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Sala Giordano Bruno

Pele negra, alucinações brancas: capitalismo, IA e racialização

Se as máquinas-ferramentas digitais e os seus padrões biométricos da produção virtual de imagens não são capazes de controlar os vieses raciais e de gênero de seus bancos de dados, podemos confiar nelas?

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Deivison (Nkosi) Faustino e Walter Lippold, Boitempo

Registros inéditos do SNI: 300 mil brasileiros espionados na ditadura

Antecessor da Abin, entenda como Serviço Nacional de Informações buscou manter ilegalidades ao fim do regime de exceção

Lucas Pedretti e Thiago Domenici, Pública (expandir)

Nos primeiros dias de março de 1985, pouco antes de José Sarney assumir a Presidência da República, o temido Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um estudo sigiloso, “As informações nos regimes democráticos” em que comparava a atuação de agências de inteligência em democracias e em regimes totalitários, caso do próprio SNI. 

Na avaliação do órgão, empregar nas democracias “certos métodos” poderia levar a “violações do direito individual e a prática de atos abusivos”. Além disso, o documento diz que as buscas de informações estariam “sujeitas a opinião pública e legislação mais liberais tornando-se difícil estabelecer um limite onde as ‘legítimas aspirações do Estado terminam e começam os direitos de privacidade dos cidadãos’”.

O documento fala mais. Avalia que, justamente na ausência de opinião pública e de partidos políticos de oposição, os Serviços de Informações podiam atuar sem nenhum “embaraço ético” e sem “impedimento legal” nos regimes totalitários. E conclui: “Este é o aspecto básico que diferencia os Serviços de Informações do mundo inteiro”. 

Esse é apenas um relatório de um conjunto de documentos inéditos encontrados no acervo do SNI pela Agência Pública, custodiado hoje no Arquivo Nacional, que revelam como o órgão se movimentou politicamente para manter suas atividades de arapongagem mesmo após a saída do último general-ditador da Presidência da República.

POR QUE ISSO IMPORTA?

Aos 60 anos da ditadura militar, novos documentos jogam luz na atuação do maior órgão de espionagem da ditadura ao fim do regime de exceção

Mais de 300 mil brasileiros foram fichados durante a ditadura pelo SNI, muitos dos quais foram presos, torturados e assassinados

O nascimento do “monstro”

Criado imediatamente após o golpe de Estado de 1964, que completa 60 anos no próximo dia 31 de março, o SNI se tornou rapidamente o centro do complexo aparato repressivo estruturado pelos militares. Instituído pela Lei nº 4.341, de 13 de junho de 1964, o objetivo legalmente previsto para o órgão era “assessorar o Presidente da República” em relação às atividades de informação e contra-informação”. Na prática, os agentes do SNI desepenhavam todo tipo de ação vinculada à repressão política, participando de operações de rua e de sessões de tortura.

O idealizador do SNI foi o general Golbery do Couto e Silva, um dos principais articuladores do golpe de 1964. Golbery chefiou o órgão no início do regime e foi sucedido por militares que posteriormente chegariam ao centro do Poder Executivo federal, como Emílio Garrastazu Médici e João Baptista de Oliveira Figueiredo, evidenciando o peso político que o SNI possuía.

A historiadora Priscila Brandão, autora do livro SNI e Abin: uma leitura dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX, explica que, após sua criação, o órgão se expandiu rapidamente. “O SNI vai, igual a um polvo, se espalhando pelo Estado. Onde ele acha que precisa, ele cria uma agência nova”, explica a historiadora. Logo, o serviço tinha braços espalhados nos ministérios civis, nas universidades e nas empresas públicas, além de se articular com os serviços de informações das três Forças Armadas, com o Conselho de Segurança Nacional e com as secretarias de Segurança estaduais.

Esse conjunto de organismos de espionagem e repressão constituía uma rede altamente capilarizada e autônoma de arapongagem. Com isso, o regime conseguia monitorar intensamente toda e qualquer movimentação vista como uma ameaça à segurança nacional pelos militares. Como a Doutrina de Segurança Nacional, substrato ideológico dos militares, era baseada em uma visão de mundo altamente paranoica e autoritária, isso significou, na prática, que praticamente todos os setores da sociedade foram alvo de algum tipo de espionagem no período. 

Um estudo feito por especialistas do Arquivo Nacional de Brasília em 2008 chegou ao número de mais de 300 mil brasileiros fichados durante a ditadura pelo SNI, muitos dos quais foram presos, torturados e assassinados. Mas, com o fim do regime, colocou-se a questão sobre o que fazer com o órgão. O próprio Golbery vaticinou: “Criei um monstro”. A constatação revelava as dificuldades que a nascente democracia teria para desmontar um aparelho tão poderoso, detentor de dados sensíveis sobre todas as lideranças políticas do período. 

“Entulho autoritário”, SNI tentou sobrevida 

No documento “Principais abordagens da imprensa sobre o Sistema Nacional de Informações”, o SNI se mostra incomodado com as críticas que se avolumavam na imprensa nacional sobre o seu destino. Sem meias palavras, o órgão registra que “foi criado sob um regime de censura que perdurou até 1977, imunizando-o contra críticas públicas”. Segundo outro trecho, causava “descontentamento muito profundo aos integrantes do SNI a intensa crítica ao órgão que, nos últimos anos, e agora mais particularmente na transição do governo federal, vem sendo externada através da imprensa”. 

E o caminho apontado no documento mostra o que o SNI planejava fazer: “o que importa é a mudança da imagem pública”. A escolha dos arapongas, mostra o documento, não era a de passar a atuar nos marcos do estado de direito. Mas, sim, encontrar formas de garantir que sua “imagem pública” não fosse atingida. 

Na redemocratização, a ideia de que a saída da ditadura deveria ser feita sem rupturas era a dominante. No período, defendeu-se uma “reconciliação” marcada pelo “esquecimento” e sem “revanchismo” perante os crimes e atrocidades dos militares.

As poucas iniciativas que pediam medidas de reconhecimento das violências da ditadura ou reformas institucionais – como projetos de lei que buscavam extinguir o SNI – eram monitoradas de perto pelo órgão. É o que revelam relatórios que recebiam títulos como “Campanhas pela extinção do Sistema Nacional de Informações e pela revogação de leis ditas ‘arbitrárias’, movidas por organizações subversivas de ideologia comunista” ou “Campanhas revanchistas e pela extinção do Sisni”. 

“As organizações comunistas atuantes no Brasil vêm pregando em seus documentos, bem como em todos os atos de que participam ou promovem, a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI), a revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN) e o desmantelamento do Sistema Nacional de Informações (Sisni)”, sintetiza um desses relatórios.

Em um relatório mais detalhado, de maio de 1987, o SNI apontava que “o acompanhamento diário da Grande Imprensa Nacional – GIN, revelou que são publicados artigos relacionados com o Sisni”. O documento mostra que o serviço buscou identificar possíveis fontes de jornalistas de veículos como a revista Veja, a Folha de S.Paulo e o Jornal do Brasi

Em dezembro de 1987, novo relatório listava artigos e reportagens publicadas pela Veja e pelo Estadão sobre o envolvimento do SNI com a repressão política da ditadura. “Os artigos em questão”, concluía o araponga autor do informe, “pelas características com que se revestem, sobretudo quanto ao fato de se tentar volver, ao momento atual, fatos atribuídos ao SNI no início da década de 70, vêm desgastando a imagem do órgão”. Assim, o agente demonstrava “preocupação quanto aos desdobramentos que poderão advir em decorrência dessa campanha” que, segundo o documento, tentava “fomentar no seio da opinião pública uma imagem negativa do Órgão —– com vistas ao seu total descrédito – em que pese a relevância, seriedade e competência do trabalho de assessoramento que este vem desenvolvendo”.  

Ao longo da redemocratização, já sob um governo civil, o SNI atuava não para se adequar aos parâmetros democráticos do novo regime, mas sim para “neutralizar” o que eles consideravam ameaças à sua imagem. Essa atuação ganharia contornos ainda mais intensos durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC

O lobby do SNI na redemocratização

Entre os documentos localizados pela Pública estão relatórios que comprovam como o SNI buscou ativamente parlamentares que integravam a ANC para apresentar propostas legislativas a serem incluídas na nova Constituição. Os próprios parlamentares foram espionados pelo SNI durante a ANC.

Priscila Brandão explica que, quando os trabalhos da ANC ainda estavam na fase das comissões temáticas, o colegiado responsável por discutir temas de inteligência e defesa ficou sob comando de Ricardo Fiúza, parlamentar próximo dos militares. “Nada do que foi proposto fora do interesse deles foi aprovado”, sintetiza a historiadora.

Ocorre que havia outra frente de batalha: o colegiado em que seriam discutidos os direitos fundamentais. Foi na Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher que se debateram os artigos que deveriam garantir o direito à privacidade, ao sigilo de correspondência, e ao habeas data – instituto que prevê que todo cidadão pode requisitar ao Estado as informações que os entes públicos detêm sobre ele

Naquele momento, em junho de 1987, o SNI produziu um primeiro relatório com um teor semelhante ao de um estudo interno. Cada um desses artigos era analisado e os agentes apresentavam diferentes sugestões, em ordem de prioridade. 

No artigo que salvaguardava o “sigilo da correspondência e das comunicações em geral, salvo autorização judicial”, o SNI sugeriu suprimir a expressão “salvo autorização judicial”. Assim, buscava abrir caminho para manter a prerrogativa de, à revelia de decisões do Poder Judiciário, poder interceptar comunicações privadas. 

A agência propunha também eliminar o artigo que previa que “O Estado não poderá operar serviços de informações sobre a vida íntima e familiar das pessoas”. Caso não fosse possível suprimir todo o trecho, o SNI sugeria que se adicionasse, ao final da redação, a seguinte ressalva: “salvo quando imprescindíveis à salvaguarda dos maiores interesses da Nação”. 

O SNI sugeriu, ainda, a exclusão do artigo que previa o habeas data. Na justificativa apresentada, os arapongas afirmavam que “a excessiva liberalidade para obtenção de dados, disponíveis em órgãos do Estado, levaria ao perigo de tornar vulneráveis às atividades sigilosas de interesse da Nação”. 

Esse estudo feito pelo SNI foi seguido pela implementação de uma estratégia de lobby e atuação política da agência para fazer valer seus interesses.

Em agosto daquele ano de 1987, a Constituinte já se encontrava em uma etapa posterior. Corriam os trabalhos da Comissão de Sistematização, que tinha o objetivo de apresentar o primeiro anteprojeto de texto para a nova Carta Magna. Nesse mês, o SNI produziu um novo relatório, detalhando o lobby organizado pela agência.

Segundo o documento, “durante a fase de apresentação de Emendas ao Anteprojeto da Comissão de Sistematização”, o órgão “promoveu articulações com diversos Senadores e Deputados Federais, com vistas a defender os interesses inerentes às suas atividades”. 

O texto detalha que foram apresentadas 101 emendas por 13 constituintes, buscando suprimir ou alterar 12 dispositivos do texto. O documento conclui que “como coroamento, no Substitutivo do Relator, obteve-se resultados satisfatórios em 08 dispositivos”. 

O relatório segue, então, detalhando os artigos que o SNI tentou alterar. Para além daqueles já presentes no estudo anterior, o documento revela um novo dispositivo que incomodava os arapongas: o que declarava a tortura um crime de lesa-humanidade. Por meio de uma articulação com o deputado Ottomar Pinto, um militar então filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o SNI tentou excluir o texto do anteprojeto de Constituição.

