsiderando-se problemas estruturais que também afetam o processo educativo”, explica Marin.

A narrativa das parcerias educacionais, recorrente nos artigos, surge como a quinta identificada pela pesquisadora. “Isso tem relação direta com a privatização e fica até mais fácil de entender, porque coloca os atores não estatais como supostamente mais capazes para oferecer soluções e diz como eles são importantes para que a política educacional seja de melhor qualidade.”

A sexta e última narrativa descrita pela pesquisadora trata das finalidades educacionais. “Essa narrativa resume-se a colocar na conta da escola a superação das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, defendendo que a suposta má qualidade da educação seria a causa da perpetuação de desigualdades e do arrefecimento da economia. Isso é a teoria do capital humano alinhada ao discurso neoliberal”, afirma Marin.

Endossar, legitimar e naturalizar

As narrativas ajudam a endossar, legitimar e consolidar uma opinião pública favorável aos processos e práticas privatistas, avalia a autora da tese. “Com a repetição, essas narrativas vão se tornando hegemônicas, vão se naturalizando, como se fosse algo dado. Essa é a grande história que se conta sobre a educação básica pública brasileira e que ganha esse caráter de verdade, de prova concreta. Em editoriais, que seriam a voz do próprio jornal, ou ao dar espaço para autores de artigos, a mídia não está só relatando a história. Ela transforma-se em um ator que participa dessa história.”

Para Marin, a maior contribuição da sua pesquisa foi conseguir localizar o discurso privatista nessas narrativas divulgadas pelos meios de comunicação “para poder desconstruir essa ideia e mostrar que esse é um discurso ideológico, que isso não é uma verdade incontestável”. Na disputa política em torno do assunto, a pesquisa realizada na Unicamp ajuda a levantar dados concretos, acredita a pesquisadora. “Porque a disputa política é também discursiva, sobre os modos de se pensar a realidade. A gente não pode esquecer esse caráter ideológico. A linguagem não é neutra nunca, menos ainda ao pautar a agenda política.”

Em sua conclusão, Marin defende que essa disputa não se trava apenas no debate sobre a alocação de recursos ou instrumentos materiais, mas também no embate acerca do conceito de educação pública, em torno de determinar aquilo que é ou não válido no debate educacional.

“A tese é uma importante e inovadora fonte de informação para o entendimento de um fenômeno hoje global. Ela desmistifica o modus operandi de seus defensores: a generalização de narrativas em defesa da privatização da educação que se apoiam em aparentes ‘evidências’”, diz Adrião.

Heranças históricas

A educação escolar no Brasil já nasceu privatizada, e isso por intermédio da Igreja Católica, especificamente a Companhia de Jesus. “Sempre houve um ator não estatal na política educacional brasileira”, pontua Marin.

Os processos de defesa da chamada privatização da educação, no entanto, começaram na década de 1990. Segundo a pesquisadora, o conceito de privatização é um fenômeno contemporâneo no qual se faz a transferência de recursos ou de responsabilidades do Estado para atores não estatais, instituindo políticas moldadas segundo os interesses desses atores.

“Desde os anos 90, o Estado brasileiro vem sofrendo um processo de reestruturação e enxugamento e vem se abrindo a novos atores, que passam a participar também da política educacional”, descreve.

Segundo Marin, sua orientadora identifica entre esses novos atores as corporações transnacionais, os fundos de investimento de risco, a filantropia de risco (institutos, fundações que “são como braços sociais de empresas ou de famílias, que hoje no Brasil são os mais atuantes”) e os grupos de advocacy, redes de empresários e entidades do terceiro setor formadas com o objetivo de influenciar os rumos da política educacional. Marin cita como exemplo dessas entidades a Parceiros da Educação e a Todos Pela Educação.

“Há fundações e institutos, por exemplo, com muito aporte financeiro para atuar na educação. Em algumas situações, com uma capacidade maior do que a de governos locais”, diz a pesquisadora. “No contexto global, a filantropia de risco entende a política, nesse caso a educacional, como um investimento social. Eles querem obter resultados mensuráveis e algum retorno institucional, seja para a imagem da entidade, seja, no limite, na forma de lucro.”

GRUPO MAPEIA ATORES PRIVADOS

“No âmbito da produção científica, a contraposição às narrativas privatistas da educação pode e deve ser feita por meio da realização de pesquisas com densidade teórica e empírica, como a de Thaís Marin”, afirma Adrião. A pesquisa indicou haver um discurso hegemônico sobre a privatização, diz a professora. E esse é o tema central dos trabalhos realizados pelo Greppe, grupo que inclui docentes, pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação e educadores de três universidades públicas: Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A professora Theresa Maria de Freitas Adrião, coordenadora do Greppe: por um “jornalismo mais informado e menos ideológico”

O Greppe dispõe de levantamentos e mapeamentos de todo o Brasil sobre as políticas estaduais de educação e a ingerência de atores privados nessas políticas, especialmente a partir de 2005, depois da Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 – 2001. A partir dessa lei, ficou estabelecido um limite de até 60% dos gastos dos governos estaduais com as folhas salariais, o que comprometeu políticas para a educação pública, favoreceu a transferência de atividades estatais para o setor privado e limitou os investimentos na valorização de profissionais da educação. As pesquisas do Greppe indicam que organizações privadas responsáveis por disseminar o discurso de desqualificação da escola pública influenciam as políticas educacionais das redes estaduais e municipais de ensino, dificultando a construção de uma política educacional focada no ensino público de qualidade.

Segundo a análise de Adrião, nos últimos anos houve um acirramento do reacionarismo. “O que é estatal e tem caráter universal, ou seja, o que é democrático e não discriminatório, como é a concepção de educação pública no Brasil, passou a ser desqualificado.” A docente também acredita ser importante que as universidades e as instituições científicas divulguem suas pesquisas e disputem pautas junto aos meios de comunicação de massa. “É preciso que haja uma ampliação da presença de pesquisadores como fontes para um jornalismo mais informado e menos ideológico”, defende a professora.

Além da formação de pesquisadores, o Greppe também atua junto a entidades da sociedade civil vinculadas à defesa da educação pública e à difusão do conhecimento científico construído com base em pesquisas. Em 2019, o grupo criou a Rede Latino-Americana e Africana de Pesquisadores em Privatização da Educação (Relaappe), entidade que hoje coordena.

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O risco é que a IA perpetue preconceitos de gênero

Entrevista com Eleonra Lamm, IHU (expandir)

Na foto, Eleonara Lamm

A Inteligência Artificial não implica apenas grandes avanços. Ela implica também o aprofundamento das desigualdades e dos preconceitos de gênero e o risco de que, no futuro, uma grande proporção de mulheres fique fora do mercado de trabalho. É o que alerta a advogada Eleonora Lamm, doutora em Bioética e Direito, responsável pelo setor de ciências sociais e humanas da UNESCO para a América Latina e o Caribe. “As Nações Unidas preveem que as mulheres perderão 5 empregos a cada emprego conquistado através da Indústria 4.0, em comparação com a perda de 3 a cada emprego conquistado entre os homens”, alerta Lamm. E jogue fora mais dados: um estudo de 133 sistemas de Inteligência Artificial implantados em diferentes setores econômicos entre 1988 e 2021 revelou que 44% apresentavam preconceitos de gênero e 26%, tanto preconceitos de gênero como raciais.

“A agência de aplicação da lei da IA ​​da União Europeia prevê que até 90% do conteúdo da internet poderá ser criado ou editado pela IA até 2026, o que significa que o impacto do preconceito na IA não crescerá mais”, salienta. Ao mesmo tempo, a presença de mulheres na área da IA ​​é minoritária. Globalmente, apenas 22% dos profissionais de IA são mulheres, contrastando ainda mais com os quase 14% de autoras na área de IA e os 18% que ocupam cargos de palestrantes em conferências de IA. Esse rumo pode ser mudado ou já é inevitável? 

A desigualdade de gênero é replicada no mundo da IA. Os dados são convincentes. O relatório do Instituto Alan Turing, “Onde estão as mulheres?”, destaca que apenas 10 a 15% dos investigadores de aprendizagem automática nas principais empresas tecnológicas são mulheres. Este desequilíbrio estende-se ao mercado de trabalho, onde os recrutadores de empresas tecnológicas no Vale do Silício relatam que o conjunto de candidatos a cargos técnicos em IA e ciência de dados inclui frequentemente menos de 1% de mulheres, diz Lamm, especialista em ética e IA.

A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada por Página|12 em 03-04-2024.


Eis a entrevista.

Dado que a IA já desempenha um papel crucial em diferentes aspectos da nossa vida quotidiana, com uma influência que se espera que aumente no futuro, é importante analisar mais detalhadamente a forma como os preconceitos na IA podem influenciar e exacerbar as desigualdades de gênero. Que exemplos específicos você pode mencionar?

A principal preocupação é o risco de a IA poder perpetuar ou mesmo amplificar os preconceitos e as disparidades de gênero, prejudicando o progresso na igualdade de gênero. Os sistemas de IA aprendem com dados históricos, que podem refletir e perpetuar preconceitos sociais existentes. Por exemplo, se os dados históricos de contratação mostram preconceitos de gênero nos processos de seleção, uma ferramenta de recrutamento alimentada por IA e treinada com base nestes dados pode perpetuar esses preconceitos, recomendando candidatos com base em critérios tendenciosos.

Isso já aconteceu, por exemplo, na Amazon. Os algoritmos podem codificar e amplificar inadvertidamente preconceitos presentes nos dados usados ​​para treiná-los ou nas suposições conscientes ou inconscientes dos desenvolvedores. Por exemplo, um estudo descobriu que modelos linguísticos alimentados por IA treinados em grandes conjuntos de dados da internet podem mostrar preconceitos de gênero na sua geração linguística, muitas vezes associando certas profissões ou funções a gêneros específicos. A sub-representação das mulheres e de outros grupos marginalizados na indústria tecnológica pode levar a preconceitos no desenvolvimento da IA.

As equipes que não têm diversidade podem ignorar ou não abordar adequadamente as preocupações de gênero nos sistemas de IA, perpetuando inadvertidamente preconceitos. Uma plataforma de publicidade alimentada por IA pode mostrar desproporcionalmente anúncios de emprego para cargos com altos salários a utilizadores do sexo masculino com base em tendências históricas – ou linguagem codificada masculina – perpetuando assim o estereótipo de que certas profissões são específicas de gênero. Da mesma forma, robôs de IA e assistentes de voz costumam ser lançados com vozes femininas por padrão, reforçando o preconceito de que o serviço é um recurso feminino.

Que fatores influenciam a reprodução destes preconceitos de gênero?

O preconceito de sexo e gênero é encontrado nos dados com os quais o algoritmo é concebido ou com os quais o programa aprende. A questão é como evitar que este preconceito apareça e, se aparecer, como eliminá-lo. As soluções possíveis advêm essencialmente da própria tecnologia, mas mais profundamente das mudanças culturais que se tornam fundamentais e que inevitavelmente têm impacto na tecnologia.

Agora, a partir da ética da IA ​​também pode e deve contribuir. Por fim, na medida em que o desenho e a aplicação de um sistema baseado em IA ocorrem dentro de um sistema jurídico, o sistema jurídico pode estabelecer medidas aplicáveis ​​ao longo da vida do sistema, bem como adotar uma série de consequências no caso da existência de situações discriminatórias derivadas da existência de preconceito de sexo e gênero devido aos dados com os quais o sistema de IA é tratado.

Como poderiam ser evitados ou eliminados?

A resposta a estes riscos exige medidas proativas, como conjuntos de dados diversos e representativos, transparência e responsabilização algorítmica, equipes diversificadas no desenvolvimento da IA ​​e monitorização e avaliação contínuas dos sistemas de IA quanto a preconceitos. Estes aspectos estão incluídos no capítulo de gênero da Recomendação da UNESCO sobre a Ética da IA, lançada em novembro de 2021, juntamente com um esboço claro de valores e princípios que acompanham as diferentes áreas de ação política. O objetivo desta recomendação é fornecer orientação aos países para responderem aos impactos atuais e potenciais, benéficos e prejudiciais, das diversas aplicações das tecnologias de IA.

Quais são os riscos?

A IA cria o risco de ter um impacto negativo no empoderamento econômico das mulheres, nas diversidades sexuais e de gênero e nas oportunidades do mercado de trabalho, ao conduzir à automatização do trabalho. Uma investigação recente do Fundo Monetário Internacional e do Women's Policy Research Institute concluiu que as mulheres correm um risco significativamente maior de despedimento devido à automatização do trabalho em comparação com os homens.

À medida que mais empregos pouco qualificados são automatizados, ter um nível mais elevado de educação e competências será cada vez mais procurado no mercado de trabalho. A ONU prevê que as mulheres perderão 5 empregos a cada emprego ganho através da Indústria 4.0, em comparação com os homens, que perderão 3 empregos a cada emprego ganho. De acordo com um estudo colaborativo de 29 programas das Nações Unidas, metade dos empregos atuais desaparecerão até 2050.

Por outras palavras, mais de 60% das crianças que ingressam hoje na escola primária poderão acabar por trabalhar em empregos que ainda não existem. Portanto, é essencial que as mulheres e as diversidades sexuais e de gênero não sejam deixadas para trás em termos de novas estratégias de formação para mitigar o impacto da automação na perda de empregos. Nos países latino-americanos, a entrada das mulheres no mercado de trabalho foi um dos fatores mais importantes para o crescimento do emprego nas últimas décadas.

A falta de participação feminina no setor produtivo está literalmente a custar dinheiro às economias da região: a redução desta disparidade de gênero aumentaria o PIB dos países da América Latina e do Caribe em 4%.

Infelizmente, as mulheres ainda escolhem menos carreiras relacionadas com ciência, tecnologia, engenharia e matemática...

Assim é. Além disso, os dados disponíveis mostram que as mulheres fazem uma utilização mais limitada dos dispositivos digitais e da internet, incluindo a participação na gig economy. Este atraso nas competências digitais limita a sua capacidade de obter os benefícios que esta tecnologia oferece. Para realizar com sucesso as transições necessárias para a força de trabalho do futuro, as mulheres e as diversidades sexuais e de gênero precisam de adquirir aptidões e competências tecnológicas adequadas.

É vital que tenham mais influência na criação e utilização da tecnologia. Só desta forma poderemos contribuir para a criação de um futuro igualitário que aborde as preocupações sobre os preconceitos de gênero que se insinuam nas novas tecnologias, por exemplo na concepção de algoritmos de IA.

Você está otimista… ou acha que a IA aprofundará as desigualdades de gênero?

Quero ser otimista em relação à IA, porque sou otimista em relação à vida. Mas estou ciente de que este otimismo depende do quão éticos e responsáveis forem o desenvolvimento e a utilização da IA. Tenho muitos exemplos de boas práticas: a IA pode ajudar a combater o assédio sexual. A empresa de IA NexLP desenvolveu #MeTooBots, que monitora as comunicações entre colegas e detecta bullying e assédio sexual em documentos, e-mails e chats.

A IA pode ajudar na saúde sexual e reprodutiva, como o Bloomlife, que fornece informações médicas valiosas durante o parto. Ou para abordar as desigualdades de gênero, como a Ellevest, que oferece uma plataforma de investimento online concebida por mulheres para mulheres, para combater o analfabetismo financeiro e ajudar a colmatar a disparidade de investimento de gênero.

Globalmente, aproveitar as tecnologias de IA para promover os direitos das mulheres e melhorar o seu acesso às oportunidades requer uma abordagem proativa e holística ao desenvolvimento e implantação da IA ​​que dê prioridade à inclusão, à igualdade de gênero, à responsabilização, à transparência, ao respeito pelos direitos humanos, integrada na concepção e utilização éticas.

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Do baú

O antifenômeno

A jornada presidencial de Sergio Moro, Ana Clara Costa, Piauí de março de 2022 (expandir)

A missa de domingo na Catedral da Sé na cidade do Crato começa pontualmente às 19 horas. Na noite de 6 de fevereiro, cerca de 250 fiéis ocupavam os bancos enquanto aguardavam o padre Raimundo Pedro, que acabou se atrasando. Quando finalmente chegou ao altar, às 19h11, o pároco não precisou se explicar. Pouco antes do começo da missa, um ajudante paroquial deu os primeiros recados da noite e uma pista do motivo da demora: “Temos hoje aqui a presença do juiz Sergio Moro e do senador Eduardo Girão”, disse. O público recebeu o aviso com indiferença. Quase ninguém olhou ao redor tentando localizar os visitantes ilustres.

O padre rezou a missa normalmente, mas, antes da bênção final, achou que devia justificar a presença de Moro e sua comitiva, que se acomodaram nos bancos intermediários, nem na frente nem nos fundos da igreja. Disse que, minutos antes da missa, fora procurado na sacristia pelo filho de um “nobre cidadão cratense”, que estava acompanhado do ex-juiz e de outras autoridades. Houve silêncio. “Nosso costume, como brasileiro, como nordestino, como cearense, é de acolher bem a todos. Sejam bem-vindos”, disse o pároco, convocando os fiéis a bater palmas para os visitantes. O aplauso durou sete segundos.

A visita ao sertão do Cariri cearense foi a primeira investida de Moro em redutos petistas desde que se filiou ao Podemos e lançou-se como candidato presidencial. No Crato, em 2018, o petista Fernando Haddad teve 84,6% dos votos válidos no segundo turno. O petista Camilo Santana concorreu ao governo do Ceará e venceu em primeiro turno, com 93,29%. O prefeito do Crato, outro que foi eleito com folga, é Zé Ailton, também do PT. A comitiva de Moro não tinha nem mesmo um aliado na cidade para organizar a visita. Precisou recorrer ao tucano Raimundo Bezerra Filho, rebento do tal “nobre cidadão cratense” a que se referiu o padre, para fazer as vezes de anfitrião na cidade. 

Apesar do domínio petista, Moro considerava o Crato uma visita indispensável porque a cidade é berço de Padre Cícero. Como tem se apresentado como defensor dos “valores cristãos”, acenando a um só tempo para evangélicos e católicos, Moro contava ainda com mais um bônus. Três dias antes, o presidente Jair Bolsonaro, durante uma live, dissera que Padre Cícero era “de Pernambuco” e, na dúvida sobre sua cidade natal, pediu ajuda a assessores nordestinos presentes, usando uma expressão pejorativa: “Cheio de pau de arara aqui e não sabem em que cidade fica Padre Cícero, pô?”

Moro é um dos brasileiros mais conhecidos do eleitor. Segundo o Datafolha, 94% da população brasileira sabe quem é o ex-juiz da Lava Jato. No entanto, sua intenção de voto, de acordo com a mais recente pesquisa do Ipespe, encomendada pela XP Investimentos, não passa de 8% no país, patamar que se mantém desde janeiro. Pouco depois da visita de Moro ao Ceará, o Ipespe fez sua última sondagem no Nordeste, mas a coincidência não o beneficiou: o ex-juiz cravou 6% de preferência na região, oscilando apenas 1 ponto para cima, dentro da margem de erro.

Com a popularidade de Moro patinando, não é surpreendente que o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), um de seus cabos eleitorais no Nordeste, esteja vendo seu próprio eleitorado minguar. O senador aderiu à campanha do ex-juiz e, desde então, tem observado em suas redes sociais que vem perdendo parte de seus apoiadores, cuja maioria é formada por bolsonaristas. Girão ingressou na política defendendo pautas caras à extrema direita, como o combate ao que os conservadores chamam de “ideologia de gênero”. Em sua primeira tentativa, alcançou o Senado, depois de declarar voto em Bolsonaro. Ele se diz “independente”, sem compromisso com o governo, embora tenha obtido certa notoriedade entre apoiadores do presidente ao insistir diariamente, durante a CPI da Pandemia, que se investigasse também o consórcio do Nordeste (criado por governos de oposição para fazer frente à Covid), e não apenas as suspeitas sobre Bolsonaro. Agradou ainda mais quando se revelou um defensor da cloroquina.  

Como todos os apóstolos da terceira via, Girão acha que o eleitor está insatisfeito com as opções de Lula e de Bolsonaro, e que Moro poderá deslanchar. Argumenta que, quando se candidatou ao Senado, seus números também eram desanimadores, mas ele continuou firme e conseguiu a vaga que, no início, todos diziam que estava destinada a Eunício Oliveira (MDB-CE), então presidente do Senado. A comparação ignora as diferenças brutais entre uma eleição para senador e uma para presidente, mas, acima de tudo, não toca na raiz de um fenômeno negativo: o juiz Sergio Moro chegou a ter 64% de aprovação, no auge da Lava Jato, em 2016. Como ministro da Justiça de Bolsonaro, bateu em 59%. Hoje, como presidenciável, sua intenção de voto não chega a dois dígitos.

Detestado à esquerda, em boa medida pelo seu empenho em denunciar petistas e prender Lula, e hostilizado pelos extremistas de direita, por ter rompido com Bolsonaro, Moro se apresentou como um candidato natural da “terceira via”, o apelido que se dá a tudo que não é Lula nem Bolsonaro. Mas sua candidatura é um paradoxo na origem. Bolsonarista de primeira hora, Moro aderiu ao governo antes da vitória eleitoral, ficou dezesseis meses como ministro e saiu atirando: denunciou que o presidente interferia nos rumos da Polícia Federal para beneficiar sua família e seus amigos. Desde então, virou um ex-bolsonarista, mas nunca chegou a ser um antibolsonarista – como mostra sua campanha, seus aliados e seus eleitores.

Durante os três meses de apuração desta reportagem, Moro não quis dar entrevista à piauí. Não foi por falta de tempo. Nesse período, chegou a dar três entrevistas à Rádio Jovem Pan, cuja linha editorial é favorável ao governo Bolsonaro. Foi o veículo com o qual falou com mais frequência. Em compensação, permitiu que a revista acompanhasse toda a sua agenda pública em cinco cidades – duas do Nordeste, três do Sudeste –, com uma única exceção. Em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, durante uma visita à Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), uma entidade do terceiro setor, Moro pediu que eu deixasse a sala para que conversasse um “assunto sigiloso” com a diretora do local.

Os eleitores de Moro estão em duas categorias. Uma pequena parcela é composta por quem votou branco ou nulo em 2018 porque não queria nem Bolsonaro nem o PT. E uma enorme maioria é formada por quem votou em Bolsonaro e se arrependeu. A campanha do ex-juiz trabalha com dados segundo os quais 90% do seu eleitorado, hoje, é composto de ex-eleitores de Bolsonaro.

No Nordeste, os apoiadores engajados de Moro são pouco numerosos, mas não menos estridentes que os de Bolsonaro. Quando o ex-juiz desembarcou em Juazeiro do Norte usando seu uniforme de campanha – camisa branca, calça jeans azul-marinho da Hugo Boss e um tênis da Lacoste –, não havia militância à sua espera, exceto pelos irmãos gêmeos Cosmo e Damião Silva Lemos, dois senhores aposentados de 68 anos, ex-tucanos, ex-bolsonaristas e hoje filiados ao Podemos. Cosmo e Damião gritavam “Sergio Moro presidente” no aeroporto, quase ininterruptamente, e acompanharam a comitiva até a primeira parada, no Horto do Padre Cícero, onde há uma estátua em homenagem ao religioso. Diante do monumento, quando um jornalista local gravou um áudio dizendo que a visita estava “vazia”, Cosmo e Damião se enfureceram. “Petista! Comunista!”, gritaram, fazendo com que o profissional tivesse de sair do local para poder trabalhar. Ninguém os repreendeu.

No Sudeste, em especial no interior de São Paulo, prevalece a identificação dos eleitores de Moro com as ideias de Bolsonaro. Por isso, o candidato obteve recepção mais calorosa do que no Nordeste, embora tenha trocado a agenda de rua pela agenda de gabinete. Em vez do povo, foi ao empresariado. Moro se sente mais confortável em ambientes controlados. Anda sempre com dois seguranças ao lado. Em São José do Rio Preto, no noroeste paulista, em que Bolsonaro teve 78% dos votos no segundo turno, foi bem recebido. Ao desembarcar na cidade, havia um pequeno grupo de apoiadores no aeroporto. Os empresários do agronegócio, embora ligados ao bolsonarismo, não se negaram a conhecê-lo.

No mesmo dia de sua chegada a Rio Preto, Moro esticou até Catanduva, a 60 km dali, para se encontrar com empresários do setor sucroalcooleiro. Foi recebido para um almoço com cerca de trinta usineiros, em encontro organizado por intermédio de Xico Graziano, consultor de sua campanha, que já integrou governos tucanos e apoiou Bolsonaro. Em sinal de deferência ao convidado, Evandro Gussi, presidente da Única, que faz o lobby do etanol no país e no exterior, viajou da capital paulista a Catanduva – mas teve a cautela de não exagerar na simpatia e se indispor com o governo Bolsonaro.

Moro falou por cerca de uma hora respondendo a perguntas dos usineiros. Disse que, se eleito, fará as reformas econômicas que ninguém fez, elogiou o governo de Michel Temer, “que teve lá seus problemas, mas fez reformas positivas”, e afirmou que a liberdade de Lula é “mau exemplo” e abre espaço para que leis sejam transgredidas, como “invadir propriedade”, um argumento que atinge na veia o agronegócio. Rogério Luchini, da Usina São Domingos, que assistiu à apresentação e fez uma pergunta à qual Moro respondeu com evasivas, diz que não quis pressionar muito o convidado e promete votar nele. Se Moro não for para o segundo turno, escolherá Bolsonaro. “Se ele não estiver, vamos contra o molusco (sic). Não tem outra opção”, avisa.

O pecuarista e ex-ministro de Fernando Collor, Antonio Cabrera, um dos homens mais ricos da região, foi procurado por seu sobrinho, Ben Hur Cabrera, um entusiasta de Moro. Queria que o tio organizasse um encontro de Moro com os pecuaristas de Rio Preto. Cabrera deixou claro que apoia Bolsonaro, mas ajudaria a preparar tudo, desde que não fosse em sua casa, e sim na de sua mãe, Dora, para evitar “desgaste”. Ele também avisou que não poderia ir ao encontro. Os cerca de quinze pecuaristas que compareceram queriam saber o que Moro achava sobre pautas caras ao agronegócio, como a liberação do uso de arma de fogo em propriedades rurais, autorizada por um decreto presidencial em 2019. Moro disse que concordava com a medida, desde que restrita aos donos de terras.

O prefeito da cidade de Rio Preto, o emedebista Edinho Araújo, tampouco se esquivou de uma conversa com o ex-juiz. Compareceu a um evento em sua homenagem organizado pelo Lide, grupo que foi fundado por João Doria, hoje fora da entidade, e que reúne líderes empresariais em torno da defesa da iniciativa privada. Segundo Marcos Scaldelai, presidente da seção local do Lide, o ex-juiz foi convidado a visitar a cidade tão logo sua filiação ao Podemos foi anunciada. Scaldelai explica que os empresários querem escutar o que pessoas “de destaque” na política estão pensando. Temer esteve lá em dezembro passado. Em fevereiro, foi a vez o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, o candidato de Bolsonaro para disputar o governo de São Paulo.

As pessoas “de destaque” de Scaldelai não incluem Lula. “É o perfil do nosso estado, é o perfil do interior de São Paulo. Esquerda o empresário não quer escutar.” A piauí não esteve no jantar, mas o dirigente conta que os presentes, umas duzentas pessoas, ficaram satisfeitos com o ex-juiz. “Acharam que ele deu um salto qualitativo. Evidente que ainda falta massa crítica detalhada. Mas ele mesmo explicou que sua proposta ainda está em construção.” O momento feérico da noite aconteceu quando Moro pediu que levantasse a mão quem apoiava a Lava Jato. Todos de mãos levantadas. Em seguida, pediu que fizesse o mesmo quem achava que Lula era culpado. Todos de mãos levantadas.

Rogerio Gabriel, presidente de uma rede de franquias de educação, é entusiasta de Moro e compareceu ao jantar. Diz que ele moralizou a política e que, embora não tenha muita familiaridade com assuntos econômicos, parece ser inteligente e saberá montar um bom time caso passe para o segundo turno. Gabriel votou em Bolsonaro em 2018, a contragosto, diz ele, pois sua primeira opção era João Amoêdo, candidato do Novo. Mas se animou quando viu sua equipe. “Ele montou um time com [Paulo] Guedes, Moro, Salim Mattar, tinha um projeto claro de privatização”, diz. E relembrou a passagem que lhe pareceu mais relevante do currículo do ministro da Economia: “Além disso, tinha a experiência do Guedes no Chile.” A experiência no Chile foi dar aulas numa universidade que estava sob intervenção militar decretada pela ditadura de Augusto Pinochet. “Aí eu pensei: isso pode funcionar”, conta o empresário, hoje frustrado com a gestão atual. Gabriel diz que Moro e o tucano João Doria são as melhores opções. Mas, caso nenhum deles chegue ao segundo turno, o jeito será votar em Bolsonaro outra vez. “No Lula não voto de jeito nenhum. Vai ter que ser Bolsonaro. E depois ir tomar um chope para esfriar a cabeça…”

“No Sudeste, onde o agronegócio é mais industrializado e os produtores vivem em cidades maiores, é possível que o Moro consiga algum espaço porque Bolsonaro errou demais na condução da pandemia”, diz um aliado do presidente, que conhece bem o agronegócio, e pediu anonimato para não se indispor com o governo. “Mas o produtor rural de botina e chapéu, que é a maior parte do setor no país, esse cara está com Bolsonaro.” Segundo esse aliado, a liberação do uso de arma no campo, o fim da pressão dos movimentos sem-terra, o desmonte da legislação ambiental e o fim das demarcações de terras indígenas são “conquistas” que o setor não está disposto a abandonar. “Há 80% do setor com Bolsonaro não importa o que ele faça. Se ele disser que água não molha, eles vão concordar e acabou.”

Os 423 lugares do Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, estavam quase lotados em 9 de dezembro para receber Sergio Moro, que lançava seu livro Contra o Sistema da Corrupção, de 288 páginas, pelo selo Primeira Pessoa, da editora Sextante. Não se tratava de uma noite de autógrafos comum. Por 95 reais, o apoiador do ex-juiz podia comprar o livro autografado e um ingresso para assistir a um bate-papo entre ele e o jornalista Carlos Nascimento, ex-apresentador do SBT e produtor rural em São Paulo. O lançamento, realizado num reduto histórico da classe artística, provocou protestos. A atriz Ana Beatriz Nogueira cancelou um espetáculo no local. Os atuais gestores do teatro tiveram de vir a público afirmar que, depois de dois anos de pandemia, precisavam sobreviver, não tinham patrocínio e haviam alugado o espaço para a editora.

Na hora marcada, cerca de sessenta pessoas surgiram na entrada do teatro, que fica dentro de um shopping center. Chamaram o pessoal na fila de “fascistas”. “Eles não sabem quem é Sérgio Britto, não sabem nada”, bradava uma manifestante, referindo-se ao consagrado ator e diretor que ajudou a fundar o teatro. Moro entrou pelos fundos. Exemplares do seu livro estavam à venda no teatro, dispostos em frente a um painel de fotografias de peças clássicas encenadas no local. A maioria das imagens era da adaptação de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder, lançada em 1982, em que Fernanda Montenegro interpretava uma estilista que vivia um romance tórrido com uma mulher de classe social inferior, interpretada por Renata Sorrah e, mais tarde, por Christiane Torloni. Na maior fotografia, que servia como pano de fundo para os livros, Torloni estava deitada sobre o palco, com uma perna estendida e outra levemente aberta, enquanto Montenegro se inclinava sobre ela, prenunciando um ato sexual.

O painel destoava do ambiente controlado do evento. Naquela noite, os presentes eram em sua maioria homens brancos, adultos e de meia-idade. Alguns portavam a bandeira do Brasil. Outros, cartazes em homenagem à Lava Jato. Moro iniciou o bate-papo explicando por que decidira escrever a obra. Sugeriu que o lançamento simultâneo do livro e da candidatura presidencial fora uma coincidência. Disse que fazia apenas sessenta dias que decidira voltar ao país – e por dois motivos. “Um é para contar essa história [que está no livro] e o outro é por causa de vocês”, disse, estendendo as mãos para a plateia. Recebeu aplausos. Depois, mencionou que os protestos fora do teatro eram plantados, não espontâneos, mas não indicou quem seriam os plantadores. Tentando explicar por que ingressou no governo Bolsonaro, disse: “Muita gente tinha esperança. Muita gente tinha o sentimento de que havia uma chance de dar certo.”

Moro repetiu seguidas vezes que Lula era culpado e que as condenações estavam sendo derrubadas, não porque ele tenha agido com parcialidade, como decidiu o STF, mas porque o sistema político se beneficiava da corrupção. Arrematou com William Shakespeare. “Corrupção existe em qualquer lugar do mundo. Até mesmo nos países mais íntegros. Até mesmo na Dinamarca. Tem até aquela frase famosa, né? Tem algo de podre no reino da Dinamarca”, disse, referindo-se ao clássico diálogo de Hamlet. O exemplo não foi dos mais precisos, considerando que a corrupção do tipo a que Moro se refere não aparece nem perto do topo da longa lista dos males do Castelo de Elsinore, mas cumpriu o objetivo de reforçar sua imagem de xerife cujo trabalho foi sufocado por interesses inconfessáveis.

Terminado o evento, o público deixou o auditório e postou-se à entrada na esperança de vê-lo partir, mas Moro ficou por cerca de uma hora dentro do teatro recebendo convidados, como o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, e o ator Carlos Vereza, também ele um bolsonarista arrependido. Depois, saiu com alguns membros do Podemos para jantar no hotel Emiliano, em Copacabana. Parecia cansado. Chegara naquela manhã ao Rio, dera uma entrevista para a rádio Tupi, tomara um café na sede do jornal O Globo e encontrara-se com a ex-juíza Denise Frossard e com empresários do setor de combustíveis. Considerou que o dia terminara de forma positiva, com muitas novas filiações à sigla no Rio de Janeiro. “Nosso site caiu. Nosso banco de registros online de filiados está completamente congestionado”, me disse Renata Abreu, a presidente do Podemos, naquela noite.