Mesmo obtendo resultados “satisfatórios” nessa etapa, o SNI seguiu organizado para os momentos seguintes da Constituinte. 

Na virada de 1987 para o ano seguinte, uma mudança importante ocorreu na Constituinte: o surgimento do bloco suprapartidário intitulado Centrão. A articulação tinha como objetivo barrar o que os parlamentares mais conservadores entendiam como excessos liberalizantes do texto que se desenhava até aquele momento. 

Assim como as Forças Armadas, o SNI viu no Centrão um aliado de primeira hora. Entendendo a esquerda como seu principal adversário na ANC, a agência passou a se articular diretamente com o grupo. É o que revela um outro relatório, de janeiro de 1988, já após a conformação do Centrão e apresentação de um primeiro anteprojeto pelo bloco.

Segundo o documento, “o Projeto de Constituição do Centrão, apresentado sob a forma de Emendas, em 14 Jan de 88, atende aos interesses do Serviço”. Mas os arapongas faziam ressalvas: “Não obstante, os seguintes dispositivos merecem algum reparo, pois não atenderam integralmente às solicitações que fizemos”.

O órgão apontava, por exemplo, que o artigo que determinava a garantia da proteção da vida privada dos cidadãos representaria uma “inibição” à atividade policial. Já ao analisar o texto que protegia a inviolabilidade das correspondências e das comunicações, o relatório afirmava que ainda pretendia alterar os termos do artigo.

O trecho é revelador de que o SNI seguiria atuando na derradeira etapa da Constituinte: a fase de Plenário. Nos documentos localizados pela Pública, não há detalhes de como operou o lobby nesse momento. Mas os relatórios evidenciam como a agência buscou, até o último instante da Constituinte, eliminar do futuro texto constitucional elementos basilares de um estado de direito – como a garantia da proteção da intimidade e a inviolabilidade das comunicações privadas.

Foram dezoito meses até o dia 5 de outubro de 1988 para que a Constituição Cidadã fosse promulgada pelo Congresso Nacional

Apesar de a nova Carta Magna trazer algumas das garantias que o SNI queria simplesmente eliminar, a agência sobreviveu à mudança de regime. “Nós passamos por uma transição política e o poder civil não foi capaz de peitar o poder militar a ponto de extinguir o SNI”, aponta Brandão. 

Sua extinção ocorreria apenas em 1990, nos primeiros dias do governo Collor. “Não necessariamente porque o Collor tinha um grande projeto para a atividade de inteligência”, esclarece a historiadora. “Quando Collor era candidato, o então chefe do SNI deu um chá de cadeira de cinco horas nele. Então sua atitude de extinguir o SNI está vinculada a uma vingança pessoal.”  

Tampouco o contexto de criação de um novo órgão de inteligência seria marcado por discussões profundas sobre o tema. “A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi criada em 1999 como resultado de um debate congressual muito pobre”, explica Brandão. Inicialmente, o governo Fernando Henrique Cardoso buscou estabelecer a agência por meio de Medida Provisória em 1995. Diante de críticas do Congresso, apresentou um Projeto de Lei em 1997. “Mas haverá pouquíssimos debates para se chegar à redação final da lei”, registra a historiadora.

O resultado foi uma lei caracterizada pela especialista como “muito ruim”, por trabalhar com um conceito “extremamente amplo” sobre o que é a atividade de inteligência, o que abriria caminho para distorções da atividade da agência. Além disso, Brandão explica que, até hoje, a doutrina que o órgão segue é influenciada pelos termos da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura. 

“Então esse é o grande problema”, sintetiza Priscila Brandão. “Tem uma percepção do indivíduo, do cidadão brasileiro como inimigo, como alguém que pode ter os seus direitos desrespeitados.”

Edição: Thiago Domenici

# Link para acesso à matéria original da Pública

A crítica ao identitarismo
'A Esquerda Não É Woke' refuta tribalismo e redução de pessoas a raça e gênero que marcam o âmbito cultural do país. Francisco Bosco, Folha (expandir)

Francisco Bosco

Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de "O Diálogo Possível: Por uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro"

[RESUMO] Susan Neiman escreve com admirável clareza e perspicácia, mirando um público mais amplo, sobre como o movimento identitário perdeu de vista a defesa da diversidade e enveredou por um tribalismo antes exclusivo da direita reacionária, segundo o qual marcadores acidentais (como raça e gênero) são mais definidores que princípios e escolhas morais das pessoas, defende autor. Para ele, a esquerda deveria refutar esses traços para reconquistar a sociedade para o aprofundamento da democracia.

"A Esquerda Não É Woke" é um livro eminentemente filosófico: investiga as premissas teóricas de fundo que, por vezes à revelia de suas intenções —e, em geral, de sua consciência—, estão operando no conjunto de premissas manifestas e métodos políticos dos chamados "woke", ou, no Brasil, identitários.

Susan Neiman escreve com admiráveis clareza e percuciência, reivindicando para si uma herança iluminista, tanto em relação a perspectivas fundamentais —o universalismo, o anticolonialismo, o exercício da crítica— quanto à estratégia discursiva de mirar um público mais amplo que aquele versado nos jargões das novas teorias críticas, globalmente suspeitas de uma espécie de elitismo liberal.

Mais adiante retomo as afirmações feitas acima sobre o Iluminismo, que certamente já terão deixado de orelha em pé os leitores da vasta fortuna crítica contemporânea sobre as contradições e hipocrisias dos iluministas.

Por se dedicar às premissas subjacentes ao discurso identitário, considero que o livro de Neiman cai como uma luva no debate brasileiro, no sentido de contribuir para uma tarefa difícil e necessária: desativar a vista grossa da esquerda para comportamentos identitários politicamente degradantes, geralmente percebidos como "excessos" ou casos irrelevantes quando comparados às injustiças sob todos os aspectos mais graves contra as quais se erguem.

LEIA ENTREVISTA COM SUSAN NEIMAN

É essa atitude intelectual que impede o reconhecimento do identitarismo como um movimento que não se confunde com a defesa da diversidade e a exigência de reconhecimento e plenos direitos a quaisquer minorias.

Neiman demonstra que tais supostos excessos são, na verdade, consequências lógicas das premissas subjacentes adotadas. Sendo assim, não produzem episódios isolados, mas um comportamento regular.

Quanto ao argumento da "irrelevância comparada", isto o digo eu mesmo, quem o defende afirma automaticamente uma justiça utilitária, disposta a sacrificar a justiça para indivíduos concretos em prol do avanço de determinados grupos. Porém ambos, utilitarismo e avanço, devem ser questionados.

O ponto central de Neiman é o conflito universalismo versus tribalismo. Ela argumenta que a esquerda é fundamentalmente universalista, enquanto o tribalismo é propriedade exclusiva da direita conservadora.

Bom, era. Os identitários abraçaram um tribalismo progressista, para o qual são mais decisivos os "acidentes com que nascemos" que "os princípios que sustentamos".

No lugar do princípio da solidariedade moral ativa, por meio da qual qualquer sujeito poderia se juntar a outros no sentido de transformar a sociedade em nome de objetivos universalistas comuns, o identitarismo se caracteriza por considerar que a diferença humana fundamental é aquela "entre nossos iguais e todos os demais".

Traduzindo para a dinâmica social, como negar a forte tendência tribalista no abuso da noção de lugar de fala, segundo o qual qualquer sujeito não inscrito em um marcador de minoria estaria condenado a reproduzir os interesses de sua posição de origem?

Desse modo, a menos que reitere "ipsis litteris" os enunciados em jogo, será tachado de racista, sexista etc. Neiman se vê obrigada, nesse ponto, a lembrar: "Dizer que histórias e geografias nos afetam é trivial. Dizer que nos determinam é falso".

Eu me vejo obrigado a lembrar que esse tipo de abuso dá o tom das discussões, há quase uma década, sobretudo em redes digitais, onde está o nervo do debate público.

No Brasil, me permitam aplicar os argumentos de Neiman à nossa realidade, o tribalismo identitário se manifesta com força no âmbito cultural. Não há espaço aqui para discutir a questão da mestiçagem ou os limites do culturalismo brasileiro. Mas vejamos, por exemplo, a questão da apropriação cultural.

O identitarismo transformou um ponto pertinente (a assimetria de poder simbólico e financeiro entre pessoas negras e brancas diante de dinâmicas culturais mestiças) em uma polícia de comportamentos e interações sociais, com bases antropológicas falsas.

Seria preciso parar de uma vez por todas com essa intimidação contraprodutiva de dizer que "branco tem que ir no samba com respeito", que "não pode usar fantasia de mulher" e afins. Para isso, contudo, seria preciso primeiro que a esquerda reconhecesse que tais práticas existem e são degradantes.

Voltando ao livro, outra forma de tribalismo consiste em essencializar os sujeitos, isto é, reduzi-los a seus marcadores acidentais. A essencialização é uma espécie de condenação moral e política; ela impede os sujeitos de transcenderem sua origem por meio de suas escolhas.

Aqui, é a essência que precede a existência. Sartre, insuspeito de posições liberais, se reviraria no túmulo. Yascha Mounk, em livro ainda não publicado no Brasil, "The Identity Trap" (a armadilha da identidade), mostrou que a essencialização foi uma estratégia defendida por Gayatri Spivak —que depois a recusou, ao avaliar seus efeitos.

Neiman não desconhece os limites dos discursos universalistas. Ao contrário, ela é uma grande leitora do Iluminismo. Não ignora os preconceitos de Kant, as contradições concretas de Locke, o sexismo de todos eles. No entanto, considera que o momento político requer antes lembrar as inestimáveis contribuições desses e de outros filósofos: "Pensadores iluministas inventaram a crítica do eurocentrismo e foram os primeiros a atacar o colonialismo, com base em ideias universalistas".

É preciso, ela defende, assimilar suas ferramentas, mesmo que seja para montar outra casa, que eles mesmos, homens de seu tempo que eram, não foram capazes de construir.

Além de abraçarem o tribalismo em detrimento de reformarem o universalismo, os identitários, para a filósofa americana, seguem uma perspectiva incapaz de distinguir justiça e poder. Aqui, as maiores influências são Michel Foucault e Carl Schmitt. O francês tinha, como se sabe, uma perspectiva pervasiva e totalizante do poder e desconfiava de quaisquer discursos em nome da justiça, nos quais costumava detectar uma forma astuciosa de poder.

Já Schmitt, ideólogo do Terceiro Reich, considerava que a ideia de uma "democracia da humanidade" era uma balela nunca realizada em lugar algum. Só haveria democracia homogênea, comandada por um grupo social. O tribalismo schmittiano não reconhece a noção de justiça.

Ora, essas ideias são sempre atraentes à medida que qualquer sociedade está mais ou menos longe do ideal de uma democracia universal e destituída de instrumentos de governo dos cidadãos.

"O que torna ambos interessantes para os pensadores progressistas de hoje é a sua hostilidade compartilhada ao liberalismo e seu compromisso com desmascarar as hipocrisias liberais", observa Neiman. Bem, de acordo quanto ao desmascaramento; o problema é a alternativa apresentada.

Justamente —e esse é o terceiro eixo do livro—, a alternativa é uma desconfiança sistemática do progresso, uma recusa a olhar para a história humana desde o Iluminismo e reconhecer avanços morais e políticos, vendo apenas a continuação, quando não o agravamento, das formas de poder e controle.

Aqui Foucault reina. Por isso, é o filósofo mais criticado no livro. Para Neiman, o pensamento dele é insidioso, como neste trecho em que emula suas ideias: "Você acha que fazemos progresso rumo a práticas mais bondosas, mais liberadoras, mais respeitosas da dignidade humana? Dê uma olhada na história de uma ou duas instituições. O que aparentava serem passos rumo ao progresso acaba por serem formas mais sinistras de repressão".