Sergio Moro decidiu que iria para o governo Bolsonaro durante um churrasco em Curitiba, no dia 23 de outubro de 2018, cinco dias antes do segundo turno. Paulo Guedes voara naquele dia até a capital paranaense para tentar convencê-lo a aceitar o convite. O evento para recepcionar o economista foi no apartamento de um amigo de Moro, Carlos Zucolotto Júnior, considerado um ótimo churrasqueiro. O cardápio da noite foi carneiro. Em seu livro Contra o Sistema da Corrupção, Moro conta que, naquela noite, sinalizou a Guedes que, se Bolsonaro ganhasse, ele aceitaria assumir a pasta da Justiça. Escreveu que sentiu “um misto de entusiasmo pela oportunidade” com “receio” de que sua decisão fosse “mal compreendida” e prejudicasse o trabalho que fizera na Lava Jato. Embora afirme que sempre foi contra as falas misóginas, racistas e homofóbicas, bem como a defesa da ditadura militar e da tortura, amplamente proferidas por Bolsonaro na campanha, Moro não mencionou nada disso como ponto de atenção naquela hora. Disse que consultou as pessoas mais próximas e a maioria recomendou que aceitasse, inclusive sua mulher Rosangela e o amigo Zucolotto Júnior.

Conversei com duas pessoas com quem o ex-juiz se aconselhou nesse período, que falaram sob a condição de manter suas identidades no anonimato. Ambas foram consultadas quando a decisão já estava tomada, embora Moro ainda não tivesse ido ao Rio de Janeiro para dar a resposta afirmativa a Bolsonaro, já então eleito. Ambas o alertaram dos riscos. Uma delas foi procurada por Moro por mensagem de WhatsApp e respondeu que “de maneira alguma” ele deveria aceitar o convite, em razão do perfil autoritário e do histórico do candidato. Moro retrucou que, no ministério, teria mais condições de combater a corrupção sistêmica. O conhecido, que vive nos Estados Unidos, rebateu que essa decisão afetaria de forma definitiva a sua imagem. Não foi ouvido. Desde então, não mais se falaram. “Evitei contato e não quero ter. Ele parecia ser alguém que refletia esse anseio da população de buscar por justiça contra atos de corrupção. Foi um grande desapontamento”, diz o apoiador arrependido.

O outro conhecido ouvido pelo ex-juiz conta que ele acreditava que as falas racistas e misóginas, assim como as ameaças antidemocráticas, não passavam de retórica de campanha. Como réplica, Moro ouviu do interlocutor que o autoritarismo estava crescendo no mundo e líderes autoritários vinham cumprindo suas promessas de restringir a liberdade e minar a estabilidade das instituições democráticas. O ex-juiz respondeu que, enquanto ele estivesse no governo, não haveria cerceamentos. “Ele se achava, de certa forma, um guardião. E acho até que ele foi. Seu desgaste com o Bolsonaro se deu justamente por isso, por tentar blindar o que estava ao seu alcance”, diz o conhecido, que reconhece os excessos da Lava Jato, mas avalia que o resultado foi positivo.

Depois de aceitar o convite de Bolsonaro, Moro convocou uma coletiva de imprensa para o dia 6 de novembro. Pediu que a assessoria de imprensa da Justiça Federal anunciasse a entrevista e usou o auditório da vara. Os servidores estranharam. Avaliavam que Moro estava misturando as coisas ao usar os funcionários e o prédio público para uma agenda pessoal. Na coletiva, começou com um elogio inesquecível a Bolsonaro. “Me pareceu uma pessoa bastante ponderada”, falou. “Eu disse a ele que para integrar governo tem de ter certa convergência. Ainda que não haja concordância absoluta de ideias entre nós, há a possibilidade de um meio-termo.” Na mesma ocasião, disse que sua decisão não tinha qualquer relação com Lula, que ele havia sido preso antes de Bolsonaro despontar nas pesquisas, e que não havia interferido no pleito eleitoral com segundas intenções, ao divulgar a delação do ex-ministro Antonio Palocci, que citava Lula, poucos dias antes do primeiro turno. “Quando se divulga notícia falsa em eleição, é fake news. Quando é verdade, é direito à informação”, rebateu o ex-juiz.

Moro também classifica como “direito à informação” outro episódio cercado de controvérsias, quando, às vésperas da votação da admissão do processo de impeachment de Dilma Rousseff, ele divulgou as interceptações telefônicas do ex-presidente Lula, que seria nomeado ministro da Casa Civil. Os áudios, que o ex-juiz então classificou como prova de crime de obstrução de Justiça, foram coletados ilegalmente e tornados públicos poucas horas depois da interceptação, em 16 de março de 2016. O episódio, que mais tarde o STF considerou uma evidência de parcialidade, ainda revelou que Moro agiu em conluio com o Ministério Público Federal. No seu livro, ele diz que não errou. E que “o importante é querer acertar”.

Até hoje, Moro diz que não se arrepende da adesão ao governo, mas, no livro, faz um mea-culpa ao recordar o ímpeto autoritário de Bolsonaro. “Admito que participar do governo cujo presidente era responsável por declarações desse tipo era controverso. Mas, durante a campanha eleitoral, minha avaliação era de que ele havia moderado o tom”, escreveu. Em plena campanha, o “moderado” Bolsonaro defendeu que policial que mata “com dez ou trinta tiros, cada um, tem que ser condecorado, e não processado”, afirmou que “a polícia brasileira tinha que matar é mais”, falou em “fuzilar a petralhada aqui do Acre”, referiu-se à esquerda dizendo que “essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós”de, no mesmo discurso em que prometeu que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, conclamou: “Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia”e– uma referência ao local em que, sob a ditadura, os presos políticos eram assassinados.

Se defesa da democracia e dos direitos humanos não eram preocupações do ex-juiz, o apoio popular – daqueles que ele considera “o povo” – estava no topo de suas prioridades. No livro, ele diz que notou o entusiasmo na feição das pessoas já no voo de volta do Rio de Janeiro para Curitiba, depois de aceitar a vaga de ministro. “Havia muitas pessoas em êxtase.” Justificou-se dizendo que uma pesquisa de um instituto do Paraná apontara que 82,6% dos entrevistados apoiavam sua ida ao governo, que a Bolsa de Valores havia subido e que o dólar havia caído após sua resposta tornar-se pública.

Em entrevista ao Fantástico, da Globo, depois de aceitar o cargo, Moro disse que percebia “nas pessoas comuns um entusiasmo” e “desejo” de que ele aceitasse o convite. “As pessoas me procuram, me cumprimentam. Para mim, é um sinal de que há uma grande expectativa”, afirmou. Na mesma entrevista, disse que estava assumindo no governo um cargo técnico, não político. “Eu não me vejo num palanque, eu, candidato a qualquer espécie de cargo em eleições, isso não é a minha natureza”, afirmou. Ele dera pelo menos seis declarações públicas, desde 2015, afirmando não ter qualquer interesse em se candidatar. No Rio, no lançamento do livro, ao ser questionado por Carlos Nascimento sobre essas promessas, voltou a recorrer ao “povo”. “Eu estava lá, nos Estados Unidos, no setor privado, e as pessoas me pediam para voltar”, disse.

Uma das pessoas que ficou deliciada com a volta de Moro é a designer de joias paulistana Lydia Sayeg, amiga do ex-juiz e entusiasta de sua candidatura. “O que ele fez foi por amor ao Brasil. Ele é um idealista”, me disse a designer, em uma conversa por telefone, em janeiro. Na entrevista, Sayeg relembrou sua felicidade ao ver que o amigo ingressaria no governo. (Ela diz ser amiga do casal, mas que a amizade é mais íntima com Rosangela do que com o ex-juiz.) “Quando ele virou ministro, eu fiquei tão animada! Torcia muito para que essa união dele com o Bolsonaro desse certo. Acho que o Brasil todo torcia para isso. Todo brasileiro patriota torcia. Essa roubalheira do PT foi muito triste”, diz. A designer argumenta que se não houvesse a “roubalheira do PT”, 600 mil pessoas não teriam morrido vítimas da Covid. Perguntei como havia chegado a essa conclusão. Ela respondeu: “É muito triste você ver um presidente roubar o Brasil do jeito que ele [Lula] fez. Tirar todo o dinheiro da saúde e colocar em países lá fora, levando todo o nosso dinheiro para construir metrô na Venezuela, portos em Angola. Tirou bilhões daqui, onde poderiam ter sido feitos hospitais, que teriam salvado as 600 mil vidas que morreram agora de Covid.” Para a designer, que apoiou a candidatura de Bolsonaro, a corrupção é “assassina”.

No dia 6 de dezembro de 2018, a corrupção “assassina” apareceu nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo. Uma reportagem sobre o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontava a prática da “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Fazia pouco mais de um mês da vitória de Bolsonaro. Em seu livro, Moro reconhece que a situação de ingressar no governo em meio àquele escândalo foi “embaraçosa”, mas disse que ficou satisfeito com a resposta que o presidente deu na época, dizendo que quem estivesse errado, neste caso, pagaria pelo erro. Achou “coerente”.

Semanas depois, no dia 22 de janeiro de 2019, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, Sergio Moro se preparava para entrar em um dos painéis dos quais participaria. Toda a cúpula do Executivo estava lá, inclusive Bolsonaro. Naquele dia, o jornal O Globo publicara uma reportagem mostrando que, entre os servidores do gabinete de Flávio Bolsonaro que sacaram dinheiro para repassá-lo ao então chefe de gabinete Fabrício Queiroz, estavam a mãe e a ex-mulher do ex-policial militar Adriano da Nóbrega, um bandido então foragido, hoje morto, acusado de chefiar um grupo de matadores no Rio. A reportagem unia pela primeira vez os temas peculato e crime organizado ao nome da família Bolsonaro. Em Davos, onde me encontrava para cobrir o evento, abordei Moro, junto com outro colega jornalista, para questioná-lo sobre a descoberta. Ele ficou desconcertado e gaguejou. “Não me cabe comentar sobre isso. Mas o que acontece é que… o que acontece é que as… as instituições estão funcionando… normalmente”, disse.

No Ministério da Justiça, o início de sua gestão trouxe entusiasmo aos servidores, que notaram o empenho do novo ministro. Moro passava mais horas trabalhando do que os antecessores, participava de reuniões técnicas às quais outros ministros da Justiça jamais compareciam e pegava cedo no batente: às oito da manhã já estava despachando. Levou para os cargos de maior confiança servidores com quem já havia trabalhado na 13ª Vara Federal de Curitiba. O clima de trabalho era agradável, embora estafante, em razão de Moro exigir um nível de comprometimento acima do normal, enviando mensagens muito tarde da noite ou durante a madrugada.

Mas então começaram as primeiras desavenças com o governo – sobre o Coaf, sobre o decreto do porte de arma, sobre o seu pacote anticrime – até culminar nas crises com a Polícia Federal, nas quais Bolsonaro, atropelando o ministro, escolheu o superintendente do Rio de Janeiro e, depois, o próprio diretor da instituição. Moro apanhava publicamente de Bolsonaro, mas permanecia no cargo. “Optei pelo silêncio, até porque meu foco era o de preservar a autonomia da Polícia Federal, também desejável para a preservação do estado de direito”, escreveu o ex-juiz no livro. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, em que o presidente, na frente de todos os chefes da Esplanada, disse que trocaria o comando da PF e que, se não pudesse, trocaria o ministro, Moro também permaneceu no cargo. Era cético quanto a contornar a situação, mas havia ainda uma ponta de esperança de que Bolsonaro cederia.

Um técnico diretamente subordinado ao ex-ministro relembra que, embora a situação estivesse tensa, houve, na véspera da saída de Moro, a impressão de que as coisas haviam se resolvido e que talvez ele conseguisse emplacar um nome técnico na direção da PF, e não o escolhido do presidente. “Parecia que ele havia conseguido contornar. Moro disse que, na semana seguinte, reavaliaríamos o cenário”, me contou o servidor. Se isso tivesse acontecido, ele avalia que o ex-ministro não teria deixado a pasta. Naquela noite, porém, Moro e equipe foram surpreendidos por informações de que o Diário Oficial da União traria a exoneração do então diretor da PF, Maurício Valeixo. A mudança feria em cheio a autoridade e a vaidade de Moro. Ele então enviou mensagem à equipe avisando que faria um pronunciamento às onze da manhã do dia seguinte, sexta-feira, 24 de abril de 2020, no auditório do Ministério da Justiça. Terminava ali sua jornada no governo Bolsonaro.

Municiado por informações conspiratórias, Bolsonaro acreditava que a postura de Moro na questão da PF tinha o objetivo de minar o governo para que ele próprio, Moro, colhesse os benefícios políticos. Em janeiro de 2020, a revista Época revelara que Moro vinha analisando pesquisas eleitorais com seu nome. As pesquisas não eram custeadas por ele, e sim por uma gestora de investimentos. Mas ele pedia recortes específicos para analisar seu potencial. As sondagens o apontavam com 15% de intenções de voto. A saída ruidosa de Moro, com acusações ao chefe, só reforçou a percepção dos bolsonaristas de que o ex-ministro era um traidor infiltrado no governo.

Com a demissão, o ex-juiz ficou sem rumo. A amigos, confidenciou que não esperava aquele desfecho e que, quando aceitou o convite de Bolsonaro, planejara ficar oito anos no governo. Depois disso, o STF seria seu caminho natural. Nesse período, surgiu o primeiro convite para ingressar no Podemos. O senador paranaense Alvaro Dias relembra que começou a ser pressionado por correligionários para convidá-lo a se filiar, antes que outros o fizessem. “Eu então mandei uma mensagem para ele dizendo que respeitava o momento, que era de reflexão. Mas que, no dia que achasse adequado discutir uma participação política, nós estaríamos abertos”, diz. Moro agradeceu, mas achava que não era o momento de tamanha exposição.

Por lei, Moro precisava cumprir seis meses de quarentena da advocacia, mas, depois de cinco anos sob os holofotes, não queria voltar ao anonimato. Enquanto elaborava pareceres para escritórios de advocacia e participava de lives, respondia ao inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que, além de investigar as acusações, achou que deveria investigar o acusador. Ele também sabia que, se quisesse trabalhar no setor privado, enfrentaria resistências em empresas com boa relação com o governo. O escritório de advocacia Warde, do advogado Walfrido Jorge Warde Júnior, sondou-o para integrar a banca. O ex-juiz foi desaconselhado a seguir em frente com a conversa por avaliar que sua imagem poderia ser prejudicada, já que o escritório é conhecido por contratar pessoas com bom trânsito no meio político. Moro pensou que poderia ser criticado por conflito de interesses, embora não tenha feito a mesma reflexão ao entrar no governo Bolsonaro. No Warde trabalham nomes como Roberta Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do STF, e Valdir Simão, ex-ministro da Controladoria-Geral da União, ambos sócios, e Leandro Daiello, ex-diretor-geral da Polícia Federal.

Morar no exterior sempre foi um desejo da advogada Rosangela Wolff Moro, mulher de Sergio Moro e mãe de seus dois filhos. Com a pandemia no auge em 2020, encontrar um trabalho fora do Brasil era uma missão difícil, sobretudo para um ex-magistrado que nem sabia como pedir um emprego. O ex-ministro pensou que os Estados Unidos seriam a melhor opção pela familiaridade que tinha com o país e o avanço da vacinação. Com a ajuda de conhecidos, preparou seu currículo e despachou-o para consultorias, como a McKinsey, a PricewaterhouseCoopers e a Ernst & Young, que têm setor de compliance, no qual ele pretendia trabalhar.

Depois de conversas com quatro empresas, recebeu duas propostas: da Alvarez & Marsal, uma consultoria de negócios, e da K2 Integrity, uma firma de investigação empresarial dos fundadores da Kroll, que deixaram a antiga empresa em 2009. A proposta financeira da Alvarez & Marsal era mais vantajosa. Moro topou. Nos dez meses de trabalho, recebeu o equivalente a 3,7 milhões de reais brutos, segundo ele próprio divulgou para provar que não enriquecera nem recebera dinheiro de empresas que condenou como juiz da Lava Jato. A todos os empregadores norte-americanos com quem conversou, Moro afirmou que seu objetivo era fazer uma carreira internacional no setor privado. Foi taxativo ao dizer que não almejava ingressar na política.