Essa perspectiva resulta tão reacionária "quanto qualquer coisa que Edmund Burke ou Joseph de Maistre escreveram". De novo, apontar limites e pressionar por sua superação é uma tarefa da esquerda. Não reconhecer os avanços democráticos nas questões de raça e gênero nos últimos 60 anos aprofunda as divisões sociais, recusando o reconhecimento da justiça em privilégio do interesse de grupos sociais estáticos.

Por fim, um último princípio emerge no apagar das luzes do livro. Neiman o chama de "compromisso com a dúvida". Nesse ponto, reencontramos a tendência do identitarismo de saltar das críticas e intenções acertadas para métodos iliberais e potencialmente injustos. "É um sinal de progresso moral que não mais desqualifiquemos histórias de vítimas, como fizemos por tanto tempo."

O mesmo, contudo, não se pode dizer do fato de que "tenhamos passado de uma irrefletida desqualificação para uma irrefletida aceitação". Essa supressão do intervalo cognitivo e social entre denúncia e julgamento, a supressão do que poderíamos chamar de um devido processo moral, é talvez a marca mais distintiva do identitarismo.

A esquerda que faz vista grossa ao identitarismo deveria dar um passo atrás e reconhecer a existência sistemática dos traços acima descritos. A partir daí, uma nova etapa do debate poderia se abrir.

Alguns, talvez por considerar que a "liberdade positiva" (democrática) deva prevalecer mesmo às custas da "liberdade negativa" (liberal), defenderiam as premissas e métodos identitários.

Outros os recusariam e tentariam separar o joio do trigo: lutemos por diversidade, pleno reconhecimento e igualdade, nos âmbitos social e jurídico, para quaisquer minorias (é um falso problema decidir entre a prioridade da dimensão econômica ou do reconhecimento), mas descartemos o tribalismo, a essencialização, o dogmatismo e os julgamentos sumários.

Esse caminho é melhor em si mesmo e tem melhores chances de reconquistar a sociedade para o aprofundamento da democracia.

A ESQUERDA NÃO É WOKE

O comunista favorito da direita

Ex-ministro de Lula e Dilma, Aldo Rebelo cruzou o espectro ideológico, se aninhou com o bolsonarismo e retornou ao jogo político em São Paulo. Pedro Venceslau, piauí (expandir)


Aldo Rebelo andava afastado da política. Candidatou-se ao Senado em 2022 pelo PDT de São Paulo, mas frustrou-se: terminou em sétimo lugar, com 63 mil votos (o eleito, Marcos Pontes, do PL, teve 10,7 milhões). O velho comunista concluiu que, aos 68 anos, era hora de voltar para Alagoas, seu estado de origem. Escolheu, no ano passado, um apartamento em Maceió para morar com a esposa, a jornalista Rita Poli. Calculou que viveria bem com a aposentadoria de deputado (21,4 mil reais líquidos) e eventuais colaborações com a imprensa. Queria, além de tudo, estar perto da mãe, que já tem 85 anos de idade. Mas todos os planos mudaram quando ele recebeu uma ligação.

“Eu disse ao Aldo: ‘Em vez de ir pra Alagoas, você deve ficar em São Paulo e integrar o secretariado do Ricardo [Nunes]. Você daria um tamanho especial pro governo’”, relembra o ex-presidente Michel Temer, que desde que deixou o Palácio do Planalto, em 2018, tornou-se um facilitador de todo tipo de costura política, transitando com desenvoltura entre as fileiras do bolsonarismo e do MDB. “Depois avisei ao Ricardo que o Aldo iria visitá-lo.”

Rebelo, segundo ele próprio recorda, disse que pensaria a respeito. Havia muito na balança: a mãe, a esposa, o sertão alagoano, por onde gosta de cavalgar. Mas era um cerco: depois de Temer, vieram o presidente do MDB, Baleia Rossi, o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), o ex-deputado federal Carlos Marun (MDB-MS). Em questão de dias, todos telefonaram para Rebelo. Queriam que ele considerasse o convite e conversasse com Nunes.  

Na posição de comunista dissidente (deixou o PCdoB em 2017), filiado a um partido de centro-esquerda (entrou para o PDT em 2022), amigado com o emedebismo (desde a juventude) e afinado com pautas da extrema direita (fato mais recente), Rebelo é uma peça particularmente ambígua da política nacional. Por isso interessava ao prefeito Ricardo Nunes (MDB-SP), figura do Centrão paulistano que, para se reeleger em outubro, quer atrair eleitores de esquerda ou indecisos sem melindrar, com isso, sua base de apoio bolsonarista.

“O Aldo ameniza essa coisa de que o Ricardo é o nome da direita”, atesta Temer. Depois de enviar emissários do MDB para falar em seu nome, o prefeito, enfim, ligou para Rebelo no final do ano passado e o convidou para uma conversa. “Só vou para São Paulo em fevereiro”, respondeu o pedetista, que estava passando férias em Alagoas. “Preciso conversar com você antes disso”, insistiu Nunes. Rebelo deu o braço a torcer. Na primeira semana de janeiro estava na capital paulista, tomando cafés com Temer, Rossi e Nunes.

Quando Marta Suplicy deixou a Secretaria de Relações Internacionais, filiando-se ao PT, Rebelo estava a postos para ocupar a vaga. Recebeu o convite formal de Nunes, aceitou, mas pediu um pouco mais de tempo para organizar sua vida pessoal. Em fevereiro, tomou posse numa cerimônia feita sob medida para passar um recado político. A “frente ampla” que Nunes sonha levar para a eleição se materializou na sede da Prefeitura. Além de Temer, estavam lá o senador bolsonarista Ciro Nogueira (PP-PI), o secretário de Governo e Relações Institucionais do estado de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), o governador de Alagoas, Paulo Dantas (MDB), o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), mais uma trupe de deputados e sindicalistas.  

Rebelo e Nunes se conhecem há muitos anos. Conviveram no MDB nos estertores da ditadura. Rebelo, na época, era um líder em ascensão no PCdoB, partido que ainda era clandestino e funcionava dentro da única legenda de oposição aos militares. Nunes, por sua vez, era um jovem militante em Santo Amaro, distrito de São Paulo. Seguiram caminhos completamente diferentes na vida. Em Brasília, Rebelo presidiu a Câmara dos Deputados e assumiu quatro ministérios nos governos Lula e Dilma. Em São Paulo, Nunes era um vereador desconhecido que encampou a briga contra a chamada “ideologia de gênero”.

Hoje, as diferenças não são tão claras. Mais por iniciativa de Rebelo do que o contrário.

"A esquerda largou o nacionalismo no meio do caminho. Nós fazíamos passeatas com a bandeira do Brasil”, lamenta Aldo Rebelo, sentado numa cadeira em seu apartamento no bairro dos Jardins, Zona Oeste de São Paulo. O ex-ministro veste camisa e calça sociais com uma sandália de couro nordestina. Próximo à porta de entrada, fica pendurado o chapéu panamá que virou sua marca registrada. Há também uma pintura de um cavalo.

 

Rebelo diz que foi a esquerda que mudou, não ele. “A esquerda trocou a ideologia pela biologia. Pelos direitos individuais baseados nos traços biológicos”, continua. A crítica é recorrente entre socialistas históricos: a luta de classes, dizem, deu lugar à luta atomizada do identitarismo. Com o tempo, o ex-ministro foi se afastando das posições majoritárias do PCdoB. Concordavam na agenda geral do desenvolvimentismo, discordavam na forma de pô-la em prática. Rebelo tornou-se um dos principais críticos à demarcação de terras indígenas, na Câmara. Considerava a política indigenista uma trava ao desenvolvimento econômico, no que era apoiado pela bancada ruralista. Em 2009, propôs que novas demarcações tivessem de receber aval do Congresso. Nem todo comunista concordava.

“Eu respeito a história política de Aldo. Minha impressão é que ele acentuou ao longo de sua trajetória traços de nacionalismo que o impedem de compreender a complexidade do mundo de hoje”, comenta Orlando Silva (PCdoB-SP), deputado federal que tem uma trajetória similar à de Rebelo: ambos se formaram politicamente no PCdoB, presidiram a União Nacional dos Estudantes (UNE) e assumiram o Ministério dos Esportes durante os governos do PT. “Minha impressão é que Aldo foi um líder de esquerda, hoje não se posiciona assim”, continua Silva. “Direito dele.”

Rebelo foi deputado federal por sete mandatos consecutivos, entre 1991 e 2011. Por ter afinidades em comum – o vocabulário patriótico, a preocupação com a soberania na Amazônia, a rejeição à Comissão da Verdade –, aproximou-se dos militares. Quando Lula foi eleito pela primeira vez, o então deputado federal Jair Bolsonaro foi à Granja do Torto pedir ao presidente que nomeasse Rebelo para o Ministério da Defesa. “É uma pessoa que entende do assunto e tem grande respeito [nas Forças Armadas]”, justificou, na época.

“Trabalhamos mais de vinte anos na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Viajamos muitas vezes pra Amazônia. A gente subia nos barcos da Marinha e dormia nos beliches”, lembra o ex-ministro, ao falar de Bolsonaro. Os dois, além disso, eventualmente jogavam futebol em amistosos com outros deputados. “A gente formava a dupla de defesa.”

Rebelo e Bolsonaro ainda são amigos e conversam regularmente pelo WhatsApp. A afinidade política se estreitou com o tempo. Não bastasse o apreço pelos militares, o pedetista se tornou um crítico dos dados de desmatamento no Brasil, que considera falseados (embora não apresente provas para refutar os levantamentos feitos pelo Inpe). Foi convidado a participar de um documentário da produtora de extrema direita Brasil Paralelo que nega a devastação da Amazônia. No ano passado, fez uma ponta na CPI das ONGs, no Congresso, onde denunciou que o terceiro setor formou um “Estado paralelo” na floresta.

Em fevereiro, Bolsonaro compartilhou no X (antigo Twitter) um vídeo do amigo – trajado de chapéu panamá – negando que tenha havido tentativa de golpe de Estado depois da vitória de Lula, em 2022. “Até o ex-ministro da Dilma sabe que não teve golpe”, diz a legenda.

Rebelo pensa que, como o golpe de Estado não se consumou, não há por que punir os envolvidos. “Qual foi o apoio institucional? Quantos governadores apoiaram o golpe? Em 1964, os principais apoiavam e teve apoio da Igreja Católica. Que embaixada apoiou? Que setor da mídia? Em 1964 a nata da mídia apoiava o golpe. Em 1964 teve apoio financeiro de São Paulo”, enumerou o ex-ministro, com o tom de voz ligeiramente exaltado.

O sindicalista Antônio Neto, presidente municipal do PDT de São Paulo e membro da Executiva Nacional do partido, diz que Aldo Rebelo é muito “ele mesmo”. Uma reclamação quase carinhosa. Um dirigente do PCdoB, que pede para não ser identificado para não se indispor com o amigo de longa data, faz uma análise parecida. “O partido do Aldo é ele próprio. Sempre foi. Ele tem uma formação que não é propriamente marxista. É um patriota. Um homem de talento político. De caráter, retidão e espírito sertanejo, de vaqueiro.”