Quando entrou na Alvarez & Marsal, no final de novembro de 2020, Moro trabalhou no escritório brasileiro por um mês, em razão das restrições da pandemia, antes de conseguir a liberação para mudar-se. Nesse período, recebeu o convite oficial de filiação ao Podemos. “No final de 2020, voltei a ser cobrado para convidá-lo”, conta Alvaro Dias. “Aí fizemos algo mais formal. Marcamos um encontro e conversamos. Falamos que aquele era um convite para uma participação partidária que poderia evoluir para uma candidatura. Ele respondeu que ainda não tinha uma decisão e precisaria amadurecer a ideia. Também disse que tinha compromissos que o impediam de se manifestar politicamente e pediu um prazo de dez meses. Naquele momento, ele conversava com bastante gente. João Amoêdo, João Doria, Henrique Mandetta, empresários…”, relembra o senador.

Em Washington, aonde chegou em janeiro de 2021, a família Moro alugou uma casa em Bethesda, um distrito de classe média já no estado de Maryland, a cerca de trinta minutos de carro do Centro da capital norte-americana. É um local em que vivem muitos funcionários de organismos multilaterais com escritório em Washington, como o Banco Mundial e o FMI. Moro comprou uma picape Jeep Cherokee de segunda mão e mobiliou a nova casa: um sobrado de três quartos, sala com dois ambientes, sala de jantar, cozinha e porão com lavanderia. O imóvel era confortável. Um incômodo era a falta de lavabo no térreo. Qualquer convidado que precisasse ir ao banheiro tinha que subir à área íntima, ou descer até a lavanderia.

A vida em Washington era pacata em razão da pandemia. O trabalho era remoto a maior parte do tempo, assim como a escola do filho mais novo do ex-juiz. A mais velha ficara em Curitiba, onde cursa o quarto ano de direito. Mesmo morando fora, Moro resistia em sair do debate público no Brasil, posicionando-se constantemente nas redes sociais sobre assuntos relacionados à Lava Jato. Um amigo pondera que, embora o ex-ministro seja introspectivo, ele gostou dos holofotes da Lava Jato e do governo – uma projeção que terminou esfriando com sua ida para os Estados Unidos. “Ele gostou de ser figura pública, se sentiu bem”, relata o amigo, com quem ele se aconselhava nessa época. Outro conhecido, também muito presente no período de Washington, diz que “não é vaidade”, e sim um “compromisso de ser brasileiro”. E afirma: “Ele não estava infeliz nos Estados Unidos, mas também não estava feliz.”

Enquanto suas sentenças na Lava Jato vinham sendo derrubadas, Moro assistia, de longe, à ascensão de Lula nas pesquisas. Em junho do ano passado, quando o STF decidiu, por 7 votos a 4, que o ex-juiz atuara com parcialidade nas condenações ao ex-presidente, Moro aparecia em terceiro lugar na corrida presidencial. Segundo o Ipespe, tinha 7% de intenções de voto, mesmo morando fora do Brasil e longe da política. Moro sentia o golpe das derrotas no Supremo, mas andava envaidecido com as pesquisas que o colocavam à frente de candidatos que vinham se movimentando há mais tempo, como Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB). Contudo, ele havia encolhido bastante. Quando saiu do governo de Bolsonaro, o Ipespe lhe atribuía 18% de intenções de voto.

No segundo semestre do ano passado, Moro abandonou de vez a promessa de não se candidatar e começou a articular sua entrada na política para voltar ao Brasil. Tinha reuniões com Amoêdo, Mandetta, o general Santos Cruz e o tucano João Doria, nas quais se discutia, principalmente, a viabilidade de uma “terceira via”. Em agosto, foi convidado pela Casa das Garças, celeiro de economistas tucanos no Rio, para um seminário político. Quem assistiu ao evento notou uma diferença na forma com que Moro se comunicava. “Ele estava fazendo um esforço visível para deixar de ser monotemático. Quis falar de economia, história, política, Estados Unidos. Veio com elaboração”, reparou um dos organizadores do encontro online.

No final de setembro, Moro avisou o deputado federal paulista Kim Kataguiri, então no DEM, que pretendia filiar-se ao Podemos. “Fizemos uma videoconferência”, diz o deputado, outro bolsonarista arrependido e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL). “Ele ainda estava nos Estados Unidos. Falou que queria se lançar e queria saber se teria o apoio dos movimentos. Dissemos a ele que iríamos avaliar.” Kataguiri então convidou Moro a participar de um congresso anual do MBL, em novembro. O ex-juiz compareceu, já filiado ao Podemos, e “foi quem mais empolgou a plateia”, diz Kataguiri. Em troca do apoio do MBL, Moro topou apoiar a candidatura ao governo paulista do deputado estadual Arthur do Val, também conhecido como Mamãe Falei e também ex-bolsonarista. Com o aval do ex-juiz, Kataguiri, Do Val e outros membros do MBL aceitaram se filiar ao Podemos.

Em busca de aliados, ainda antes de voltar para o Brasil, Moro procurou os deputados federais Junior Bozzella e Julian Lemos, ambos ex-bolsonaristas e, então, filiados ao PSL. Bozzella, defensor da Lava Jato, relembra: “Ele falou que vinha acompanhando os meus posicionamentos públicos, me agradeceu e disse que iria voltar ao Brasil e se filiar.” Para Bozzella, a presença de Moro é saudável numa corrida presidencial “entre quem é o menos pior”. Na opinião de Julian Lemos, que brigou com Bolsonaro no primeiro ano de governo, Moro tem “estatura moral” para disputar as eleições. Segundo ele, o ex-juiz e ex-ministro disse que estava voltando ao país para evitar a “tragédia de o brasileiro ter de escolher entre Bolsonaro e Lula”.

Nesse período, Moro recorreu a Maria Cristina Pinotti, doutora em economia pela Universidade de São Paulo (USP), que conhecera nos idos de 2016, durante a Lava Jato. De lá para cá, se encontraram “meia dúzia de vezes”, me disse a economista, quando conversamos por chamada de vídeo no início de fevereiro. Moro queria convidá-la para integrar a campanha. Pinotti topou coordenar o plano econômico em conjunto com seu marido, Affonso Celso Pastore, mas disse não ter intenção de se envolver em campanha nem integrar o governo. É apenas, diz ela, uma contribuição “de ideias”. “Pode haver proposta melhor que a nossa. Mas se alguma coisa do que estiver lá fizer sentido e ajudar na discussão, e as reformas lá na frente avançarem, estaremos mais do que recompensados”, diz.

Moro também fez contato com o advogado Joaquim Falcão, com quem mantinha conversas frequentes. “Eu estava aqui em Lisboa na paz”, recorda Falcão, que aceitou coordenar o programa jurídico da candidatura. “Aí o Moro me liga, e eu fiquei entre a paz e a pátria. E optei pela pátria”, disse ele, em conversa por telefone. O ex-juiz reuniu ainda nomes como o economista Renato Fragelli Cardoso, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o advogado Modesto Carvalhosa e o agrônomo Xico Graziano. Trouxe Luciano Timm, ex-membro de sua equipe no Ministério da Justiça, e o advogado Marcelo Knopfelmacher. Para a coordenação-geral da campanha, escalou um amigo de Curitiba, o advogado Luis Felipe Cunha, da área de telecomunicações, que nunca se envolveu em questões eleitorais. Conheceram-se pouco antes da Lava Jato, por meio de Zucolotto Júnior, o amigo do churrasco, de quem Cunha é vizinho.

A cerimônia de filiação de Moro ocorreu em 10 de novembro, em Brasília e, dez dias depois, parecia que sua candidatura voaria em céu de brigadeiro. Uma pesquisa o apontava com 11% de intenções de voto, à frente de Ciro Gomes e João Doria. O número reacendeu conversas sobre a viabilidade da “terceira via” e colocou alguns políticos em estado de alerta. No gabinete do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), réu num processo por corrupção no STF, deputados ouriçados com a novidade diziam que, com Moro, o Podemos passaria a se chamar “Fodemos”. Um senador relembra que, na época, esperava-se em Brasília que Moro “subiria como um foguete”. “Houve essa sensação por causa da barreira de dois dígitos, que ele alcançou, enquanto outros nomes do centro não conseguiam se mover”, relembra. Mas agora “parece que gorou”, diz ele, sem deixar de dar uma cutucada: “Até o Geraldo Alckmin, que todos chamam de picolé de chuchu, tem mais charme que ele.”

Em meio à empolgação da largada, o economista e ex-diretor do Banco Central, Luiz Fernando Figueiredo, decidiu apresentar Moro para uma parcela do PIB num jantar em sua casa, em São Paulo. Entre os presentes, Luis Stuhlberger (Fundo Verde), Roberto Setubal (Itaú Unibanco), Fábio Barbosa (ex-Santander) e Marcelo Marangon (Citi Brazil). Como esperavam que o novo presidenciável só falasse de Lava Jato e corrupção, os convivas gostaram de ouvir menções a reformas econômicas e privatizações, mas queriam mesmo saber se um governo de Moro – o juiz que prendeu e condenou próceres da política – conseguiria dialogar com o Congresso. Nessa hora, Renata Abreu, a presidente do Podemos, tomou a palavra. Disse que vinha conversando com vários partidos e estava surpresa com o número de parlamentares que procuraram o ex-ministro depois do anúncio de sua filiação. Moro completou dizendo que, para montar a base de apoio antes do início do mandato, chamaria “todo mundo” – para não seguir o exemplo do ex-chefe, que chegou ao Executivo isolado e depois entregou o orçamento e a alma ao Centrão. Ninguém perguntou se o PT estava entre o “todo mundo”.

Um dos presentes, que falou sob condição de não ter seu nome revelado para não melindrar os demais, relatou o plano de governabilidade do ex-juiz como “aquela conversa mole de sempre”. Mas, segundo ele, Moro foi melhor do que se esperava, recebeu elogios, embora não seja “impressionante”. “Você não fica encantado. Mas estamos todos tão carentes de opções que o balanço acaba sendo positivo”, resumiu. Um investidor que foi procurado pelo ex-juiz nesse mesmo período corrobora que ele “impressiona pouco” e “não é um grande orador, você não fica hipnotizado”, mas reconhece que ele está tentando se adaptar e é “claramente inteligente”. “Quando o Fernando Henrique sentava para conversar, você saía da conversa se perguntando: ‘Meu Deus, o que é isso?’ Era impressionante. E o Lula consegue capturar de uma maneira incrível. Mas mesmo sem ter essas aptidões, achei a conversa com Moro boa”, diz.

No final de dezembro, o ex-juiz retornou animado aos Estados Unidos para terminar sua mudança, vender o carro e alguns móveis. Voltaria para Curitiba, onde alugara um apartamento de 270 m² no bairro de Juvevê, região abastada da cidade. O imóvel é mais confortável e mais bem localizado do que o apartamento que comprara quando era juiz, de 160 m², na vizinhança de Bacacheri. Acreditava que seria capaz de catalisar os votos de Bolsonaro e da centro-direita contra Lula. No entanto, pela primeira vez, Moro teve motivos para ficar intrigado. Numa reunião organizada pelo marqueteiro do Podemos, Fernando Vieira, ouviu algo que ninguém jamais lhe dissera. Um especialista avisou que seria muito difícil que seu nome avançasse nas pesquisas no curto prazo. Sua rejeição era altíssima (hoje está em 55%, enquanto Lula tem 43% e Bolsonaro, 62%). Moro sabia desses números, mas jamais havia sido informado, de maneira tão clara, de que se tratava de uma barreira difícil de transpor.

Quando seu pai, José Masci de Abreu, foi abatido pelo Alzheimer em 2013, a deputada federal paulista Renata Abreu, advogada e administradora, herdou um partido sem bancada. Desde que assumiu o então PTN, ela teve um único objetivo em mente: atrair parlamentares para a sigla e lançar candidatos com chance de vitória. Em 2014, elegeu-se deputada pela primeira vez e começou a executar seu plano. Atraiu políticos de siglas de centro-direita e, pouco mais tarde, participou das articulações a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Participar, nesse caso, queria dizer uma coisa só: oferecer votos em troca de cargos.

Na noite de 13 de julho de 2016, presenciei uma cena simbólica do trabalho de Abreu. O plenário da Câmara estava esvaziado, e Sandro Mabel, assessor do então presidente Temer, tinha acabado de checar os acordos para aprovar o impeachment, quando foi abordado por Abreu. Numa conversa acalorada, ela cobrava os seus cargos – no caso, na Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cobiçada por seu orçamento de 3 bilhões de reais e capilaridade por todo o país. Mabel enrolava, dizendo que os indicados de Abreu não estavam à altura da qualidade técnica necessária, talvez evitando entregar um mimo tão precioso para uma bancada tão pequena, então com treze deputados. O futuro comprovou o poder de persuasão de Abreu: o PTN emplacou seus indicados, ocupou diretorias e superintendências e, no ano seguinte, capturou inclusive a presidência da Funasa.

Ousada e atenta aos seus interesses, Abreu percebeu a força de movimentos como o MBL no impeachment, mudou o nome de seu partido de PTN para Podemos e desenrolou a bandeira do combate à corrupção, para surfar no prestígio da Lava Jato. Estendeu tapete vermelho para o senador Alvaro Dias entrar no partido, depois de constatar que ele estava isolado no PSDB e já se aproximava de Moro. Deixou a base de apoio ao governo, quando Temer virou alvo da Lava Jato, tendo que amargar a desfiliação de correligionários que queriam se manter no poder, mas achou que estava dando um passo atrás para dar dois à frente. Seu mantra continuava o mesmo: aumentar a bancada do partido do seu pai.

Hoje, a deputada é a principal articuladora política da candidatura de Moro. Conversa com lideranças partidárias, tenta costurar alianças e se empenha em conciliar os interesses do candidato presidencial com os de sua bancada voraz. Desde já, o caixa é um obstáculo. Seu partido, pelo menos até agora, sem alianças formais, terá pouco tempo de tevê para a campanha presidencial (estima-se em dez minutos diários, no máximo) e pouco dinheiro. Calcula-se que Moro terá 17 milhões de reais. Em 2018, Bolsonaro elegeu-se com muito menos, mas eram condições excepcionais. Hoje, os líderes políticos dizem que uma campanha presidencial competitiva custará – no oficial – entre 60 milhões e 100 milhões de reais.

Em janeiro, Moro teve seu primeiro choque de realidade. Contratar equipe, encomendar pesquisas, viajar pelo país em avião particular para conseguir visitar mais cidades em menos tempo tornaram-se luxos que ele não conseguiria custear com a verba designada pelo Podemos. As vacas eram tão magras que, no voo para Juazeiro do Norte, em fevereiro, o ex-juiz não tivera direito sequer ao “assento-conforto”, que se localiza nas primeiras filas, mas, ao ser reconhecido pela comissária, foi reacomodado na frente depois que todos embarcaram. Moro confidenciou a amigos que o partido não tinha estrutura política e financeira para bancar uma campanha presidencial, e que, embora tivesse uma boa relação com Renata Abreu, ela sozinha dificilmente conseguiria costurar uma saída que melhorasse a situação. Estão tentando uma aliança com o União Brasil, que resultou da fusão entre DEM e PSL, mas está difícil: de dez lideranças do novo partido, só três apoiam uma aliança com Moro. Os que se opõem fazem a seguinte pergunta: por que o União Brasil, que tem a maior bancada da Câmara e 1 bilhão de reais do fundo partidário, deveria usar sua dinheirama com um candidato de um dígito de outro partido, em vez de investir nas candidaturas de seus deputados?

Enquanto as conversas patinam, Renata Abreu não dá sinais de preocupação com a corrida solitária do Podemos até aqui. A situação já causa incômodo no círculo de Moro, que anda desconfiado de que Abreu está menos interessada na campanha presidencial e mais interessada em aproveitar a candidatura do ex-juiz para eleger uma boa bancada parlamentar e aumentar sua base de filiados. A deputada refuta. Diz que, quando a campanha começar de verdade, Moro vai deslanchar, pois terá apoio popular. Seu trampolim, diz ela, será a comunidade evangélica, que está insatisfeita com os desmandos de Bolsonaro na pandemia e rejeita votar em Lula em razão das pautas progressistas.

Sem aliança, sem o União Brasil, Abreu anunciou no fim de janeiro que começara a negociar a formação de uma federação com o Cidadania, o antigo PPS, legenda presidida pelo deputado federal Roberto Freire. A federação é o novo nome da coligação, com a diferença de que a aliança precisa durar quatro anos e seus membros devem votar de forma alinhada. Freire não se empolgou. “O Podemos e nós não temos nenhuma identidade do ponto de vista político. É um partido que eu não sei o que pensa, não tem muita capilaridade e estrutura democrática”, disse. “Além disso, não há uma definição [do Podemos] sobre apoiar ou não Bolsonaro. Alguns deles apoiam e aceitam a pauta do governo. O próprio Moro está aí assumindo pautas e agendas próximas do bolsonarismo nos costumes, a exemplo da carta que dirigiu aos evangélicos. O Podemos não vê problema nenhum nisso. Ou seja, não tem nada a ver com a gente.” Em fevereiro, o Cidadania aprovou a criação de uma federação com o PSDB.