No PDT, a nomeação de Rebelo para a Prefeitura de São Paulo causou perplexidade, sobretudo porque, em seguida, o ex-ministro passou a ser cotado como possível vice na chapa de Ricardo Nunes. A perplexidade tem razões não apenas ideológicas: o PDT, que tem um ministro no governo Lula (Carlos Lupi, da Previdência Social), apoia oficialmente o deputado Guilherme Boulos (Psol) na disputa pela prefeitura. “Gosto do Aldo como pessoa”, continua Neto. “Mas politicamente estamos muito distantes. Ele não discutiu com o partido sua ida para a prefeitura e reclamou do apoio ao Boulos.” Segundo ele, o partido não cogita expulsar o ex-ministro, por enquanto. “Ele não tem cargo no PDT. Nem militante é. Depois das eleições vamos discutir essa situação. Ele não constrange o PDT. Quem fica constrangido é ele.”

Rebelo diz que avisou, sim, o partido sobre sua adesão ao governo de Nunes, e lamenta a posição do PDT. “O Boulos eu conheci chamando o PT de corrupto e no movimento ‘Não vai ter Copa’. Ele queria o lugar do PT na esquerda. Eu fiquei com a presidente Dilma até o fim do mandato dela. A vice dele [Marta Suplicy] apoiou o impeachment. Que conversa é essa pra cima de mim? Defendo a Dilma até hoje como pessoa correta e honesta.”

O mesmo vale para Lula, acrescenta Rebelo. No primeiro turno da eleição de 2022, contudo, ele diz ter votado em Ciro Gomes (PDT-CE), seu correligionário. E no segundo turno? “Nem lembro se votei.”

# Pedro Venceslau é comentarista de política da CNN Brasil. Trabalhou em veículos como a revista Imprensa e o jornal O Estado de S. Paulo

As memórias do cara que presenciou 'bons' momentos de Baker e Davis (Julio Maria, piauí)

As cidades dos Tristes Trópicos de Lévi-Strauss


Este artigo repassa, em Tristes trópicos, as observações de Lévi-Strauss sobre o tema da cidade, desde as primeiras impressões quando de sua chegada ao Brasil, passando pela "etnografia dos domingos" na capital paulistana, o surgimento das novas cidades no norte do Paraná, até, finalmente, as multidões em espaços urbanos da Índia, pólo que o leva a estabelecer comparações com as formas características do processo de urbanização no Novo Mundo. Tomando sua leitura como um exercício de análise, o artigo conclui refletindo sobre a oportunidade de contar com categorias que permitam captar, a partir da antropologia, a dinâmica urbana contemporânea (continue a leitura)

José Guilherme Cantor Magnani, Revista de Antropologia (42(1-2), 1999 (https://doi.org/10.1590/S0034-77011999000100007). Scielo-Brasil



PALAVRAS-CHAVE: cidade, antropologia urbana, categorias analíticas, metrópole.

Quando se entra em contato com a obra de Lévi-Strauss através de Tristes trópicos, ainda têm uma especial sonoridade para ouvidos nativos as referências feitas a espaços como a rua Florêncio de Abreu, o bairro de Perdizes e o Pacaembu, a avenida São João, o Vale do Anhangabaú, a avenida Paulista e muitos outros, tão familiares e conhecidos dos moradores da cidade de São Paulo. Tais referências, mas principalmente as observações sobre a presença de migrantes estrangeiros nos arredores da cidade, a dinâmica de mercados populares com seu artesanato e algumas festas tradicionais fazem parte do que o próprio Lévi-Strauss então chamou de "etnografia dos domingos". Conforme depoimento prestado anos mais tarde a Didier Eribon, lembra que suas expedições às tribos indígenas tiveram início

"a partir do primeiro ano letivo. Em vez de voltar para a França, minha mulher e eu fomos para o Mato Grosso, para as aldeias cadiveu e bororo. Mas eu já tinha começado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre a cidade de São Paulo e sobre o folclore dos arredores, do qual minha mulher se ocupava mais especificamente". (Lévi-Strauss & Eribon, 1990: 32)

No entanto, logo após aquelas observações iniciais sobre a cidade, sua dinâmica e tipos característicos, entremeadas por outras tantas frases de efeito nem sempre lisonjeiras, mas continuamente lembradas – do tipo "as cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude sem se deterem no antigo" –, o livro logo encontra e assume seu verdadeiro filão, proporcionado pelo primeiro contato do jovem pesquisador com as sociedades indígenas. No meio do caminho, entretanto, Lévi-Strauss deu uma parada para contemplar os efeitos da urbanização no interior paulista, esboçar algumas regras subjacentes ao processo de implantação de novas cidades no norte do Paraná e finalmente, já do outro lado do mundo, estabelecer comparações com cidades, mercados, tipos humanos e multidões da Índia e Paquistão.

Ainda que tais notas não tenham vindo a fundar uma linha de reflexão mais sistemática sobre o tema, diferentemente do que ocorreu com seus insights a respeito dos Cadiveo, Bororo e Nhambiquara, merecem destaque pela agudeza das percepções, pela trama dos contrapontos, pelo alcance do olhar; trata-se de fino exercício que, fossem outras as circunstâncias, talvez tivesse dado início a alguma fecunda linhagem de estudos urbanos. Mas, como afirmou ao jornalista Ulderico Munzi, do Corriere della Sera, em 1993, " eu fiz uma escolha, a de interessar-me por coisas longínquas, no espaço e no tempo".

I

O exercício começa com uma rápida análise do processo de expansão da fronteira no interior do Estado de São Paulo, seguindo a trilha das transformações econômicas e formas de ocupação: o olhar atento identifica as alterações na toponímia, as mudanças na importância e função de povoados (pousos, boca do sertão) e de tipos de articulação viária – os portos de lenha, registros, estradas francas, estradas muladas e boiadas.

Mas é o espetáculo do surgimento de novas cidades, a partir do nada, no coração da floresta, o que mais o impressiona. Aquele tom blasé das primeiras observações, certamente tributário de um olhar ainda acostumado à vetustez de conjuntos arquitetônicos de dez séculos, e que por isso vê as cidades do Novo Mundo com cara de acampamento ou montagem provisória, cede lugar à busca de princípios explicativos para um fenômeno mais radical, flagrado em seu nascedouro.

No norte do Paraná o processo de colonização, à época da estada de Lévi-Strauss, estava multiplicando cidades ao longo de um tronco central rodo-ferroviário: a partir de clareiras rasgadas em meio à selva exuberante, já haviam surgido Londrina, depois Rolândia, Arapongas e outras mais. No início eram apenas umas poucas casas de madeira, algumas de troncos falquejados, seguindo técnicas construtivas dos imigrantes – principalmente da Europa Central – embasbacados com a fertilidade da terra roxa que as derrubadas iam pondo à mostra e à sua disposição. Mas não era uma ocupação desordenada: desde o primeiro momento pautava-se por alguns princípios simples, geométricos, aparentemente neutros.

Misteriosos elementos, diz Lévi-Strauss, responsáveis por esses quadriláteros onde as ruas são todas iguais, em ângulo reto; no entanto, algumas eram centrais, outras periféricas, estas perpendiculares à linha ferroviária ou à estrada, aquelas, paralelas. Por sobre a grade das combinações possíveis, distribuíam-se as conhecidas funções urbanas do comércio, dos negócios, da moradia e dos serviços públicos: umas situavam-se preferencialmente no sentido do tráfego enquanto outras procuravam as transversais. Um segundo princípio marca as linhas da ordem e da desordem e rege a distribuição da abundância e da carência: é o que se segue à direção leste/oeste. "Há muito deixamos de adorar o sol", afirma ele, "mas a persistência dessa orientação reveste-se de atualidade". Se não explica a variabilidade dos comportamentos individuais, termina produzindo, por decantação, uma unidade maior:

"a vida urbana apresenta um estranho contraste. Embora represente a forma mais completa e requintada da civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, precipita no seu cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos. Como exemplos, o crescimento das cidades de leste para oeste e a polarização do luxo e da miséria segundo este eixo, que se torna incompreensível se não reconhecermos esse privilégio – ou essa servidão – das cidades que consiste, à maneira dum microscópio e, graças ao aumento que lhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência coletiva o borbulhar microbiano das nossas ancestrais mas sempre vivas superstições. Tratar-se-á, de resto, realmente, de superstições? (Lévi-Strauss, 1981: 116)

Eis aí, em concisa enunciação, uma verdadeira fórmula de cidade. Antecipando argumentos de "O Pensamento Selvagem", Lévi-Strauss sustenta que o espaço possui seus próprios valores, assim como os sons e os perfumes têm cores e os sentimentos um peso:

"Esta procura de correspondência não é um jogo de poeta nem mistificação, mas (... ) oferece para o cientista o terreno mais novo e aquele cuja exploração lhe pode ainda trazer ricas descobertas. (...) os mitos e os símbolos do selvagem devem surgir aos nossos olhos, senão como uma forma superior de conhecimento, pelo menos como a mais fundamental, a única verdadeiramente comum, constituindo o pensamento científico simplesmente a ponta mais acerada da mesma: mais penetrante, sem dúvida, porque aguçada como se fosse amolada na pedra dos fatos mas à custa duma perda de substância, dependendo a sua eficácia do poder de penetrar suficientemente fundo para que o corpo da ferramenta siga complemente a ponta". (Lévi-Strauss, 1981: 116-17)

A forma da aldeia bororo e sua íntima relação com a organização social (que seriam mostradas páginas adiante); a mandala que prefigura em desenho o traçado da cidade e determina sua implantação concreta; o gesto do centurião romano com sua groma, traçando no solo os cardines e decumani que fundam mais uma urbs¸ após a devida consulta aos augures; e finalmente o projetista inclinado sobre sua prancheta são algumas imagens que até podem ser dispostas numa linha diacrônica mas que pertencem a um mesmo conjunto paradigmático.

"Não é portanto apenas de maneira metafórica que é possível comparar -- como se fez muitas vezes -- uma cidade a uma sinfonia ou a um poema; são objetos de natureza idêntica. A cidade, talvez mais preciosa ainda, situa-se na confluência da natureza e do artifício. Congregação de animais que encerram a sua história biológica nos seus limites, modelando-a ao mesmo tempo com todas as suas intenções de seres pensantes, a cidade provém simultaneamente da procriação biológica, da evolução orgânica e da criação estética. É ao mesmo tempo objeto de natureza e sujeito de cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência". (Lévi-Strauss, 1981: 117)

A visita a Goiânia em 1937 e as impressões do empreendimento, em especial da única edificação que então sobressaía na planície, o grande e desgracioso hotel, fornecem-lhe o gancho para a segunda parte do exercício. A bordo de um tapete voador, termo que emprega como intertítulo em Tristes trópicos, Lévi-Strauss deixa o planalto central brasileiro em direção à Índia e ao Paquistão. A comparação agora será numa perspectiva macro, entre unidades maiores, afastadas no tempo e no espaço. A visão das ruínas das antigas cidades de Mohenjo-Daro e Harappa, revelando o plano urbanístico em retícula, evoca similares modernos:

"Apraz-nos imaginar que no termo de 4 a 5 mil anos de história, um ciclo foi concluído; que a civilização urbana, industrial, burguesa, inaugurada pelas cidades dos Indus, não diferia muito, na sua inspiração mais profunda, dessa que estava destinada, após uma longa involução na crisálida européia, a atingir a plenitude do outro lado do Atlântico. Quando ainda era jovem, o mundo mais Antigo esboçava já o rosto do Novo". (Lévi-Strauss, 1981: 124)

Mas é o impacto das multidões que lhe oferece o contraste mais marcante e novas pistas para comparação: nas ruas apinhadas de Calcutá o séquito de serviçais e suas ofertas, a procissão de pedintes e suas súplicas sustentam o ininterrupto e deprimente espetáculo de uma sub–humanidade. A cidade, qualificada poucas linhas acima como "forma mais completa e requintada da civilização", aqui emerge manchada pela imundície e degradação, produzindo no antropólogo não mais o estranhamento esperado e metodologicamente controlado, mas o espanto e até o constrangimento.

"O europeu que vive na América tropical tem problemas. Observa as relações originais existentes entre o homem e o meio geográfico; e as próprias formas de vida humana oferecem-lhe, sem cessar, temas de reflexão. Mas as relações entre as pessoas não revestem formas novas; são da mesma natureza daquelas que sempre o rodearam. Pelo contrário, na Ásia meridional, parece-lhe estar além ou aquém daquilo que o homem tem direito de exigir do mundo ou do homem. A vida cotidiana parece ser um permanente repúdio da noção de relações humanas (:128)."

É desse afastamento mais extremo, contudo, que vai emergir um novo significado e é aí que vai descobrir uma inusitada manifestação de humanidade. A imagem do artesão, entretido com umas poucas ferramentas e escasso material, a exercer na própria rua o ofício de onde retira a parca subsistência para si e para os seus, fá-lo exclamar: "E, todavia, são precisas tão poucas coisas, aqui, para criar a humanidade! Pouco espaço, pouca comida, poucos utensílios, pouca alegria".

Paradoxalmente, parece haver muita alma... Alma que uma parte do Ocidente cansada do consumo e saturada pela abundância vem procurar nas palavras e exemplos de esquálidos bikhus, gurus semi despidos e toda espécie de renunciadores, na recente onda de retorno a formas de espiritualidade há muito esquecidas neste outro lado do mundo.

O exercício finalmente chega a seu termo. Lévi-Strauss considera que o problema levantado pela confrontação entre a Ásia e a América tropicais continua sendo o da multiplicação humana num espaço limitado. Diante da situação de sociedades que se tornam demasiado numerosas, alerta para um tipo de perigo: a sedução de uma saída simplista, aquela que consiste em recusar qualidade humana a uma parte da espécie.

"Aquilo que me assusta na Ásia é a imagem do nosso futuro, do qual ela constitui uma antecipação", conclui, numa sombria antevisão. Sua última imagem, contudo, é da América indígena e seu fugidio reflexo "de uma era em que a espécie se encontrava à medida do seu universo e em que se verificava permanentemente uma relação adequada entre o exercício da liberdade e os sinais desta" (Lévi-Strauss, 1981: 143).

II

Que diria então Lévi-Strauss diante do espetáculo de ajuntamentos humanos já não de 1,5 ou 2 milhões, mas de 10 milhões de pessoas, como é o caso de alguns dos maiores centros urbanos contemporâneos? Ainda que este não seja o tipo de questão que lhe interesse (como tem reiterado em entrevistas mais recentes), à primeira vista parece improvável que pudesse continuar afirmando que a cidade "é a coisa humana por excelência", tendo-se em conta os rumos e conseqüências do processo de urbanização em curso e principalmente o teor das análises sobre o fenômeno.

Conforme desenvolvi em outro texto (Magnani, 1999), uma parte dessas análises e os diagnósticos correspondentes enfatizam os aspectos desagregadores do processo – tais como o colapso do sistema de transporte, as deficiências do saneamento básico, a falta de moradia, a concentração e má distribuição dos equipamentos, o aumento dos índices de poluição, da violência, do desemprego. Com base em variáveis e indicadores sociológicos, econômicos e demográficos, este é o quadro geralmente aplicado às grandes cidades do mundo subdesenvolvido.

Uma outra visão, geralmente referida às metrópoles do Primeiro Mundo, projeta cenários marcados por uma feérica sucessão de imagens, resultado da superposição de signos, simulacros, espaços interativos, redes e pontos de encontro virtuais. Esta é a cidade que se delineia a partir da análise dos semiólogos, arquitetos, críticos pós-modernos, identificada como o protótipo da sociedade pós-industrial.

No primeiro caso, mostra-se uma linha de continuidade em que os fatores de crescimento, desordenados, terminam por produzir inevitavelmente o caos urbano; na segunda, enfatiza-se a ruptura, conseqüência de saltos tecnológicos que tornam obsoletas não só as estruturas urbanas anteriores como as formas de comunicação e sociabilidade a elas correspondentes; o caos, aqui, é semiológico. Uma, fruto do capitalismo selvagem; a outra, identificada com o capitalismo tardio.

Ainda que por motivos diferentes, essas duas perspectivas – polarizadas para efeito comparativo e de contraste – levam a conclusões semelhantes no plano da cultura urbana: deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a conseqüente privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento em ambientes e redes sociais restritos.

Não há como negar a existência de tais características e seus fatores determinantes, comprovados não só por tabelas, índices e projeções, como também pela experiência do dia a dia das grandes cidades. Mas, isso é tudo? Esse cenário degradado esgota o leque das experiências urbanas? Não seria possível reconhecer, em algum plano, indícios daquilo que Lévi-Strauss vislumbrou e chamou de "forma complexa e requintada de civilização", a partir de outro foco de análise e lançando mão de outros instrumentos de pesquisa?

Como os da etnografia, por exemplo, que, como se sabe, elaborou seus métodos de investigação inicialmente no estudo de sociedades de pequena escala dedicadas à coleta, caça, agricultura de subsistência. O modo de vida típico dessas sociedades, contudo, tem como base o acampamento ou a aldeia, mas não a cidade; por conseguinte, as estratégias de pesquisa da etnografia à primeira vista não a credenciariam para deslindar as complexidades da sociedade urbano-industrial (e pós-industrial) contemporânea. No entanto, seu modo de operar apresenta algumas características que talvez permitam captar processos cuja dinâmica passaria desapercebida, se enquadrados exclusivamente pelo enfoque dos grandes números. Numa linha interpretativa, por exemplo, a etnografia tem como objetivo a busca do significado da ação social é a partir de

"material produzido por um trabalho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente (embora não exclusivamente) qualitativo, altamente participante e realizado em contextos confinados, que os megaconceitos com os quais se aflige legitimamente a ciência social contemporânea – modernização, integração, conflito, carisma, estrutura, significado – podem adquirir toda a espécie de atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente, com eles."

(Geertz, 1978: 33-4)"

É esse particular tipo de contato, confronto, diálogo com o "outro" que constitui o fundamento da etnografia. Eles – que nos estudos antropológicos clássicos são os nativos de algum grupo ou aldeia distante – no contexto das grandes cidades são os múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais que nelas vivem, sobrevivem, trabalham, circulam, usufruem de seus equipamentos ou deles são excluídos. Tomando como ponto de partida a perspectiva de cada um desses grupos é que se pode aceder a padrões de significado que ordenam comportamentos.

Não se pode perder de vista, porém, o perigo que estudos exclusivamente formatados por esta linha de análise podem acarretar: o de não sair do âmbito dos contextos nativos particularizados. Para estabelecer mediações entre o nível das experiências dos diferentes atores e o dos processos ou planos mais abrangentes, é necessário operar também em outro registro. Se se pensa na perspectiva estruturalista, contudo, cabe ter em mente a advertência do próprio Lévi-Strauss: "Nunca me ocorreu a idéia – que me parece extravagante – de que tudo na vida social esteja sujeito à análise estrutural (...) aqui e ali formam-se algumas ilhotas de organização. Minha história pessoal, minhas opções científicas fizeram com que me interessasse mais por elas do que pelo resto" (Lévi-Strauss & Eribon, 1990: 133).

Sua escolha pelos domínios do parentesco e do mito, coetâneos ao próprio homem, deixa claro ao menos duas condições para a viabilidade desse tipo de análise: a dimensão do corpus e a universalidade da ocorrência. Com relação ao fenômeno urbano, contudo, há que reconhecer que nem sempre a humanidade viveu em cidades e que nem todos moram nelas; só muito recentemente é que a urbanização tornou-se uma tendência mais geral, de forma que princípios porventura responsáveis por sua estruturação num nível mais profundo talvez ainda não tenham tido o tempo suficiente para decantar.

Quem sabe, porém, tenha chegado uma oportunidade, se não para uma análise estrutural em moldes clássicos, ao menos para um exercício na trilha de algumas pistas sugeridas por Tristes trópicos, com base na hipótese de que a atual abrangência da urbanização oferece uma compensação para sua ainda pouca profundidade temporal. Com efeito, projeta-se para a virada do milênio a superação da população rural pela urbana, quando também haverá 25 cidades com mais de 10 milhões de habitantes: são as megacidades1. Por sua escala, estas últimas – entre as quais São Paulo – escapam às costumeiras distinções entre centro e periferia, área industrial e de serviços, zonas residenciais e de comércio, de circulação e lazer etc., postulando questões que desafiam instrumentos habituais de trabalho de planejadores e urbanistas.

E também os da antropologia. Como se sabe, há uma estreita relação entre a escala da aldeia e a especificidade de alguns métodos clássicos de pesquisa etnográfica que permitiam a Malinowski em seu "passeio matinal pela aldeia" e a Evans-Pritchard, "da porta da barraca", observar a dinâmica da vida nativa em termos de totalidade. Esta perspectiva, que ainda subsistia no protótipo representado pela cidade medieval murada, com sua centralidade e contornos definidos – ou na típica cidade interiorana, no casos dos famosos "estudos de comunidade" –, desaparece quando se trata da escala metropolitana. Como mostra Habermas, as marcas da cidade ocidental que Weber descreveu – a cidade burguesa na Alta Idade Média – terminaram vinculando sua imagem e conceito a uma determinada forma de vida; esta, contudo, se transformou a tal ponto que:

"O conceito dela derivado já não logra alcançá-lo. Enquanto um mundo abarcável, a cidade pôde ser arquitetonicamente formada e representada para os sentidos. As funções sociais da vida urbana política e econômica, privada e pública, da representação cultural e eclesiástica, do trabalho, do morar, da recreação e da festa, podiam ser traduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados. Contudo, no século XIX a mais tardar, a cidade torna-se ponto de interseção de relações funcionais de outra espécie." (1992:144)

Que dizer então da realidade das metrópoles contemporâneas, circunscritas não mais no horizonte de cada Estado nação, mas imersas em processos transnacionais descentrados nos quais, para uma determinada visão, já mencionada, parece ter-se perdido qualquer vínculo com referências territoriais significativas e nas quais a dinâmica se dá no terreno da virtualidade e do "não lugar"? No entanto, já nos anos 60, Lévi-Strauss, de certa forma, chamava atenção para o problema:

"a civilização ocidental, tornando-se cada dia mais complexa, e estendendo-se a toda a terra habitada, apresenta desde já em seu bojo esses desvios diferenciais que a antropologia tem por função estudar, mas que até agora não lhe era possível senão comparando civilizações distintas e longínquas." (1962:26)

Se a antropologia, por conseguinte, não pretende abrir mão de refletir sobre essas novas formas de ajuntamento humano com sua dinâmica, problemas e possibilidades específicas, tem de pensar também novas linhas de enquadramento teórico e estratégias investigativas. Como essas cidades já não apresentam um ponto de referência nítido nem contornos definidos capazes de identificar uma centralidade e projetar uma imagem de totalidade, é preciso reconstituí-las, sob pena de se embarcar (e perder-se) na multiplicidade dos arranjos particularizados.