Se em 2018 o tempo de tevê e o apoio partidário foram secundários, como provou a vitória de Bolsonaro, agora a perspectiva é outra. “Em 2020, já houve a volta da normalidade na política e a volta da hierarquia das plataformas, com o tempo de tevê retomando importância”, avalia o cientista político Antonio Lavareda. Para ele, Moro tinha chances reais de vencer a eleição presidencial em 2018, mas agora é complicado. “Se quiser alguma chance, Moro vai precisar de tempo de tevê e de recursos. E para que ele consiga uma coligação que proporcione isso, precisará se mostrar competitivo. Despontar na frente se tornou mais difícil neste ano para ele, com o campo da direita muito mais fragmentado que o da esquerda”, avalia.

Sem dinheiro suficiente, Abreu tem recorrido a empresários para que ajudem o partido com doações. Num jantar promovido pela revista gaúcha Voto, em São Paulo, no qual era a convidada de honra, Abreu apelou: “Campanha custa. Inclusive, se vocês quiserem arrumar doadores, a gente está precisando.” Como a verba não é abundante e Moro já não ganha da Alvarez & Marsal para arcar com suas despesas, ele tem recebido um salário de 22 mil reais do Podemos. Além disso, tem mantido uma agenda como palestrante. O site The Intercept revelou que o ex-juiz negociou um contrato com a corretora Ativa Investimentos, do Rio de Janeiro, para dar duas palestras para clientes da empresa, em fevereiro. Recebeu 77 mil reais. A piauí confirmou a informação.

Dar palestras remuneradas não é ilegal. No entanto, quando se pleiteia ou se termina um mandato presidencial, todas as relações privadas precisam ser bem calculadas para não ganhar uma aura de suspeição. Por ironia, durante a Lava Jato, os investigadores foram exaustivos em suspeitar publicamente das palestras remuneradas que Lula concedera, a ponto de levar o juiz Moro a autorizar o bloqueio de bens do ex-presidente. Moro dizia que, no contexto das investigações sobre o caso da Petrobras, o pagamento que Lula recebia pelas palestras gerava “dúvidas sobre a generosidade” das empresas que o contratavam. As investigações não provaram qualquer ilegalidade e acabaram sendo arquivadas pela juíza Gabriela Hardt, substituta de Moro em Curitiba.

Os entraves partidários e financeiros da candidatura de Moro se somaram a outros problemas causados por falta de coordenação, diagnóstico, experiência política e, inclusive, uma boa dose de ingenuidade. Moro não acredita nas pesquisas convencionais que mostram seu desempenho enfraquecido. Avalia que as projeções de vitória de Lula no primeiro turno são tendenciosas e que, ao somar brancos e nulos, há mais eleitor sem candidato do que com candidato. Aconselhado pelo deputado Kim Kataguiri, tem olhado com mais atenção o eleitorado jovem, entre 16 e 34 anos, por achar que essa fatia específica não chegou a conhecer seu trabalho na Lava Jato.

Do alto de seus 26 anos, Kataguiri explica que estudou em detalhes o eleitor jovem na campanha do colega Arthur do Val, o Mamãe Falei, para a Prefeitura de São Paulo, em 2020. “O eleitor jovem, de classe média, do Sudeste, boa parte não sabe o que foi a Lava Jato. No meu caso, alguns me conhecem mais pelo mandato como deputado do que pelos protestos pelo impeachment. Nesses momentos me sinto velho, quando um jovem me diz que ouviu o pai falar de mim. Mas o fato é que a juventude mais à direita ficou órfã e há um espaço a ser explorado ali, que o Moro pode ocupar”, diz ele, que tem reuniões frequentes com o ex-juiz. “Não estou na campanha, mas sou uma espécie de consultor, conselheiro.”

Em sua busca pelo eleitorado jovem de direita, Moro deu uma entrevista de 4 horas e 58 minutos em janeiro para os youtubers Igor Coelho e Bruno Aiub, conhecido como Monark, então apresentador do podcast Flow, do qual foi expulso mais tarde depois de defender a criação de um partido nazista no Brasil. No meio da entrevista, Moro replicou uma notícia segundo a qual a Blackrock, a maior gestora de ativos do mundo, não investiria mais no Brasil enquanto Bolsonaro fosse presidente. A Blackrock já tinha desmentido a informação, mas o ex-ministro não sabia. Um empresário alertou o pessoal de Moro para o erro – que foi interpretado como mais um exemplo da falta de estrutura da campanha, que não tem nem uma equipe para fazer checagem e evitar que o candidato cometa deslizes públicos.

Nas redes sociais, Moro tenta antagonizar com Lula e Bolsonaro, mas, nos bastidores, ele diz que seu principal adversário é outro – o tucano João Doria, que patina na rabeira das pesquisas. Moro acredita que Doria planta informações desabonadoras sobre sua campanha na imprensa com o objetivo de enfraquecê-lo. Nas conversas que teve com Doria no ano passado, o tucano insistia que a centro-direita precisava se unir em torno do nome mais viável. Moro acreditou. Quando se lançou com números superiores aos de Doria nas pesquisas, imaginou que o tucano abraçaria sua candidatura. No dia 13 de janeiro, um grupo de WhatsApp chamado “Ativação Política” veiculou a informação de que Moro poderia abrir mão da candidatura em favor de Doria. Moro correu para responder que era fake news. Não queria demonstrar fraqueza diante dos membros do grupo, que inclui cerca de cem empresários, entre eles, Jorge Gerdau, e alguns políticos, como Michel Temer e Eduardo Leite.

Com tanto desalento ao redor, Moro tentou reagir. No final de janeiro, antes de sair em romaria pelo Sudeste e Nordeste, procurou pessoas próximas ao governador paulista para cobrar a tal estratégia de “união em torno do nome mais viável” – ou seja, o dele, que está em terceiro lugar nas pesquisas. Disse que começara a receber recortes de pesquisas mostrando que voltaria para os dois dígitos e que sua taxa de rejeição estaria recuando. A abordagem não pegou bem porque chegou com o tom peremptório de um juiz em vez da sutileza de um político. Além disso, a expectativa de bons números não se confirmou. Em uma pesquisa posterior, realizada pela CNT/MDA, o ex-juiz apareceu com 6,4% das intenções, tendo sido ultrapassado por Ciro Gomes, com 6,7%. Bolsonaro, de quem Moro pretende roubar votos, avançou quase três pontos, chegando a 28%. O resultado desanimador, somado à escassez de recursos e de alianças, reacendeu conversas de que talvez fosse mais vantajoso para Moro tentar uma vaga no Senado. “Está tudo meio abandonado”, diz um amigo que se envolveu na campanha no princípio, mas hoje está frustrado com o rumo das coisas. “Cada um no partido só pensa em si. Moro não é flexível, confia em quem não deve e desconfia das pessoas erradas.”

Terminada a missa na Catedral da Sé, no Crato, naquele domingo de fevereiro, a comitiva de Moro postou-se na porta da igreja. Alguns cratenses pediram uma foto com o visitante. Erguida em 1745, a igreja fica em frente à principal praça da cidade, um ponto de encontro dos moradores, onde há atividades para as crianças, carrinhos de venda de comida e bebida e um letreiro gigante com a frase “Eu amo o Crato”. A noite estava fresca, o lugar estava movimentado e curiosos passavam por ali questionando-se quem seria o forasteiro. Ao olhar detidamente para Moro, uma moradora finalmente reconheceu o ex-juiz, mas demonstrou sua frustação. “É baixinho, né? Achei que ele era mais alto.” Moro tem 1,75 de altura.

O candidato atendeu aos pedidos de fotos prontamente, mas seu desconforto era visível. Parecia que não queria estar ali. Não fazia gestos expansivos, a testa permanecia franzida e, com metade do rosto atrás da máscara, seu olhar era sério. Mantinha sempre uma mão em um dos bolsos e a outra reta sobre os quadris, em posição meio robotizada. Não abraçou nem tocou quem se aproximava. Andou um pouco pela praça, circulando por zonas menos movimentadas, como um observador distante. Conversou com Fabinho, como se identificou o pipoqueiro, para saber da situação do trabalhador local.

Em seguida, Moro saiu em direção ao próximo compromisso: um jantar no restaurante do Crato Tênis Clube, o principal clube da cidade. Apesar da presença incomum da comitiva, as famílias que jantavam no local, tal como aconteceu na igreja, se mostravam indiferentes à presença dos ilustres. Na única vez em que se levantou da cadeira, Moro tirou fotos com alguns convidados do partido e foi embora. Ficou no local menos de uma hora. Os veteranos de campanha no Nordeste que viram o ex-juiz em ação afirmam que sua falta de traquejo e o jeito engessado fazem lembrar a folclórica antipatia de José Serra, o tucano que percorreu a região em 2002 na disputa contra Lula. Deu no que deu.

1964: matéria da memória (pela lembrança de Carlos Heitor Cony e as boas leituras dos anos de chumbo)

Maior parte da imprensa brasileira apoiou o golpe de 64

Jornais defenderam deposição de João Goulart, presidente democraticamente eleito (Cinismo e canalhice totalitária ainda prevalece nos grandes jornais)

Oscar Pilagallo, Folha (expandir)

Oscar Pilagallo

Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

Link de acesso à matéria original da Folha: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/maior-parte-da-imprensa-brasileira-apoiou-golpe-de-1964.shtml 


A imprensa brasileira, esta Folha inclusive, desempenhou papel relevante na conspiração contra o presidente João Goulart e, em 31 de março de 1964, apoiou com entusiasmo a deflagração do golpe militar, antes mesmo que ele fosse consumado.

Com exceção do "Última Hora" –que nascera em 1951 para apoiar o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e, depois, de seus herdeiros políticos–, os jornais fustigaram com intensidade crescente um governo democraticamente eleito, preparando a opinião pública, durante meses, para a intervenção que rasgava a Constituição do país.

O presidente Castello Branco em visita a São Paulo em 1º de maio de 1964, um mês após o golpe - Última Hora/Folhapress

No Rio de Janeiro, os principais concorrentes locais deixaram de lado as disputas comerciais para se unir num projeto comum.

Em fins de outubro de 1963, cinco meses antes do golpe, entrou no ar a Rede da Democracia, um programa em que as rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi, dos Diários Associados, juntaram esforços para combater o que identificavam como ameaça comunista. O acordo foi costurado pelos próprios donos dos veículos: Nascimento Brito, Roberto Marinho e um representante de Assis Chateaubriand, respectivamente.

A repercussão ultrapassava largamente o alcance das frequências das três rádios fluminenses. O programa era retransmitido em centenas de emissoras espalhadas pelo país e, mais tarde, transcrito nos grandes jornais.

Embora tivessem o mesmo objetivo –derrubar Jango–, os veículos do Rio se diferenciavam pelo alvo da artilharia. Marinho, tendo em vista uma demanda por um canal de TV, evitava a crítica direta ao presidente, com quem mantinha aberto um canal de comunicação. O Globo focava o governo, não o governante, ao contrário dos outros, que personalizavam os ataques na figura de Goulart.

Não por acaso, fuzileiros navais obedientes a um militar fiel a Leonel Brizola –cunhado e apoiador de Jango– invadiram as sedes do JB, Globo e um jornal dos Diários Associados, além da Tribuna da Imprensa, nas primeiras horas do golpe.

Os editoriais resumem a participação dos jornais no golpe. O tradicional Correio da Manhã entrou para a história com os títulos "Basta!" e "Fora!", publicados em 31 de março e 1º de abril. O prestigioso JB celebrou "a vitória da democracia" contra "a implantação de um regime comunista". E o Globo, um vespertino com penetração limitada, festejou na capa no dia 2: "Vive a nação dias gloriosos", escreveu, atribuindo o desfecho da ação militar à "Providência Divina".

O início do golpe, no entanto, foi uma surpresa para a imprensa, assim como para os principais articuladores da ruptura na caserna, como o general Castello Branco. A ação foi precipitada por Olympio Mourão Filho, general que comandava as tropas de Juiz de Fora e não estava entre os protagonistas dos planos para derrubar Jango. Ele deu início às mobilizações na madrugada de 31 de março.

Em São Paulo, o sinal mais nítido de que a imprensa passou a agir conjuntamente para afastar Jango foi a aproximação, às vésperas do golpe, dos arqui-inimigos Assis Chateaubriand e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo.

A diferença na atitude dos principais veículos limitou-se ao nível de engajamento de seus proprietários. Se quase todos franquearam as páginas dos jornais aos propósitos golpistas, houve quem fosse além, abrindo as portas de seus gabinetes aos conspiradores.

Mesquita foi além do apoio editorial do Estadão, então o principal jornal de São Paulo. Em janeiro de 1962, mais de dois anos antes do golpe, recebeu na sede do matutino um general –Orlando Geisel, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel– que o sondou sobre a ideia de instaurar uma ditadura. A resposta é uma carta intitulada "Roteiro da revolução", que exorta os militares a intervir.

Mais tarde, sairia da sala de Mesquita um documento em tudo semelhante a um ato institucional, prevendo até a suspensão temporária de garantias constitucionais.

Quanto à Folha, teve influência relativamente menor –do tamanho de sua importância na época. A empresa que edita o jornal havia sido comprada em 1962 por Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, e os empresários trabalhavam para saná-la financeiramente antes de investir no setor editorial.

No discurso, porém, a Folha não se distinguia da concorrência. Contribuía para a difusão de teses antipopulistas e conclamava as elites à ação coordenada, com um tom cada vez mais alto. O jornal trabalhava com a hipótese de que Jango pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta.

A deposição do presidente contou até com a criação de um jornal popular para fazer contraponto ao Última Hora. Foi o Notícias Populares, que nasceu em outubro de 1963 financiado por Herbert Levy, um político da UDN (União Democrática Nacional), o principal partido de oposição a Goulart. Anos depois, já sem essa função, o NP seria incorporado ao Grupo Folha.

Ao longo das duas décadas de ditadura militar, os veículos sofreram censura, passaram a criticar o governo e, sobretudo após a redemocratização, se penitenciaram por terem apoiado o golpe.

Escolas foram usadas para difundir ideologias durante ditadura militar

Marian Tokamia, Agência Brasil (expandir)

Link para acesso à matéria original da Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2024-04/escolas-foram-usadas-para-ideologia-autoritaria-na-ditadura?utm_source=pocket_reader 

O golpe, a ditadura e o revisionismo acadêmico

O movimento revisionista não se dá no vazio, mas expressa debates políticos de fundo, em especial de quais setores seriam os protagonistas do golpe e quais seriam suas vítimas

Michel Goulart da Silva, A Terra é redonda (expandir)

Nesta segunda-feira, 1º de abril, completam-se sessenta anos do golpe que derrubou o governo João Goulart em 1964. O processo, encabeçado pela cúpula militar e apoiado por empresários e outros setores sociais, abriu as portas para a ditadura que perseguiu e assassinou críticos e opositores até a década de 1980. Contudo, ainda que as ações dos golpistas e dos ditadores sejam bastante evidentes e conhecidas pela sociedade, sempre gerou polêmicas e interpretações, que vão muito além do mero negacionismo desprovido de conteúdo de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Pelo contrário, mesmo no ambiente acadêmico, essas interpretações afetam até mesmo o trabalho dos historiadores.

Esse movimento revisionista não se dá no vazio, mas expressa debates políticos de fundo, em especial de quais setores seriam os protagonistas do golpe e quais seriam suas vítimas. Em particular, existem aquelas interpretações que culpam a esquerda e, por conseguinte, as mobilizações dos trabalhadores pelo golpe, afinal seriam essas mobilizações que teriam forçado a ação da burguesia e do imperialismo.

Expressando essa interpretação, afirmaram Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira que o presidente João Goulart “[…] se aliara a Brizola, Arraes, Prestes e ao movimento sindical mais radical para formar um governo exclusivo das esquerdas. A opção presidencial permitiu que os grupos de oposição ao governo – mesmo os mais moderados e legalistas –, quer civis, quer militares, começassem a suspeitar das verdadeiras intenções de Jango. Receosa e desconfiada, essa oposição cedeu aos apelos da direita golpista, o que reduziu os custos políticos de uma ruptura com as regras democráticas”.[i]

Segundo os dois historiadores, João Goulart teria conseguido, “[…] por razões diversas, entre as quais a ameaça comunista é o destaque, que setores militares e civis, quer os que já estavam conspirando, quer os que não o faziam, se posicionem de forma radical contra o presidente”.[ii]

Contudo, as ações do presidente que teriam causado tanto medo seriam a convocação de uma Constituinte, dependendo da anuência do Congresso Nacional, e as ameaças de uma reforma agrária “na marra”, mediante o pagamento de indenização. Portanto, não havia nada de perigosamente revolucionário nessas medidas, mas reformas que se davam dentro da ordem capitalista burguesa. Observa-se, pelo contrário, que conspiradores de décadas anteriores buscavam fomentar o medo nas classes médias e, a partir disso, ganhar apoio para um golpe.