Em outros termos: se a cidade, tendo em vista a complexidade principalmente em sua escala metropolitana, já não constitui uma totalidade operacional, é preciso estabelecer mediações entre o nível das experiências dos atores e o de processos mais abrangentes, de forma a se obter, se não uma ordem, ao menos ordenamentos detectáveis em práticas específicas e comportamentos recorrentes. Daí a necessidade de contar com categorias que permitam uma articulação entre tais planos: esse tem sido o propósito do emprego das noções de pedaço, mancha, trajeto, circuito, pórtico, aplicadas a determinados campos como o lazer, práticas culturais, novas formas de religiosidade, entre outros2.

Essas categorias possibilitam determinar os contornos do recorte escolhido – tal ou qual comportamento, prática, tendência – no cenário multifacetado da cidade como resultado da estratégia de pesquisa escolhida, ou seja, construída teoricamente. Seu rendimento e aplicabilidade residem no fato de permitirem a passagem (ou articulação) entre o plano da determinação sociológica (relações sociais intra e intergrupos) e aquele referido a arranjos espaciais recorrentes e visíveis na paisagem.

Desta forma, permitem recortar e trabalhar com totalidades "parciais", universos autônomos (com regras próprias) mas não desvinculados da dinâmica mais geral da cidade, no interior dos quais efetivamente ocorre o exercício desta ou aquela prática através dos encontros, contatos, trocas e conflitos entre os freqüentadores.

Sem se perder de vista a dimensão das escolhas e usos vistos de perto, tem-se a garantia de um olhar de longe, capaz de registrar regularidades num plano mais abrangente. Para o nativo, elas constituem chaves de sentido3: qual o habitué que não sabe distinguir quem é ou quem não é do seu "pedaço"? Qual o aficionado, seja um clubber, rapper, cineclubista ou neo-esotérico que desconhece as regras, possibilidades e conexões oferecidas por seu "circuito"? Qual o transeunte que não aperta o passo ao transpor algum "pórtico", espaço liminar sujeito a normas que desconhece?

Para o analista, aquelas categorias constituem chaves de inteligibilidade de processos urbanos só aparentemente entregues ao acaso das escolhas individuais, aleatórias: sua implantação na paisagem da cidade segue determinada lógica. Desta forma logra-se recuperar a idéia já citada do "infinitesimal", aduzida por Lévi-Strauss: "Embora represente a forma mais completa e requintada da civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, (a cidade) precipita no seu cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos".

Quando uma iaô deposita a oferenda para seu orixá em determinada esquina da cidade, tal atitude pode ser creditada a fatores subjetivos, individuais: conveniência pessoal, proximidade, facilidade de locomoção. Contudo, a preferência por determinadas ruas, ou por uma área mais abrangente – constituindo, quem sabe, uma "mancha" – já levanta pistas para pensar a relação entre esta modalidade de prática religiosa e significados atribuídos a determinados espaços da cidade.

O mesmo pode ser aplicado a outra manifestação da religiosidade contemporânea: que um ou outro espaço neo–esotérico realize algum tipo de cerimônia para celebrar a ocorrência da lua cheia, tal fato pode ser explicado em razão de escolhas doutrinárias ou filosóficas desse centro. Mas quando se descobre que tal forma de celebração ocorre com regularidade ao longo do circuito "neo-esô", independentemente dos (incontáveis) sistemas que servem de base a cada uma das instituições que o integram – de tal forma que já virou evento constante de um verdadeiro calendário –, pode-se supor que se está diante de uma recorrência de outra ordem.

E assim sucessivamente, com relação à ocupação de determinados espaços e áreas da cidade por grupos de jovens, por práticas esportivas, de consumo cultural, convivência, lazer etc.: estes e muitos outros comportamentos, atitudes e práticas – "infinitesimais" do ponto de vista das motivações de cada participante –, quando colocados em perspectiva e vistos de um certo ângulo, deixam entrever modelos, princípios classificatórios e de organização mais gerais.

Para captá-los, entretanto, é preciso situar o foco nem tão de perto que se confunda com a perspectiva particularista de cada usuário e nem tão de longe a ponto de distinguir a necessária totalidade, mas sob a forma de uma mancha borrada e desprovida de sentido.

2 Ver Magnani & Torres, 1996.

3 A propósito dessa expressão "chave de sentido"e da próxima , "chave de intelegibilidade", ver Augé (1994: 51).

Bibliografia

ABSTRACT: This article reviews, in Tristes Tropiques, Lévi-Strauss' observations about the theme of the city: his first impressions when he arrived in Brazil, his "Sundays ethnography" in São Paulo city, the birth of news cities in Paraná and the crowds in urban India; this last that conduced him to comparisons with the characteristics of the urban processes in the New World. Taking his reflections as an analysis exercise in an anthropological way, this article concludes suggesting some categories to think about the dynamic reality of the contemporaneous urban city.

KEY WORDS: city, urban anthropology, analytic categories, metropolis.

Recebido em setembro de 1999.

AUGÉ, M. 1994 Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas, Papirus

Boletim do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, ano XI, n. 55, maio/junho de 1999.

GEERTZ, C. 1978 A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Zahar

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MAGNANI, J. G. C. & Torres, L. 1996 Na metrópole: textos de antropologia urbana, São Paulo, Edusp.

Notas
1 Segundo dados apresentados pelo arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, no ano 2025, 61% da população mundial estará vivendo em cidades, enquanto que em 1975 esta porcentagem era de 37% ( Boletim do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, p. 7).

Datas de Publicação

 Publicação nesta coleção
17 Mar 2000

Data do Fascículo
1999

Histórico

Recebido
Set 1999

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Por uma história social da IA

Filósofo investiga as ideias de automação – do Intelecto Geral de Marx ao ChatGPT. Para ele, o capital não visa eliminar trabalho humano, mas subjugá-lo. E contra corpos que viram fábricas, é possível uma cultura de invenção que vise o coletivo

Por Matteo Pasquinelli (Outras Palavras. Tradução: Leonardo Foletto e Leonardo Palma


No final de 2023, não lembro onde nem como, fiquei sabendo de The Eye of the Master, novo livro do Matteo Pasquinelli sobre IA. Fiquei na hora empolgado. Primeiro porque a proposta do livro é a de contar uma “história social” da IA, indo desde Charles Babbage até hoje, passando e destrinchando o conceito de general intellect de Marx (hoje bastante usado nos estudos tecnopolíticos) e a onipresente cibernética, também uma área de estudos bastante retomada nos últimos anos por Yuk Hui, Letícia Cesarino e diversos outros pesquisadores, até chegar as IAs generativas de hoje. Tudo uma abordagem rigorosa, por vezes densa,  cheia de referências saborosas, e marxista – com várias aberturas típicas do autonomismo italiano e do pós-operaísmo, influências do autor (continue a leitura)

Segundo porque Pasquinelli, professor de filosofia da ciência na Universidade Foscari, em Veneza, tem, ele próprio, um belo histórico em se debruçar nos estudos da filosofia da técnica. Eu o conheci pela primeira vez há cerca de 10 anos atrás, quando o artigo “A ideologia da cultura livre e a gramática da sabotagem” saiu como capítulo do Copyfight, importante livro organizado por Bruno Tarin e Adriano Belisário. Depois, outros textos de Pasquinelli foram publicados em português pelo coletivo Universidade Nômade; um deles, “O algoritmo do PageRank do Google: Um diagrama do capitalismo cognitivo e da exploração da inteligência social geral”, já em 2012 apontava para a exploração da “inteligência social geral” por algoritmos das big techs – o que hoje, com IAs generativas, virou um consenso global.

Ainda estou digerindo a leitura da obra e me debruçando sobre alguns tópicos e referências citados, enquanto espero minha cópia impressa do original chegar para rabiscar e estudar com mais calma. Encharcado de uma saborosa empolgação intelectual, daquelas que nos deixam ao mesmo tempo animado pelas descobertas e ansioso em compartilhar esses achados, fui ao texto que Pasquinelli publicou no E-Flux, em dezembro de 2023, “The Automation of General Intelligence” e traduzi para o português. O texto publicado é uma versão do posfácio do livro, onde o italiano sintetiza alguns pontos da obra e aponta caminhos tanto para a discussão teórica quanto para a disputa ativista. Com a ajuda do amigo Leonardo Palma, busquei traduzir cotejando e adaptando alguns conceitos para o português brasileiro, tentando quando possível trazer referências às obras já publicadas por aqui. 

Para acompanhar o texto, trouxe as imagens que ilustram a publicação no E-Flux. Disponibilizo também o livro inteiro em inglês, publicado pela Verso Books (edições em outros idiomas estão vindo) – “The Eye of the Master: A Social History of Artificial Intelligence” – para baixar – mas você sabe, não é para espalhar. [Apresentação: Leonardo Foletto]

A automação da Inteligência geral (General Intelligence)

Por Matteo Pasquinelli

Queremos fazer as perguntas certas. Como as ferramentas funcionam? Quem as financia e as constrói, e como são usadas? A quem elas enriquecem e a quem elas empobrecem? Que futuros elas tornam viáveis e quais excluem? Não estamos procurando respostas. Estamos procurando por lógica.
—Logic Magazine Manifesto, 2017[¹]

Vivemos na era dos dados digitais e, nessa era, a matemática se tornou o parlamento da política. A lei social se entrelaçou com modelos, teoremas e algoritmos. Com os dados digitais, a matemática se tornou o meio dominante pelo qual os seres humanos se coordenam com a tecnologia… Afinal, a matemática é uma atividade humana. Como qualquer outra atividade humana, ela traz consigo as possibilidades tanto de emancipação quanto de opressão.
—Politically Mathematics manifesto, 2019[²]

“A mesma importância que as relíquias de ossos têm para o conhecimento da organização das espécies de animais extintas têm também as relíquias de meios de trabalho para a compreensão de formações socioeconômicas extintas. O que diferencia as épocas econômicas não é “o que” é produzido, mas “como”, “com que meios de trabalho”. Estes não apenas fornecem uma medida do grau de desenvolvimento da força de trabalho, mas também indicam as condições sociais nas quais se trabalha”.
—Karl Marx, Capital, 1867[³]


Haverá um dia no futuro em que a IA atual será considerada um arcaísmo, um fóssil técnico a estudar entre outros. Na passagem de O Capital citada acima, Marx sugeriu uma analogia semelhante que ressoa nos estudos científicos e tecnológicos atuais: da mesma forma que os ossos fósseis revelam a natureza das espécies antigas e os ecossistemas em que viviam, os artefatos técnicos revelam a forma da sociedade que os rodeia e gere. A analogia é relevante, penso eu, para todas as máquinas e também para a aprendizagem automática, cujos modelos abstratos codificam, na realidade, uma concretização de relações sociais e comportamentos coletivos, como este livro tentou demonstrar ao reformular a teoria laboral da automação do século XIX para a era da IA.

Este livro [O Olho do Mestre] começou com uma pergunta simples: Que relação existe entre o trabalho, as regras e a automação, ou seja, a invenção de novas tecnologias? Para responder a esta questão, iluminou práticas, máquinas e algoritmos a partir de diferentes perspectivas – da dimensão “concreta” da produção e da dimensão “abstrata” de disciplinas como a matemática e a informática. A preocupação, no entanto, não tem sido repetir a separação dos domínios concreto e abstrato, mas ver a sua coevolução ao longo da história: eventualmente, investigar o trabalho, as regras e a automação, dialeticamente, como abstrações materiais. O capítulo inicial sublinha este aspecto, destacando como os rituais antigos, os instrumentos de contagem e os “algoritmos sociais” contribuíram para a elaboração das ideias matemáticas. Afirmar, como o fez a introdução, que o trabalho é uma atividade lógica não é uma forma de abdicar da mentalidade das máquinas industriais e dos algoritmos empresariais, mas antes reconhecer que a práxis humana exprime a sua própria lógica (uma anti-lógica, poderia se dizer) – um poder de especulação e invenção, antes de a tecnociência o capturar e alienar [4].