Outro importante historiador, ainda que mais cuidadoso em sua análise, acaba também por escorregar na interpretação de culpar a esquerda. Carlos Fico, ainda que veja nas Marchas da Família, com Deus pela Liberdade “um componente de manipulação e evidente propaganda anticomunista e contrário a Goulart”, aponta que o movimento “expressou um autêntico sentimento de insatisfação da classe média”.[iii] O historiador reconhece o fato de que as “as propostas de reformas de base não eram radicais, sobretudo a da reforma agrária”, afirmando serem “imprecisas e modestas”. Contudo, ainda que admita isso, aponta que seria necessário “reconhecer que João Goulart não foi habilidoso ao defendê-las”.[iv]

Portanto, novamente aqui se vê um exemplo de considerar a subjetividade individual de João Goulart um fato determinante para o golpe. Nessa interpretação, o fator mais importante não teria sido a propaganda anticomunista, mobilizando as classes médias com as ameaças de ataque à propriedade individual, como casas e apartamentos próprios, nem o fato de a burguesia e o imperialismo verem como negativas as reformas base e por isso organizar parte da sociedade para combatê-las. Na interpretação expressa por Carlos Fico, esses elementos objetivos da realidade parecem fatores determinantes do que a falta de habilidade do presidente.

Daniel Aarão Reis, que foi militante de organização de luta armada na ditadura, entrou nesse debate construindo um argumento diferenciado, ainda que também assumindo uma postura revisionista. Esse historiador busca construir a interpretação de que o golpe não teria sido um fenômeno externo à sociedade, mas expressava elementos políticos e culturais inerentes ao processo, assim justificando sua interpretação de que os movimentos financiados pela burguesia e apoiados pelo imperialismo, como a reacionária Marcha da Família, seriam “amplos movimentos sociais”.[v] Embora formado no marxismo, o historiador deixa de lado em sua análise qualquer perspectiva de que a luta de classes e a necessidade de manutenção da ordem institucional por parte da burguesia pode ter tido relação no apoio a esse suposto “amplo movimento de massas”.[vi]

O historiador também endossa a interpretação de seus colegas, ao afirmar que, desde a campanha pela posse de João Goulart à presidência, os “movimentos e lideranças partidárias das reformas” teriam “evoluído, progressivamente, para uma linha ofensiva em que inclusive se contemplava o recurso à violência revolucionária”.[vii] Para Aarão Reis, o presidente teria resolvido “partir para a ofensiva”, dispondo-se “a liderar um conjunto de grandes comícios para aumentar a pressão pelas reformas”.[viii]

Como destacado antes, essa “ofensiva” de João Goulart e de seus apoiadores nada mais era do que a convocação de uma constituinte, ou seja, a revisão do aparato legal burguês pelas próprias instituições burguesas. Fazia parte dessas ações tão “radicais” de João Goulart “ratificar a legislação sobre a regulamentação da remessa de lucros, já aprovada no Congresso” e “estabelecer o monopólio da importação do petróleo”.[ix] Certamente medidas tão “radicais” deixavam o capitalismo com os dias contados…

Incorporando elementos revisionistas em sua análise, Daniel Aarão Reis faz críticas abertamente à esquerda, pois esta teria assumido durante a transição da ditadura, segundo sua interpretação, um discurso democrático e passado a negar a perspectiva revolucionária que supostamente teria tido no passado. Nesse processo, segundo afirma ironicamente Daniel Aarão Reis, “a sociedade brasileira pôde repudiar a ditadura, reincorporando sua margem esquerda e confortando-se na ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”.[x]

Nem mesmo o marxismo acadêmico escapou dessa forma de revisionismo. O filósofo Leandro Konder afirmou que “o golpismo, entranhado nos costumes e na cultura política da sociedade brasileira, se manifestava também no campo da esquerda”.[xi] Concordando com o revisionismo conservador, Leandro Konder conclui que “a reação contra o golpismo do campo da esquerda resultou no golpe da direita”.[xii]

Essas interpretações se mostram completamente falsas, afinal a defesa da democracia burguesa era majoritária na esquerda em 1964. Com raras exceções, quase todas as organizações defendiam variantes da chamada “revolução por etapas”, apostando na manutenção da ordem capitalista. O PCB, antes do golpe, afirmava: “O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação, gradual, mas incessante, de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando até a realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento econômico e social da nação”.[xiii]

Como consequência dessa avaliação, o partido defendida, poucos anos antes do golpe, a “luta por soluções positivas e imediatas para os problemas do povo e a luta pela formação de um governo nacionalista e democrático”.[xiv] Poucos dias antes do golpe, em março de 1964, o partido ainda defendia “a unidade de todos os patriotas e democratas, a unificação de toas as forças interessadas no progresso do Brasil”.[xv]

Portanto, não é possível afirmar de forma alguma que o PCB tinha, antes do golpe, qualquer perspectiva de subversão da ordem capitalista. Pelo contrário, suas perspectivas não estavam voltadas para a ruptura com o capitalismo. Mesmo depois do golpe, os elementos dessa política do partido não mudaram, continuando a defender, durante a ditadura, a perspectiva de transformações por dentro da ordem capitalista: “A burguesia nacional participa da frente antiditatorial, embora sua oposição ao regime seja limitada. Outros setores das classes dominantes, cujos interesses são construídos pela política do governo ditatorial, podem participar de ações contra o regime e ser úteis à ativação e fortalecimento da frente antiditatorial”.[xvi]

Mesmo entre as organizações defensoras da luta armada a perspectiva estratégica não era diferente. Entre outros, Marighela, mesmo depois de deixar o PCB, defendia a estratégia de unidade com a burguesia, defendendo, em 1966, “[…] a necessidade de nossa aliança com a burguesia nacional, levando em conta não somente tudo o que dela nos aproxima, quando se trata de objetivos comuns na defesa de interesses nacionais, mas também tudo o que dela nos separa em questões de classe, tática, métodos, ideologia e programa”.[xvii]

Em junho do mesmo ano, o PCdoB, que pouco depois organizou a Guerrilha do Araguaia, afirmava na mesma perspectiva de colaboração com a burguesia: “Está colocada na ordem do dia a necessidade de organizar a mais ampla união patriótica que, sob o lema da independência, progresso e liberdade, possa aglutinar em um impetuoso movimento nacional as forças populares e as correntes democráticas”.[xviii]

Portanto, ainda que falassem em revolução ou em socialismo, a luta do PCB e das organizações oriundas desse partido passava necessariamente por desenvolver o capitalismo e as instituições e, talvez, somente numa sociedade futura, chegar ao socialismo.

Por outro lado, para o pacifismo genérico, que dá a base da perspectiva teórica dos historiadores revisionistas, para os quais qualquer forma de violência seria “golpista” ou “revolucionária”, o uso do método da luta armada seria algo “radical”. Mas, qualquer análise dos documentos da maior parte das organizações da luta armada mostra que, ao se isolarem da ação das massas trabalhadoras organizadas, esses grupos se mostravam impotentes diante da ditadura. Além disso, seu programa também era uma variante da “revolução por etapas”.

Para uma análise adequada, cabe colocar em seu contexto o golpe de 1964. No período anterior ao golpe, observa-se o embate entre setores burgueses em torno de perspectivas distintas em torno da relação com o imperialismo. João Goulart e seu partido, o PTB, a despeito de todas as suas ambiguidades e dos limites políticos do trabalhismo e de seus aliados, como os comunistas, defendiam a perspectiva de um desenvolvimento capitalista autônomo em relação ao imperialismo. Outros segmentos, por sua vez, colocavam no horizonte a perspectiva do aprofundamento da relação com o imperialismo.

Essa tensão não se dava apenas nas esferas das disputas institucionais, mas também no interior da sociedade. Por um lado, setores da burguesia se viam preocupados com a possibilidade de nacionalização de suas empresas ou mesmo a aplicação de políticas que poderiam criar empecilhos em sua relação com parceiros financeiros comerciais e financeiros estrangeiros. Por outro, os trabalhadores viam nas limitadas reformas propostas pelo governo – urbana, bancária, universitária, entre outras – a possibilidade de melhoria de suas condições de vida.

Portanto, para além das diferenças de interesses entre segmentos da burguesia, a luta de classes se colocava de forma explícita, tendo episódios de enfrentamento aberto, como a greve geral de 1962 ou, de forma indireta, a Campanha da Legalidade em defesa da posse de João Goulart, em 1961.

Portanto, diferente das décadas anteriores, em que Getúlio Vargas conseguiu exercer um papel bonapartistas, se colocando acima das classes, João Goulart não o conseguiu. Os militares, com o golpe de 1964, assumiram esse papel bonapartista, buscando acabar com o processo de polarização, ou seja, esmagar as mobilizações dos trabalhadores no sentido da aplicação do projeto da burguesia.

Perseguindo e desmantelando as organizações de esquerda, os militares, representando os interesses da burguesia mais afinada com o imperialismo, levaram a cabo um projeto de estruturação do Estado, aplicando inclusive versões deturpadas das reformas de base, como as mudanças na CLT em 1966 e a reforma universitária em 1968. Essas medidas, ao mesmo tempo em que aprofundaram o processo de industrialização e de urbanização do Brasil, foram responsáveis pela ampliação das desigualdades e da concentração de renda e pelo atrelamento de forma ainda mais profunda da burguesia nativa aos interesses do imperialismo.

As interpretações revisionistas, ao procurar atribuir à esquerda um papel revolucionário que ela majoritariamente não tinha no contexto do golpe e mesmo da ditadura, ignoram o fato de que havia um processo anterior ao golpe da burguesia em tentar barrar ao máximo a conquista de direitos dos trabalhadores ou de garantir o avanço de suas mobilizações. Neste caso, a própria CLT, ao controlar os sindicatos, foi uma peça central na tentativa de controlar as ações das organizações dos trabalhadores. Outro aspecto passava pelo fato de o PCB, principal organização dos trabalhadores no período, estar na ilegalidade. E, ainda, cabe destacar os golpes ou tentativas de golpe ocorridas nos períodos anteriores, como as tensões envolvendo a eleição de 1956.

Portanto, o que se tem como fato é que houve tentativas de bloquear as ações dos trabalhadores e de suas organizações, no sentido de manter a estabilidade social e política nas décadas anteriores. Nesse processo, o operariado, que se consolidou enquanto classe, não poderia reivindicar mais do que as migalhas que a industrialização em processo garantia como direitos.

Portanto, ao ver os trabalhadores organizados e mobilizados ou mesmo as organizações voltando a ter um esboço de vida pública, a burguesia se percebeu acuada e trouxe para a retórica das disputas políticas o fantasma do anticomunismo. Contudo, não estava no horizonte das esquerdas qualquer subversão da ordem, mas o desenvolvimento econômico e a ampliação de direitos dentro da ordem capitalista.

Naquele contexto, se essas direções que frearam as mobilizações fossem superadas pelas próprias massas, poderia se abrir uma situação revolucionária, que colocaria em risco a ordem burguesa, mas, a despeito das ações dos trabalhadores, suas direções não iam para além do programa das “reformas de base”. Esse elemento mostra que, apesar de ter derrubado João Goulart, em última instância, o golpe foi travado contra os trabalhadores e seu potencial de mobilização, caso as direções reformistas não conseguissem controlar as mobilizações em curso.

Em sua correta análise, os trotskistas afirmavam, ainda durante a ditadura: “A burguesia, apavorada diante do movimento de massas, que se radicalizou antes de 1964, escapando das mãos dos pelegos, conseguiu unir suas forças, para promover contra João Goulart o golpe que, em última instância, era dirigido contra as massas”.[xix] Nesse sentido, coerente com fatos e sem distorcer as posições defendidas pela esquerda no contexto de 1964, pode-se afirmar: “Na visão dos protagonistas do golpe, a crescente mobilização política e o avanço da consciência ideológica dos setores populares e dos trabalhadores, que se acentuava na conjuntura, poderiam implicar o questionamento do sistema político e da ordem econômico e social que, a rigor, deveriam permanecer sob o estrito controle e domínio das classes possuidoras e proprietárias”.[xx]

Com isso, fica claro quem foi o responsável pelo golpe e qual foi o papel das principais organizações da esquerda. As interpretações revisionistas, que acabam por ganhar grande influência na historiografia acadêmica, e que escondem o papel bonapartista dos militares, não permitem compreender a permanência dos elementos de repressão que ainda persistem no ordenamento constitucional construído na nova República.

Além disso, apontam para uma narrativa de defesa da democracia, que teria sido atacada tanto pelos militares, como pela esquerda, o que leva a acreditar que salvadores democratas entre civis e militares teriam cumprido um papel no retorno da democracia. Essa é a narrativa que garante a manutenção da ordem capitalista e a defesa das instituições burguesas no presente.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] Jorge Ferreira & Angela de Castro Gomes. 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 240.

[ii] Jorge Ferreira & Angela de Castro Gomes. 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 243.

[iii] Carlos Fico. O golpe de 1964. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 64.

[iv] Carlos Fico. O golpe de 1964. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 67.

[v] Daniel Aarão Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 7.

[vi] Daniel Aarão Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 135.

[vii] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 28-29.

[viii] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 30.

[ix] Daniel Aarão Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 39-40.

[x] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 9.

[xi] Leandro Konder. Vaca fardada. Margem Esquerda, nº 3, maio 2004, p. 49.

[xii] Leandro Konder. Vaca fardada. Margem Esquerda, nº 3, maio 2004, p. 50.

[xiii] Declaração sobre a política do PCB (março de 1958). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p 192.

[xiv] Resolução política dos comunistas (dezembro de 1962). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p. 254.

[xv] Por um governo que faça as reformas de base (06.03.1964). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p. 266.

[xvi] VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73.

[xvii] Carlos Marighella. A crise brasileira. In: Caminhos da revolução Brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 239-40.

[xviii] PCdoB. União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jair Ferreira de Sá (Org.). Imagens da revolução. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 84.

[xix] Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jair Ferreira de Sá (Orgs.). Imagens da revolução. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 392.

[xx] Caio Navarro de Toledo. 1964: golpismo e democracia. Crítica Marxista, nº 19, outubro 2004, p. 42.

# Celso Furtado e a quartelada há 60 anos

Na ocasião dos 40 anos do golpe, dois meses antes de morrer, o economista brasileiro refletiu sobre os anos de chumbo. Para ele, o Nordeste sofreu os efeitos mais nefastos, com a interrupção de reformas sociais, que desafiavam o poder dos latifundiários

(Outras Palavras)

# A relação da Alemanha com a ditadura

Trabalho apresentado à Comissão (Nacional da Verdade) concluiu que mais da metade das 16 empresas alemãs instaladas no Brasil em 1971 engajaram-se diretamente com a ditadura, incluindo Volkswagen, Siemens, Krupp e Telefunken

(DW)

# O que foi a Operação Brother Sam?

Washington planejou enviar apoio aéreo e naval aos militares brasileiros. Por US$ 2,3 milhões, movimentação foi claro sinal do interesse americano em buscar alinhamento do Brasil na Guerra Fria (ao custo da democracia e dos direitos humanos)

(DW)

# A Casa Branca no Planalto verde-oliva

Insistir no debate sobre o cenário transnacional é o melhor caminho para entender, além do dia 31 de março, ou do 1º de abril, os 21 anos que se seguiram: como o Chile de Allende, nos anos 70, o Brasil tornou-se peça fundamental no jogo pesado da Guerra Fria

(Le Monde)

Ao mesmo tempo em que propagava o mito da democracia racial, regime militar enquadrava como crime de segurança nacional as ações que denunciavam o racismo contra a população negra

(DW)

Nos 60 anos do golpe, especialistas analisam as iniciativas para estabelecer a memória e a responsabilização das atrocidades do regime militar e o apoio que ele ainda encontra na sociedade

(DW)

# Acesse aqui o conteúdo integral da GIZ  e o vídeo com o debate sobre o impacto do golpe de 64 na universidade

Revista GIZ , número 2, abril de 2024

Estudo e discussão de questões políticas, culturais e profissionais que envolvem o trabalho de Professoras e Professores em todos os níveis de ensino

Os disfarces da direita

Fortalecer o crime, corromper polícias e lotar cadeias: as ideias dos governadores do Sul e Sudeste para a segurança. Baseados em achismos e cálculo eleitoral, governadores querem propostas que, além de ridículas, já mostraram que não funcionam

João Filho, Intercept (expandir)

NA SEMANA EM que os brasileiros souberam que o crime organizado e o estado brasileiro atuaram em conjunto para matar Marielle Franco, governadores do Sul e do Sudeste foram à Brasília para apresentar ao governo federal e ao Congresso um conjunto de propostas para a área da segurança pública. 

Enganou-se quem achou que teríamos novas propostas para reformar as polícias e o sistema carcerário e aumentos de investimentos em inteligência e prevenção. Muito pelo contrário. Absolutamente todos os itens propostos pelos governadores estão norteados pela velha lógica de sempre: a repressão, o punitivismo e o fortalecimento de um estado policialesco. 

Trata-se da mesma fórmula que vem fracassando há décadas e que nos trouxe ao atual estado de calamidade na segurança pública. Não há uma ideia sequer que leve em conta, por exemplo, que as polícias estão contaminadas pelo crime organizado. 

Para emprestar um verniz moderno e civilizado para um pacote de ideias velhas e apodrecidas, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, foi o escalado para explicar as quatro principais propostas. No Twitter, ele apresentou um resumo delas. 

Vejamos a primeira: “queremos o fim do prende e solta. Estamos propondo uma revisão nos requisitos da legislação para concessão de liberdade provisória em audiências de custódia no caso de crimes graves e quando há reincidência”. Não há nenhum dado científico que embase essa proposta. Pelo contrário, os números mostram que mais se prende do que se solta em audiências de custódia. 

Cecília Olliveira, jornalista do Intercept Brasil e fundadora do Instituto Fogo Cruzado, comentou: “Só 35% dos homicídios são investigados. Dava pra começar uma nova política de segurança com essa ideia: elucidando crimes. Aí talvez a gente soubesse se o ‘prende e solta’ é msm o problema. Se prisão fosse solução, viveríamos na Suíça. Temos a 3ª maior população carcerária do mundo”. 

O que não falta no Brasil é gente sendo encarcerada. Em 2000, o país tinha mais de 232 mil presos. Hoje, 24 anos depois, esse número aumentou em quase 400%. Qual foi o resultado dessa política? A expansão e o fortalecimento do crime organizado, que fez do sistema carcerário uma espécie de categoria de base em que se recruta novos talentos para o time.

A segunda proposta: “atualizar a legislação sobre os requisitos para abordagens. Queremos reforçar aos policiais a prerrogativa de realizar abordagens conforme circunstâncias suspeitas. E também deixar expresso na legislação que é vedada a atuação com base em preconceitos”. 

A ideia é contraditória e ridícula. Para o professor de Processo Penal e Direitos Humanos, Caio Paiva, “autorizar a polícia a se valer indistintamente da suspeita e do tirocínio não combina com proibir preconceito na abordagem”. Ora, a abordagem com base em preconceito já é vedada pela legislação, mas isso nunca foi um empecilho para que jovens pretos e pobres da periferia fossem parados na rua apenas por serem jovens pretos e pobres de periferia. Na prática, a proposta só reforça o direito do policial abordar qualquer um, mesmo que não haja suspeita fundada. Nada de novo no front.

A terceira proposta: “permitir acesso pelas forças policiais às informações de monitoramento eletrônico independente de autorização judicial, para melhorar a integração, qualificar a atuação policial e as investigações”. É o liberou-geral para os policiais investigarem ao seu bel-prazer. 

A proposta prevê maior liberdade de investigação para uma corporação que está em boa parte contaminada por bandidos. Não é difícil imaginar o que faria Rivaldo Barbosa — o delegado que ajudou a planejar o assassinato de Marielle— sem precisar de autorização judicial para monitorar seus inimigos. Os outros Rivaldos Barbosas espalhados pelo país também fariam o diabo com essa carta branca. O crime organizado agradece aos governadores.

A quarta proposta é o cúmulo do ridículo: “tornar qualificado o crime de homicídio quando for praticado por ou a mando de organização criminosa”. Os assassinatos cometidos pelo crime organizado já são considerados hediondos em praticamente todos os casos. A proposta simplesmente ignora o código penal, mas dialoga bem com uma população embriagada pelo populismo punitivo como solução. 

Como se vê, os governadores não têm a mínima ideia do que estão falando. Eles encontraram uma forma de se eximir de suas responsabilidades e jogar a bucha no colo do Judiciário e do Legislativo. 

As propostas estão baseadas na mesma cartilha enxuga-gelo que adotamos nos anos 1980, que ajudou a lotar as cadeias de pretos e pobres, fortalecer o crime organizado e corromper as polícias. De lá pra cá, o crime organizado tomou conta de todos os estados do país e se internacionalizou. Hoje as facções estão infiltradas em prefeituras, câmaras municipais, financiam candidatos e nomeiam secretários. Nenhuma das propostas apresentadas fere essa estrutura criminal – muito pelo contrário.

Essas ideias populistas caem com facilidade no gosto de uma população que foi educada por professores como Datena, Alborghetti e Ratinho.

Estudiosos da áreas da segurança pública não foram consultados pelos governadores. As propostas são vazias, inócuas e baseadas no mais puro negacionismo científico, mas soam bem aos ouvidos de boa parte dos eleitores que têm a segurança pública no topo das suas preocupações

Baseado em achismos e cálculo eleitoral, essas ideias populistas caem com facilidade no gosto de uma população que foi educada nas últimas décadas por professores como Datena, Alborghetti e Ratinho. Os programas policiais sensacionalistas martelaram durante décadas na cabeça da população a máxima “bandido bom é bandido morto” — o que contribuiu para banalizar os crimes cometidos pela polícia e pavimentar o caminho para ascensão do bolsonarismo. 

Os governadores sulistas e sudestinos, todos homens brancos de direita, não propuseram nenhuma medida que qualifique a investigação policial para prender os grandes líderes das organizações criminosas, que muitas vezes moram em condomínios de luxo. Pelo contrário, insistem em pesar a mão do estado sobre a cabeça de peixe pequenos do crime nas ruas das periferias. Esse é o museu de grandes novidades que foi apresentado ao país nesta semana. Ainda que alguns vistam sapatênis e camisa polo, como Eduardo Leite, todos eles preferem fugir das evidências e continuar bebendo confortavelmente o puro suco do bolsonarismo. 

Agarram-se no velho populismo penal e dobram a aposta no pânico moral em busca de votos em um ano de eleição. Convenhamos, não podíamos esperar nada diferente de uma direita tradicionalmente oportunista e que está ávida pelo espólio eleitoral de Bolsonaro.

Ensino Médio: concliliação com o atraso pode destruir a educação pública

As mães, pais e trabalhadores em geral sabem que as escolas estão piores com o Novo Ensino Médio

Isis Mustafá, Opera Mundi (expandir)

Opinião

O Congresso Nacional atua dia e noite para manter as maldades dos governos golpistas de Temer e Bolsonaro impostas ao povo, além de, sempre que possível, aprofundar a destruição dos direitos. 

Esse objetivo está expresso na decisão de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, de nomear ninguém menos que Mendonça Filho (União) para ser o relator do Projeto de Lei 5230/2023 do Governo Federal, que versa sobre a Política Nacional de Ensino Médio. Esse deputado foi ministro da Educação do governo Temer e participou da elaboração da Reforma do Ensino Médio em 2017, que foi aprovada na canetada, através de Medida Provisória. Essa nomeação, que parece mais uma piada de péssimo gosto, escancara o desdém do Congresso com a educação brasileira.

Assim, em 20 de março, a Câmara dos Deputados aprovou o relatório substitutivo de Mendonça ao PL 5230/2023. O texto final inclui o aumento de 1800 para 2400 horas de disciplinas obrigatórias na formação geral básica. Um grande avanço, já que se tratava de um aspecto fundamental da batalha contra a Reforma. Mas mantém praticamente todos os outros retrocessos da Reforma do Ensino Médio. 

O que assistimos no plenário, na realidade, foi o Ministério da Educação forjando uma vitória do governo ao fazer um acordo com Mendonça para avançar na pauta das 2400 horas, abrindo mão de todo resto.

Revogar o NEM é a luta mais forte da educação

Quando implementada, em 2022, a Reforma fez seus efeitos serem sentidos imediatamente pelos estudantes e professores: redução da carga horária das disciplinas fundamentais, presença de empresas privadas nas escolas públicas, horas e horas de aulas jogadas no lixo com disciplinas que servem apenas para alienar a juventude. O descontentamento é geral. 

Não à toa, o movimento estudantil chamou manifestações para exigir a revogação completa do chamado “Novo” Ensino Médio, ao lado dos trabalhadores e sindicatos da educação. Para Isabella Gandolfi, diretora da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), ir às ruas foi fundamental para que “a voz dos estudantes fosse ouvida em dois sentidos: tanto para pressionar o governo a não dar continuidade na implementação da reforma, como para mostrar à sociedade os verdadeiros impactos do NEM, que estava sendo vendido como a solução aos problemas da educação pública.”

O presidente Lula argumentou que não revogaria a Reforma sem ter algo para colocar no lugar, porque o Ensino Médio antes também era muito ruim. Corajosamente, a Campanha Nacional pela Educação produziu então um projeto de lei substitutivo à Reforma (PL 2.601/2023) que foi amplamente discutido com educadores, entidades estudantis e parlamentares que defendem a educação. 

Ainda que a decisão do Governo Federal tenha sido apresentar um PL alternativo (5230/23), o fundamental foi que as mobilizações populares obrigaram que o tema fosse tratado com a urgência que merecia, e não cair na poço do esquecimento, como outras exigências da classe trabalhadora (reforma da previdência e trabalhista, interventores nas universidades, etc). 

Só acaba quando termina: próximos passos da luta pela revogação 

O Coletivo Em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, ligado à Campanha Nacional pela Educação, expressou em nota pública que não se deve comemorar a versão final do texto, porque ele contém aspectos que continuam promovendo a desigualdade e baixa qualidade no ensino. 

São eles, segundo o Coletivo: 

Esses e outros pontos de destruição da educação pública a partir da Reforma podem ser consultados no vasto material produzido pela Campanha Nacional pela Educação.

O texto ainda vai para votação no Senado. Mas sabemos que não é possível depositar todas as esperanças da educação em parlamentares que são, em sua maioria, reacionários e devotos do capital financeiro. Como vimos nos últimos anos, a luta dos estudantes e educadores ainda tem chances de fazer com que a reforma seja completamente revogada, especialmente porque as mães, pais e trabalhadores em geral sabem que as escolas estão piores com o NEM. Com essa força e esperança, estamos construindo grandes manifestações de rua no próximo dia 9 de abril, aprovado pelas entidades estudantis como data nacional de luta em defesa da educação brasileira. 

Flávio Dino ainda usou o voto para criticar o golpe de 1964, que ele chamou de “período abominável”. “O Estado de Direito foi destroçado pelo uso ilegítimo da força”, escreveu. “São páginas, em larga medida, superadas na nossa história. Contudo, ainda subsistem ecos desse passado que teima em não passar, o que prova que não é tão passado como aparenta ser.”

...e do domingo

Flávio Dino dá o 3o voto no STF contra poder "moderador" das Forças Armadas: "Função militar é subalterna", diz ministro em voto que acompanha os juizes Fux e Barroso. "O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela sobernia popular" (leia Fausto Macedo, no Estadão)

leituras do sábado...

# 60 anos do golpe de 64 # chacinas de Tarcísio podem levá-lo a perder o cargo # Bolsonaro sem passaporte não tem para onde ir, exceto para a cadeia # Israel volta à cena de seus crimes em Gaza...para matar mais palestinos # Verdades e mentiras sobre a eleição na Venezuela # Poder Moderador dos militares é bugiganga golpista. 

# "Quis apresentar ditadura e cultura brasileira aos franceses"

Mathias Lehmann conta como foi produzir Chumbo (DW)

# Que sejam punidos os arrancadores de unhas

Documento da Aeronáutica denuncia tortura dos opositores do golpe (Estadão)

60 anos esta noite

Lula não entendeu que não lembrar do golpe de 64 pemite que ele aconteça de novo

Ao não tratar com clareza sobre o tema, presidente abre as portas para novas tentativas de ruptura da democracia. Pedro Doria, Estadão (expandir)

O golpe de 1964 não é passado. Não é um ponto distante na história que olhamos com enfado escolar. 

A ditadura está ainda e viva e pulsando, hoje, no Brasil. Está nas ruas. 

Não faz nem dois anos, quatro generais de Exército e um almirante de Esquadra se sentiram confortáveis

o suficiente para planejar um novo golpe militar. Um golpe que impedisse que o candidato eleito se tornasse presidente

Pois aquele presidente, o nosso atual presidente, inacreditavelmente decidiu que o governo não deve lembrar do golpe.

Lula não entendeu nada.

No auge da crise argentina, não se viu movimentação nas Forças Armadas do país. 

Os militares tampouco se mexeram quando o Chile encheu de gente nas ruas em protestos violentos. Não é por acidente. 

O general Jorge Rafael Videla morreu com diarreia, no vaso sanitário de sua cela e não há general argentino que não saiba disso. 

Os chilenos viram o general Augusto Pinochet passar seus últimos anos fugindo dum mandado de prisão. Nós escolhemos, ativamente, não lembrar. Vivemos hoje as consequências disso.

O que argentinos e chilenos fizeram foi um exercício ativo de lembrança. 

Da Praça de Maio sempre com suas mães, hoje já bisavós, com o lenço branco. Do Museu da Memória que toda criança chilena visita em Santiago. A lembrança do que foi a ditadura é um esforço cívico e um dever do Estado.

Aqui, todo 31 de março é a mesma coisa. 

Passamos semanas discutindo se os quartéis vão celebrar a instauração da ditadura. 

Ainda hoje as Forças Armadas não tratam o que fizeram pelo que foi: golpe. A ruptura da Constituição. A interrupção da Democracia e a instauração de uma ditadura.

Se um general pode elogiar um golpe, se pode discutir a interpretação da história, é porque o Estado

concorda que há debate. As Forças são do Estado. E chegamos ao ponto em que o presidente da República que foi vítima duma nova tentativa de golpe escolhe não lembrar.

A escolha de não lembrar, a escolha de não tratar com clareza a coisa pelo seu nome, é o que faz acontecer de novo. 

Como aconteceu.

Esta é minha última coluna. Por ora. Não é a primeira vez que encerro um ciclo nas páginas do jornal, torço para 

que não seja a última. Calhou de acontecer justamente nos 60 anos do golpe. 

Este jornal, O Estado de S. Paulo, tem uma história heroica de resistência a ditaduras. 

Não só a última, dos atos institucionais e seus generais, mas também a do Estado Novo. Também a de Floriano. 

Este jornal nunca teve medo de acusar presidentes autoritários nos períodos democráticos, 

como Artur Bernardes ou Jair Bolsonaro. Quase um século e meio passado de sua fundação, 

este é um jornal que consistentemente pode dizer que trabalhou pela Democracia Liberal. 

Não é pouco. Ter o nome escrito com regularidade em suas páginas é motivo de orgulho para qualquer jornalista. 

Então, a meus colegas, e a vocês leitores, fica não um adeus. Só um até logo ;-)

60 anos esta noite

Não é história, é presente. O Estado construído por traumas não deve temer suas mazelas

Lula, depois de tudo pelo que passou - perseguido e preso durante a ditadura -, representa o governo com traumas recentes em mexer em feridas da ditadura militar. Marcelo Rubens Paiva, Estadão (expandir)

Minha vida, infelizmente, sempre foi com mais transtornos do que planejei. 

Quando pensei que encerrava meu ciclo de textos em que tragédias pessoais e familiares estavam na premissa, 

me vejo novamente no topo de um vulcão. Queria escrever sobre o novo sofá de quatro lugares reclinável do 

Palácio da Alvorada. Os ocupantes têm de votar sobre quantos graus o encosto deve ficar?

Mas Lula... Ele representa o governo com traumas recentes em mexer em feridas da ditadura militar

Porém, o Estado é construído pelos traumas e tem o dever de relembrar suas mazelas, não temer.

Dilma abriu o debate do que aconteceu e de quem foram os agentes de crimes cometidos durante os anos de chumbo. 

Os anteriores, Tancredo, Sarney, Collor, FHC e Lula, homens, governaram pisando em ovos, sob o pacto invisível de não desagradar a setores que, na República, demonstraram não ter pudor em apontar a espada ou o canhão para derrubar um governo constitucional.

Lula, surpreendentemente, depois de tudo pelo que passou, logo ele, perseguido e preso durante a ditadura, 

não recebeu em seu terceiro mandato a Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos

enrolou para recriá-la, determinou que órgãos do governo silenciassem sobre os 60 anos do Golpe de 64 

e engavetou um projeto do seu ex-ministro da Justiça, Flávio Dino, o Museu da Verdade.

O presidente diz que a ditadura “faz parte da história”. Manifestantes pedindo intervenção militar, com cartazes 

escritos AI-5, camisetas com o rosto do torturador Brilhante Ustra, ou a frase “Ustra Vive”, não são história. 

A dor e o sofrimento de quem teve um familiar torturado, morto, desaparecido não são história. 

Autoridades públicas exaltando a repressão do regime militar, inclusive a tortura, a censura de livros, exposições, 

perseguição e morte de jornalistas, como Dom Phillips, não são história.

Os abusos da PM paulista na operação na Baixada Santista, o caso Amarildo, Marielle e Anderson, a absolvição de militares 

que mataram o músico Evaldo, a herança de uma sociedade escravocrata, o genocídio indígena, não são história, 

mas efeitos da impunidade do passado, de uma sociedade violenta e da falta de memória e covardia de quem deveria liderar.