A tese de que o trabalho tem de se tornar “mecânico” por si só, antes que a maquinaria o substitua, é um velho princípio fundamental que foi simplesmente esquecido. Remonta, pelo menos, à exposição de Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776), que Hegel também comentou já nas suas conferências de Jena (1805-6). A noção de Hegel de “trabalho abstrato” como o trabalho que dá “forma” à maquinaria já estava em dívida para com a economia política britânica antes de Marx contribuir com a sua própria crítica radical ao conceito. Coube a Charles Babbage sistematizar a visão de Adam Smith numa consistente “teoria do trabalho da automação”. Babbage complementou esta teoria com o “princípio do cálculo do trabalho” (conhecido desde então como o “princípio de Babbage”) para indicar que a divisão do trabalho também permite o cálculo exato dos custos do trabalho. Este livro pode ser considerado uma exegese dos dois “princípios de análise do trabalho” de Babbage e da sua influência na história comum da economia política, da computação automatizada e da inteligência das máquinas. Embora possa parecer anacrônico, a teoria da automatização e da extração de mais-valia relativa de Marx partilha postulados comuns com os primeiros projetos de inteligência artificial.

Marx derrubou a perspetiva industrialista – “o olho do mestre” – que era inerente aos princípios de Babbage. Em O Capital, argumentou que as “relações sociais de produção” (a divisão do trabalho no sistema salarial) impulsionam o desenvolvimento dos “meios de produção” (máquinas-ferramentas, motores a vapor, etc.) e não o contrário, como as leituras tecno-deterministas têm vindo a afirmar, centrando a revolução industrial apenas na inovação tecnológica. Destes princípios de análise do trabalho, Marx fez ainda outra coisa: considerou a cooperação do trabalho não só como um princípio para explicar o design das máquinas, mas também para definir a centralidade política daquilo a que chamou o “Gesamtarbeiter“, o “trabalhador geral”. A figura do trabalhador geral era uma forma de reconhecer a dimensão maquínica do trabalho vivo e de confrontar o “vasto autômato” da fábrica industrial com a mesma escala de complexidade. Eventualmente, foi também uma figura necessária para fundamentar, numa política mais sólida, a ideia ambivalente do “intelecto geral” (general intellect) que os socialistas ricardianos, como William Thompson e Thomas Hodgskin, perseguiam.

Das linhas de montagem ao reconhecimento de padrões

Este livro apresentou uma história alargada da divisão do trabalho e das suas métricas como forma de identificar o princípio operativo da IA a longo prazo. Como vimos, na virada do século XIX, quanto mais a divisão do trabalho se estendia a um mundo globalizado, mais problemática se tornava a sua gestão, exigindo novas técnicas de comunicação, controle e “inteligência”. Se, no interior da fábrica a gestão do trabalho podia ainda ser esboçada num simples fluxograma e medida por um relógio, era muito complicado visualizar e quantificar aquilo que Émile Durkheim, já em 1893, definia como “a divisão do trabalho social“[5]. A “inteligência” do patrão da fábrica já não podia vigiar todo o processo de produção num único olhar; agora, só as infraestruturas de comunicação podiam desempenhar esse papel de supervisão e quantificação. Os novos meios de comunicação de massas, como o telégrafo, o telefone, a rádio e as redes de televisão, tornaram possível a comunicação entre países e continentes, mas também abriram novas perspectivas sobre a sociedade e os comportamentos coletivos. James Beniger descreveu corretamente a ascensão das tecnologias da informação como uma “revolução do controle” que se revelou necessária nesse período para governar o boom econômico e o excedente comercial do Norte Global.  Após a Segunda Guerra Mundial, o controle desta logística alargada passou a ser preocupação de uma nova disciplina militar que fazia a ponte entre a matemática e a gestão: a pesquisa operacional (Operations Research). No entanto, há que ter em conta que as transformações da classe trabalhadora no interior de cada país e entre países, marcadas por ciclos de conflitos urbanos e lutas descoloniais, foram também um dos fatores que levaram ao aparecimento destas novas tecnologias de controle.

A mudança de escala da composição do trabalho do século XIX para o século XX também afetou a lógica da automatização, ou seja, os paradigmas científicos envolvidos nesta transformação. A divisão industrial do trabalho relativamente simples e as suas linhas de montagem aparentemente retilíneas podem ser facilmente comparadas a um simples algoritmo, um procedimento baseado em regras com uma estrutura “se/então“(if/then) que tem o seu equivalente na forma lógica da dedução. A dedução, não por coincidência, é a forma lógica que, através de Leibniz, Babbage, Shannon e Turing, se inervou na computação eletromecânica e, eventualmente, na IA simbólica. A lógica dedutiva é útil para modelar processos simples, mas não sistemas com uma multiplicidade de agentes autônomos, como a sociedade, o mercado ou o cérebro. Nestes casos, a lógica dedutiva é inadequada porque explodiria qualquer procedimento, máquina ou algoritmo num número exponencial de instruções. A partir de preocupações semelhantes, a cibernética começou a investigar a auto-organização em seres vivos e máquinas para simular a ordem em sistemas de alta complexidade que não podiam ser facilmente organizados de acordo com métodos hierárquicos e centralizados. Esta foi fundamentalmente a razão de ser do conexionismo e das redes neurais artificiais, bem como da investigação inicial sobre redes de comunicação distribuídas, como a Arpanet (a progenitora da Internet).

Ao longo do século XX, muitas outras disciplinas registaram a crescente complexidade das relações sociais. Os conceitos gêmeos de “Gestalt” e “padrão” (“pattern”), por exemplo, utilizados respectivamente por Kurt Lewin e Friedrich Hayek, foram um exemplo da forma como a psicologia e a economia responderam a uma nova composição da sociedade. Lewin introduziu noções holísticas como “campo de forças”(“force field”) e “espaço hodológico” (“hodological space”) para mapear a dinâmica de grupo a diferentes escalas entre o indivíduo e a sociedade de massas[6].

O pensamento francês tem sido particularmente fértil e progressivo nesta direção. Os filósofos Gaston Bachelard e Henri Lefebvre propuseram, por exemplo, o método da “ritmanálise” (“rhythmanalysis”) como estudo dos ritmos sociais no espaço urbano (que Lefebvre descreveu de acordo com as quatro tipologias de arritmia, polirritmia, eurritmia e isorritmia [7]). De forma semelhante, a arqueologia francesa dedicou-se ao estudo de formas alargadas de comportamento social nas civilizações antigas. Por exemplo, o paleoantropólogo André Leroi-Gourhan, juntamente com outros, introduziu a ideia de cadeia operacional (“chaîne opératoire”) para explicar a forma como os humanos pré-históricos produziam utensílios [8]. No culminar desta longa tradição de “diagramatização” dos comportamentos sociais no pensamento francês, Gilles Deleuze escreveu o seu célebre “Pós-escrito sobre a Sociedade de Controle”, no qual afirmava que o poder já não se preocupava com a disciplina dos indivíduos, mas com o controle dos “dividuais”, ou seja, dos fragmentos de um corpo alargado e desconstruído [9].

Os campos de força de Lewin, os ritmos urbanos de Lefebvre e os dividuais de Deleuze podem ser vistos como previsões dos princípios de “governação algorítmica” que se estabeleceram com a sociedade em rede e os seus vastos centros de dados desde o final da década de 1990. O lançamento em 1998 do algoritmo PageRank da Google – um método para organizar e pesquisar o hipertexto caótico da Web – é considerado, por convenção, a primeira elaboração em grande escala de “grandes dados” das redes digitais [10]. Atualmente, estas técnicas de mapeamento de redes tornaram-se onipresentes: O Facebook, por exemplo, utiliza o protocolo Open Graph para quantificar as redes de relações humanas que alimentam a economia da atenção da sua plataforma [11]. O exército dos EUA tem utilizado as suas próprias técnicas controversas de “análise de padrões de vida” para mapear redes sociais em zonas de guerra e identificar alvos de ataques de drones que, como é sabido, mataram civis inocentes [12]. Mais recentemente, as plataformas da gig economy (“Economia do Bico”) e os gigantes da logística, como a Uber, a Deliveroo, a Wolt e a Amazon, começaram a localizar a sua frota de passageiros e condutores através de aplicações de geolocalização [13]. Todas estas técnicas fazem parte do novo domínio da “análise de pessoas” (também conhecida como “física social” ou “psicografia”), que é a aplicação da estatística, da análise de dados e da aprendizagem automática ao problema da força de trabalho na sociedade pós-industrial [14].

A automação da psicometria, ou inteligência geral (general intellect)

A divisão do trabalho, tal como o design das máquinas e dos algoritmos, não é uma forma abstrata em si, mas um meio de medir o trabalho e os comportamentos sociais e de diferenciar as pessoas em função da sua capacidade produtiva. Tal como os princípios de Babbage indicam, qualquer divisão do trabalho implica uma métrica: uma medição da performatividade e da eficiência dos trabalhadores, mas também um juízo sobre as classes de competências, o que implica uma hierarquia social implícita. A métrica do trabalho foi introduzida para avaliar o que é e o que não é produtivo, para manipular uma assimetria social e, ao mesmo tempo, declarar uma equivalência ao sistema monetário. Durante a era moderna, as fábricas, os quartéis e os hospitais têm procurado disciplinar e organizar os corpos e as mentes com métodos semelhantes, tal como Michel Foucault, entre outros, pressentiu.

No final do século XIX, a metrologia do trabalho e dos comportamentos encontrou um aliado num novo campo da estatística: a psicometria. A psicometria tinha como objetivo medir as competências da população na resolução de tarefas básicas, fazendo comparações estatísticas em testes cognitivos em vez de medir o desempenho físico, como no campo anterior da psicofísica [15]. Como parte do legado controverso de Alfred Binet, Charles Spearman e Louis Thurstone, a psicometria pode ser considerada uma das principais genealogias da estatística, que nunca foi uma disciplina neutra, mas sim uma disciplina preocupada com a “medida do homem”, a instituição de normas de comportamento e a repressão de anomalias [16]. A transformação da métrica do trabalho em psicometria do trabalho é uma passagem fundamental tanto para a gestão como para o desenvolvimento tecnológico no século XX. É revelador que, ao conceber o primeiro perceptron de rede neural artificial, Frank Rosenblatt tenha se inspirado não só nas teorias da neuroplasticidade, mas também nas ferramentas de análise multivariável que a psicometria importou para a psicologia norte-americana na década de 1950.

Nesta perspetiva, este livro tenta esclarecer como o projeto de IA surgiu, na realidade, da automação da psicometria do trabalho e dos comportamentos sociais – e não da procura da solução do “enigma” da inteligência. Num resumo conciso da história da IA, pode se dizer que a mecanização do “intelecto geral” (“general intellect”) da era industrial na “inteligência artificial” do século XXI foi possível graças à medição estatística da competência, como o fator de “inteligência geral” de Spearman, e à sua posterior automatização em redes neurais artificiais. Se na era industrial a máquina era considerada uma encarnação da ciência, do conhecimento e do “intelecto geral” (“general intellect”) dos trabalhadores, na era da informação as redes neurais artificiais tornaram-se as primeiras máquinas a codificar a “inteligência geral” em ferramentas estatísticas – no início, especificamente, para automatizar o reconhecimento de padrões como uma das tarefas-chave da “inteligência artificial”. Em suma, a forma atual de IA, a aprendizagem automática, é a automatização das métricas estatísticas que foram originalmente introduzidas para quantificar as capacidades cognitivas, sociais e relacionadas com o trabalho. A aplicação da psicometria através das tecnologias da informação não é um fenômeno exclusivo da aprendizagem automática. O escândalo de dados de 2018 entre o Facebook e a Cambridge Analytica, em que a empresa de consultoria conseguiu recolher os dados pessoais de milhões de pessoas sem o seu consentimento, é um lembrete de como a psicometria em grande escala continua a ser utilizada por empresas e atores estatais numa tentativa de prever e manipular comportamentos coletivos [17].