A tentativa do golpe de 8 de janeiro não teria acontecido se não varrêssemos para debaixo do tapete a tragédia brasileira. Não é apenas por conta de militares legalistas que o Brasil tem uma democracia resguardada, é pelo passado de que ainda não nos esquecemos, inclusive a Comissão Nacional da Verdade, mas que futuras gerações podem achar que é história.

Quem é Vicktor Orbán, o fascista húngaro que quer asilar o fascista brasileiro Jair Bolsonaro?

Estudo de uma ultradireita peculiar: sem criar um Estado policial nem cancelar eleições, premiê húngaro submeteu sistema político-eleitoral, Judiciário e mídia – até asfixiar a oposição. Por que alguns sonham com a exportação do modelo?

Glauco Faria, Outras Palavras (expandir)

Milhares de pessoas protestaram em Budapeste nesta terça-feira (26), em uma área próxima ao Parlamento. Pediam a renúncia do primeiro-ministro Viktor Orbán e de seu procurador-geral. A manifestação foi organizada após a divulgação de um áudio feito por um ex-funcionário e ex-aliado do governo, Péter Margyar, em um diálogo com sua esposa e ex-ministra da Justiça, Judit Varga, apontando para uma tentativa de adulteração de documentos para acobertar um caso de corrupção envolvendo Pál Vílner, ex-secretário de Estado do Ministério da Justiça.

As manifestações são incomuns na Hungria atual, país em cuja embaixada Jair Bolsonaro se hospedou entre os dias 12 e 14 fevereiro e para o qual, suspeita-se, poderia pedir asilo político caso avancem os processos que podem condená-lo à prisão. Mas o que haveria por trás desta preferência húngara do ex-presidente? E por que Orbán desponta, nos últimos meses, como alguém relevante, na caterva de líderes da “nova” ultradireita?

A história começa em 2010. Ao longo dos últimos 14 anos, Viktor Orbán construiu uma espécie de “fascismo soft”, para usar a expressão de Zack Beauchamp, repórter sênior do Vox. “A oposição não foi esmagada – mas não consegue respirar”, relata o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring (confira entrevista concedida por ele ao Outras Palavras). Um conjunto de mudanças institucionais fechou o regime, submetendo o sistema eleitoral, o Judiciário e a mídia ao controle autoritário do primeiro-ministro e de seu partido, o Fidesz. Uma atividade intensa nas redes sociais, com ampla divulgação de fake news, ampliou este controle e laços especiais da presidência com certos empresários garantiram o financiamento do esquema – em troca de favores.

Como resultado, Orbán conseguiu formatar um modelo autoritário com aparência aparentemente legal, algo que não é exatamente novo e que vem se tornando tendência em diversas partes do mundo. Um sistema que, embora sem recorrer a um Estado policial, “visa acabar com a dissidência e assumir o controle de todos os aspectos importantes da vida política e social”, segundo Beauchamp. É este governante que troca elogios com Bolsonaro e talvez o inspire. Vale conhecer ponto por ponto o sistema político que ele construiu.

Virando à (extrema) direita

Nem sempre Viktor Orbán esteve no espectro da extrema direita, diferentemente de outras lideranças do campo que chegaram ao poder nos últimos anos. Em 1998, quando foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, governou como um conservador relativamente convencional, postura que mudou após o Fidesz perder as eleições de 2002 para uma aliança comandada pelo Partido Socialista.

Assim como acontece com extremistas derrotados em diversos lugares, Orbán e seus seguidores nunca aceitaram a derrota de 2002 como legítima, acusando seus oponentes de fraude eleitoral. Em entrevistas, atribuiu ainda sua derrota aos meios de comunicação e à influência do capital internacional. “Orbán mudou visivelmente depois de 2002”, conta a ex-companheira de militância do primeiro-ministro húngaro, Zsuzsanna Szelényi, em Tainted Democracy. Após o resultado, foi criada uma rede de grupos de campanha (chamados “cívicos”) para promover os ideais do Fidesz, particularmente sobre questões de identidade nacional e religiosa.

“Depois de também perder a eleição subsequente em 2006, Orbán deixou de lado seus colegas mais moderados. Quando o governo liderado pelos socialistas após a eleição de 2006 cometeu um erro político – um discurso do primeiro-ministro vazou, no qual ele admitiu que o partido mentiu durante a campanha sobre a situação da economia – Orbán lançou um ataque político agressivo para removê-lo do poder”, lembra Szelényi em artigo publicado em 2015. “Ele polarizou o discurso público, retratando a coalizão do governo liberal de esquerda como o adversário da nação e promoveu agitação para mobilizar constantemente as ruas.” Embora seus esforços para remover a coalizão governista do poder não tenham tido sucesso àquela altura, o governo foi obrigado a ir para a defensiva.

Seguindo a mesma toada, ao realizar um discurso em 2009 em uma reunião a portas fechadas, Orbán anunciou a necessidade de “estabilidade política” na Hungria, pedindo a criação de um “campo político central” que governaria o país por até 20 anos, suprimindo na prática o bipartidarismo dominante até então.

Controle da mídia

“O primeiro movimento que o Fidesz fez após a vitória eleitoral em 2010 foi adotar a legislação da mídia. Naquela época, Orbán disse que essa medida era uma ‘correção’ para o viés esquerdista na mídia do país. As disposições legais então recém-adotadas, vagas e ambíguas, exigindo, entre outras coisas, que o conteúdo da mídia fosse ‘equilibrado’ e não incitasse o ódio ‘contra qualquer maioria’, visando a intimidação de jornalistas independentes”, contava, em 2017, o diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade (CMDS) da Escola de Políticas Públicas (SPP)da Central European University, Marius Dragomir.

Mas a estratégia era mais ampla e contava com a participação de empresários próximos de Orbán. Algumas fusões de grupos de comunicação foram negadas pelo Conselho de Mídia, enquanto outras eram estimuladas pelo governo, de acordo com o grau de “amizade” dos interessados com o Fidesz. Em agosto de 2017, os últimos cinco jornais independentes que haviam na Hungria foram comprados por oligarcas aliados do governo.

À época, a ONG Repórteres Sem Fronteiras criticou as negociações. “Essas últimas aquisições de apoiadores do partido no poder são mais uma confirmação do desejo do governo de controlar a mídia”, pontuava a entidade. “Este golpe para a independência da imprensa regional é o mais perturbador no período que antecede as eleições parlamentares.” Eleições estas vencidas pelo Fidesz.

Em 2018, no entanto, o plano deliberado de promover a concentração de mídia pró-governo atingiu seu ápice quando os investidores favoráveis a Orbán “doaram” 467 meios de comunicação, muitos dos quais originalmente adquiridos com empréstimos de bancos estatais, para a Central European Press and Media Foundation (Kesma), sob controle efetivo do governo. Isso facilitou a gestão financeira e o controle de conteúdo em relação aos meios de comunicação pró-governo. A formação da holding em um único dia foi tão bizarra que obrigou o governo a emitir um decreto classificando tais transações como de “importância estratégica nacional”, evitando qualquer questionamento em relação à lei da concorrência.

A publicidade estatal também foi direcionada de forma a sufocar os independentes. A emissora pró-governo TV2 recebeu 67% da publicidade estatal no setor de televisão, no ano de 2018, enquanto a independente RTL Klub, de alcance similar, recebeu apenas 1%, segundo relatório divulgado em 2019.

Mudando as regras do jogo

Uma reforma eleitoral promovida após a vitória do Fidesz em 2010 praticamente inviabilizou a vitória da oposição em vários locais do país. Na Hungria, os parlamentares são eleitos em sistema distrital misto e o partido refez os desenhos dos distritos adotando o chamado gerrymandering, comum em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, que realizam o chamado redistritamento após a divulgação dos censos. Muitas vezes governadores adaptam os territórios para favorecer o partido no poder, mas se nos EUA há duas legendas em disputa, o redesenho húngaro foi dominado unicamente pelos interesses de Orbán.

No sistema húngaro são dados dois votos, um para um representante do seu círculo eleitoral de origem e outro para um partido. Em 2014, após as mudanças, o Fidesz obteve 45% dos votos mas levou dois terços dos assentos, enquanto outros três partidos conseguiram 51% e ficaram com um terço. A legislação nova deu mais assentos no Parlamento aos círculos eleitorais (106) do que àqueles eleitos por lista (93). Isso deu mais peso aos distritos remodelados, ajudando na formação de um resultado absolutamente desproporcional em favor do partido governista, que teve 45% dos votos nos círculos eleitorais individuais em 2014 e ainda assim obteve 88% dos assentos.

Em uma análise publicada depois dos resultados daquela eleição, o economista Paul Krugman dissecou os dados e concluiu que a “maioria absoluta” conquistada então “veio de uma variedade de truques legais contidos nas leis que foram escritas pelo Fidesz, para o Fidesz”.

Ainda havia mais alterações sob medida para favorecer os que estavam e ainda estão no poder. “Outra mudança complicada feita pelo Fidesz foi dar dupla cidadania aos húngaros étnicos que nunca viveram na Hungria. Com a nova Constituição de Orbán, cerca de 600 mil húngaros étnicos que são altamente favoráveis à direita receberam o direito de voto, ao mesmo tempo em que foi muito mais difícil para os cidadãos húngaros que vivem no exterior participarem das eleições”, explicou a secretária do Tribunal Constitucional Federal Alemão e editora associada do Verfassungsblog, Anna von Notz, em artigo publicado após a terceira vitória do partido governista húngaro em 2018.

Ela pontua que a mudança mais impressionante foi a chamada “compensação vencedora”. Em sistemas eleitorais mistos, muitas vezes um voto para um único candidato que perde o distrito é usado para complementar os totais na lista do partido. No caso húngaro, foi criado um sistema do avesso. Além de ganhar o mandato individual, os votos excedentes em relação àquilo que o candidato precisava para ganhar vão para a lista. Ou seja, o partido que venceu o distrito (que, como vimos foi redesenhado em favor do Fidesz) ganha mais votos no cálculo da lista partidária.

“A fraude eleitoral pode não acontecer apenas no dia da eleição. Nas autocracias modernas, assim como as ferramentas da repressão são muito mais sofisticadas do que nas ditaduras clássicas, as formas de manipular a eleição não consistem apenas em falsificar os resultados. A situação eleitoral é pré-organizada para produzir o resultado que os incumbentes querem: é isso que é uma eleição manipulada”, apontam os pesquisadores Bálint Magyar e Bálint Madlovics, do Instituto de Democracia CEU, em seu relatório sobre as eleições húngaras de 2022.

Justiça de mãos atadas

Sistemas de Justiça em geral costumam ser alvo de partidos e regimes de extrema direita. Buscando ampliar seu raio de ação sem qualquer constrangimento legal, o objetivo é cercear a ação do Judiciário ou mesmo dominá-lo. Foi o que aconteceu na Polônia sob o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que promoveu, entre outras reformas no setor, normas dando ao Legislativo o poder de nomear integrantes do Conselho Nacional do Judiciário, órgão de supervisão dos magistrados, assim como a prerrogativa de escolher e destituir presidentes do Supremo Tribunal.

Na Hungria, o modelo de nomeação de juízes constitucionais, que incluía tanto o governo quanto a oposição, foi substituído por um novo processo assegurando que a vontade do partido no poder iria prevalecer. A mudança foi feita logo em 2010, quando Orbán assumiu, e foi aprovado ainda um aumento no número de titulares do Tribunal Constitucional, que passou de 11 para 15. Outra alteração se deu na escolha do presidente da Corte, que antes era definida por seus próprios integrantes e passou a ser feita por uma maioria de dois terços no Parlamento.

Com a redução do limite para aposentadoria compulsória de 70 para 62 anos, em 2013, o Fidesz já tinha a maioria dos membros do Tribunal. “É revelador, por exemplo, que dos 26 casos iniciados pela oposição e decididos entre 2014 e 2020, o Tribunal Constitucional constatou violações parciais da Constituição em apenas 2 casos, enquanto todas as outras moções foram completamente mal sucedidas”, aponta o pesquisador de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas e especialista sênior em Estado de Direito da União das Liberdades Civis para a Europa, Viktor Z. Kazai, em artigo.

Kazai destaca ainda que, nos últimos sete anos e meio, a presidência da Corte ficou nas mãos de Tamás Sulyok, hoje presidente do país escolhido pelo Parlamento, após a renúncia de Katalin Novak, evidenciando a ligação política entre o Fidesz e o magistrado. “E é um sinal claro da falta de independência e autonomia do Tribunal o fato de este ter quase invariavelmente decidido a favor dos partidos governantes em casos politicamente sensíveis.”

Inúmeras outras mudanças foram feitas para ampliar o domínio do governo sobre o Judiciário. Em 2018, o Parlamento aprovou um projeto dando ao ministro da Justiça a palavra final sobre a nomeação, promoção e salário dos juízes. Por conta destas iniciativas, instituições da União Europeia implementaram processos contra o governo húngaro que bloquearam recursos para o país, existindo até mesmo a possibilidade de a Hungria perder seus direitos de voto na UE.

Sob pressão, Orbán promoveu em 2023 novas reformas buscando atender parte das demandas do bloco em relação à independência do sistema de Justiça. Mesmo consideradas insuficientes, as alterações fizeram com que a Comissão Europeia desbloqueasse em janeiro 10,2 bilhões de euros do Fundo de Coesão, destinado a ajudar os países a manter sua infraestrutura nos padrões da União Europeia. Trata-se de uma ajuda fundamental para a Hungria, que terminou o ano de 2023 com uma inflação de 17% e perspectiva de contração do PIB de 0,8%.

Modelo exportação?

Nos discursos do Fidesz e de seu líder Viktor Orbán, por conta das restrições e dos processos em curso sobre o governo húngaro, o inimigo de ocasião hoje é a União Europeia. Mas, como em todo espectro da extrema direita, este é um papel que muda conforme os ventos políticos. Os comunistas já foram os inimigos principais, assim como os social-democratas, ONGs, George Soros, imigrantes… A estratégia clássica utilizada para manter sua base mobilizada.

As redes sociais na Hungria também são um instrumento importante para difundir o discurso de ódio e fake news. A organização Human Rights Watch entrevistou especialistas em privacidade e proteção de dados, integridade eleitoral e campanhas políticas, além de empresas envolvidas em campanhas baseadas em dados para analisar a campanha eleitoral de 2022. Segundo eles, as plataformas de mídia social desempenharam um papel importante, embora complexo, nas eleições de 2022.

“Por um lado, os anúncios políticos online criaram novas oportunidades para as campanhas da oposição chegarem aos eleitores num ambiente onde estes estão em grande parte excluídos dos espaços publicitários tradicionais. Por outro lado, uma vez que as leis nacionais que regulam os limites de despesas de campanha não estão sendo aplicadas aos anúncios online, a disponibilidade de publicidade no Facebook, em particular, beneficiou tremendamente o Fidesz, que com os seus recursos descomunais gastou mais do que a oposição”, diz a entidade.

A investigação também descobriu algo grave, a coleta de dados por parte do governo para uso político-eleitoral. “A Human Rights Watch descobriu que o governo reaproveitou os dados coletados de pessoas que se inscreveram para a vacina contra a covid-19, solicitaram benefícios fiscais ou se registraram para ser membros de uma associação profissional, para espalhar as mensagens de campanha do Fidesz. Por exemplo, as pessoas que enviaram seus dados pessoais a um site administrado pelo governo para se registrar para a vacina contra a covid-19 receberam mensagens políticas destinadas a influenciar as eleições em apoio ao partido no poder.”

O modelo Orbán conseguiu até agora ser vitorioso com essa mescla de mobilização permanente em defesa de valores tradicionais, medidas autoritárias e de controle que minam qualquer oposição, conseguindo chegar a uma parcela da população empobrecida pela adoção de medidas neoliberais e privatizantes na primeira década dos anos 2000.

“O Fidesz formou um pequeno grupo de capitalistas próximos do governo, ao mesmo tempo que prossegue com uma política muito antissindical”, disse ao Le Monde o economista da Universidade de Viena Joachim Becker. Como o capital quase nunca se importa com o grau de democracia de um país, Orbán conseguiu atrair investimentos da Audi, BMW e Opel, que criaram fábricas no país, gerando empregos importante no contexto húngaro pós-crise de 2008.

“Uma das partes mais desconcertantes de observar o fascismo húngaro soft de perto é que é fácil imaginar o modelo sendo exportado. Enquanto o regime de Orbán surgiu da história e da cultura política únicas da Hungria, seu manual para repressão sutil poderia, em teoria, ser administrado em qualquer país democrático cujos líderes tenham tido o suficiente da oposição política”, pontua Zack Beauchamp. Evitar a exportação do “modelo Orbán” para o resto do mundo implica em discutir os mecanismos da democracia e o que ela oferece à boa parte do excluídos social e economicamente, hoje seduzidos pelas promessas e soluções simples dos extremistas.

Glauco Faria

Glauco Faria é jornalista do Outras Palavras. É ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual. Co-autor do livro Bernie Sanders: A Revolução Política Além do Voto (Editora Letramento). Leia outros artigos no Substack (https://glaucofaria.substack.com/)

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