Dado o seu legado nas ferramentas estatísticas da biometria do século XIX, também não é surpreendente que as redes neurais artificiais profundas tenham recentemente se desdobrado em técnicas avançadas de vigilância, como o reconhecimento facial e a análise de padrões de vida. Acadêmicos críticos da IA, como Ruha Benjamin e Wendy Chun, entre outros, expuseram as origens racistas destas técnicas de identificação e definição de perfis que, tal como a psicometria, quase representam uma prova técnica do viés social (“social bias”) da IA [18]. Identificaram, com razão, o poder da discriminação no cerne da aprendizagem automática e a forma como esta se alinha com os aparelhos de normatividade da era moderna, incluindo as taxonomias questionáveis da medicina, da psiquiatria e do direito penal [19].

A metrologia da inteligência iniciada nos finais do século XIX, com a sua agenda implícita e explícita de segregação social e racial, continua a funcionar no cerne da IA para disciplinar o trabalho e reproduzir as hierarquias produtivas do conhecimento. Por conseguinte, a lógica da IA não é apenas a automação do trabalho, mas o reforço destas hierarquias sociais de uma forma indireta. Ao declarar implicitamente o que pode ser automatizado e o que não pode, a IA impôs uma nova métrica da inteligência em cada fase do seu desenvolvimento. Mas comparar a inteligência humana e a inteligência das máquinas implica também um julgamento sobre que comportamento humano ou grupo social é mais inteligente do que outro, que trabalhadores podem ser substituídos e quais não podem. Em última análise, a IA não é apenas um instrumento para automatizar o trabalho, mas também para impor padrões de inteligência mecânica que propagam, de forma mais ou menos invisível, hierarquias sociais de conhecimentos e competências. Tal como acontece com qualquer forma anterior de automatização, a IA não se limita a substituir trabalhadores, mas desloca-os e reestrutura-os numa nova ordem social.

A automação da automação

Se observarmos atentamente como os instrumentos estatísticos concebidos para avaliar as competências cognitivas e discriminar a produtividade das pessoas se transformaram em algoritmos, torna-se evidente um aspecto mais profundo da automação. De fato, o estudo da metrologia do trabalho e dos comportamentos revela que a automação emerge, em alguns casos, da transformação dos próprios instrumentos de medição em tecnologias cinéticas. Os instrumentos de quantificação do trabalho e de discriminação social tornaram-se “robôs” por direito próprio. Antes da psicometria, se poderia referir a forma como o relógio utilizado para medir o tempo de trabalho na fábrica foi mais tarde implementado por Babbage para a automatização do trabalho mental na Máquina Diferencial. Os cibernéticos, como Norbert Wiener, continuaram a considerar o relógio como um modelo-chave tanto para o cérebro como para o computador. A este respeito, o historiador da ciência Henning Schmidgen observou como a cronometria dos estímulos nervosos contribuiu para a consolidação da metrologia cerebral e também para o modelo de redes neurais de McCulloch e Pitts [20]. A teoria da automação que este livro ilustrou não aponta, portanto, apenas para a emergência de máquinas a partir da lógica da gestão do trabalho, mas também a partir dos instrumentos e métricas para quantificar a vida humana em geral e torná-la produtiva.

Este livro procurou mostrar que a IA é o culminar da longa evolução da automação do trabalho e da quantificação da sociedade. Os modelos estatísticos da aprendizagem automática não parecem, de fato, ser radicalmente diferentes da concepção das máquinas industriais, mas antes homólogos a elas: são, de fato, constituídos pela mesma inteligência analítica das tarefas e dos comportamentos coletivos, embora com um grau de complexidade mais elevado (isto é, número de parâmetros). Tal como as máquinas industriais, cuja concepção surgiu gradualmente através de tarefas de rotina e de ajustes por tentativa e erro, os algoritmos de aprendizagem automática adaptam o seu modelo interno aos padrões dos dados de treino através de um processo comparável de tentativa e erro. Pode dizer-se que a concepção de uma máquina, bem como a de um modelo de um algoritmo estatístico, seguem uma lógica semelhante: ambos se baseiam na imitação de uma configuração externa de espaço, tempo, relações e operações. Na história da IA, isto era tão verdadeiro para o perceptron de Rosenblatt (que visava registar os movimentos do olhar e as relações espaciais do campo visual) como para qualquer outro algoritmo de aprendizagem de máquinas atual (por exemplo, máquinas de vetores de apoio, redes bayesianas, modelos de transformadores).

Enquanto a máquina industrial incorpora o diagrama da divisão do trabalho de uma forma determinada (pensemos nos componentes e nos “graus de liberdade” limitados de um tear têxtil, de um torno ou de uma escavadora mineira), os algoritmos de aprendizagem automática (especialmente os modelos recentes de IA com um vasto número de parâmetros) podem imitar atividades humanas complexas [21]. Embora com níveis problemáticos de aproximação e enviesamento, um modelo de aprendizagem automática é um artefato adaptativo que pode codificar e reproduzir as mais diversas configurações de tarefas. Por exemplo, um mesmo modelo de aprendizagem automática pode imitar tanto o movimento de braços robóticos em linhas de montagem como as operações do condutor de um automóvel autônomo; o mesmo modelo pode também traduzir entre línguas tanto como descrever imagens com palavras coloquiais.

O surgimento de grandes modelos de base nos últimos anos (por exemplo, BERT, GPT, CLIP, Codex) demonstra como um único algoritmo de aprendizagem profunda pode ser treinado num vasto conjunto de dados integrado (incluindo texto, imagens, fala, dados estruturados e sinais 3D) e utilizado para automatizar uma vasta gama das chamadas tarefas a jusante (resposta a perguntas, análise de sentimentos, extração de informações, geração de texto, legendagem de imagens, geração de imagens, transferência de estilos, reconhecimento de objetos, seguimento de instruções, etc.) [22]. Pela forma como foram construídos com base em grandes repositórios de patrimônio cultural, conhecimento coletivo e dados sociais, os grandes modelos de base são a aproximação mais próxima da mecanização do “intelecto geral” que foi prevista na era industrial. Um aspecto importante da aprendizagem automática que os modelos de base demonstram é que a automação de tarefas individuais, a codificação do patrimônio cultural e a análise de comportamentos sociais não têm qualquer distinção técnica: podem ser realizadas por um único e mesmo processo de modelação estatística.

Em conclusão, a aprendizagem automática pode ser vista como o projeto de automatizar o próprio processo de concepção de máquinas e de criação de modelos – ou seja, a automação da teoria laboral da própria automação. Neste sentido, a aprendizagem automática e, especificamente, os modelos de grandes fundações representam uma nova definição de Máquina Universal, pois a sua capacidade não se limita a executar tarefas computacionais, mas a imitar o trabalho e os comportamentos coletivos em geral. O avanço que a aprendizagem automática passou a representar não é, portanto, apenas a “automação da estatística”, como a aprendizagem automática é por vezes descrita, mas a automação da automação, trazendo este processo para a escala do conhecimento coletivo e do patrimônio cultural [23]. Além disso, a aprendizagem automática pode ser considerada como a prova técnica da integração progressiva da automação do trabalho e da governação social. Emergindo da imitação da divisão do trabalho e da psicometria, os modelos de aprendizagem automática evoluíram gradualmente para um paradigma integrado de governança que a análise de dados empresariais e os seus vastos centros de dados bem exemplificam.

Desfazendo o Algoritmo Mestre

Tendo em conta a dimensão crescente dos conjuntos de dados, os custos de formação dos grandes modelos e o monopólio da infraestrutura de computação em nuvem que é necessário para que algumas empresas como a Amazon, a Google e a Microsoft (e as suas congéneres asiáticas Alibaba e Tencent) hospedarem esses modelos, tornou-se evidente para todos que a soberania da IA continua a ser um assunto difícil à escala geopolítica. Além disso, a confluência de diferentes aparelhos de governança (ciência climática, logística global e até cuidados de saúde) para o mesmo hardware (computação em nuvem) e software (aprendizagem de máquina) assinala uma tendência ainda mais forte para a monopolização. Para além da notória questão da acumulação de poder, a ascensão dos monopólios de dados aponta para um fenômeno de convergência técnica que é fundamental para este livro: os meios de trabalho tornaram-se os mesmos meios de medição e, do mesmo modo, os meios de gestão e logística tornaram-se os mesmos meios de planejamento econômico.

Isto também se tornou evidente durante a pandemia de Covid-19, quando foi criada uma grande infraestrutura para acompanhar, medir e prever os comportamentos sociais [24]. Esta infraestrutura, sem precedentes na história dos cuidados de saúde e da biopolítica, não foi, no entanto, criada ex nihilo, mas construída a partir de plataformas digitais existentes que orquestram a maior parte das nossas relações sociais. Sobretudo durante os períodos de confinamento, o mesmo meio digital foi utilizado para trabalhar, fazer compras, comunicar com a família e os amigos e, eventualmente, para os cuidados de saúde. As métricas digitais do corpo social, como a geolocalização e outros metadados, foram fundamentais para os modelos preditivos do contágio global, mas elas são usadas há muito tempo para acompanhar o trabalho, a logística, o comércio e a educação. Filósofos como Giorgio Agamben afirmaram que esta infraestrutura prolongou o estado de emergência da pandemia, quando, na verdade, a sua utilização nos cuidados de saúde e na biopolítica dá continuidade a décadas de monitorização da produtividade econômica do corpo social, que passou despercebida a muitos [25].

A convergência técnica das infraestruturas de dados revela também que a automação contemporânea não se limita à automação do trabalhador individual, como na imagem estereotipada do robô humanoide, mas à automação dos patrões e gestores da fábrica, como acontece nas plataformas da gig economy. Dos gigantes de logística (Amazon, Alibaba, DHL, UPS, etc.) e da mobilidade (Uber, Share Now, Foodora, Deliveroo) às redes sociais (Facebook, TikTok, Twitter), o capitalismo de plataforma é uma forma de automação que, na realidade, não substitui os trabalhadores, mas multiplica-os e governa-os de novo. Desta vez, não se trata tanto da automação do trabalho, mas sim da automação da gestão. Sob esta nova forma de gestão algorítmica, todos nós passamos a ser trabalhadores individuais de um vasto autômato composto por utilizadores globais, “turkers“, prestadores de cuidados, condutores e cavaleiros de muitos tipos. O debate sobre o receio de que a IA venha a substituir totalmente os empregos é errôneo: na chamada economia das plataformas, os algoritmos substituem a gestão e multiplicam os empregos precários. Embora as receitas da gig economy continuem a ser pequenas em relação aos setores locais tradicionais, ao utilizarem a mesma infraestrutura a nível mundial, estas plataformas estabeleceram posições de monopólio. O poder do novo “mestre” não está na automatização de tarefas individuais, mas na gestão da divisão social do trabalho. Contra a previsão de Alan Turing, é o mestre, e não o trabalhador, que o robô veio substituir em primeiro lugar [26].

Nos perguntamos qual seria a possibilidade de intervenção política num espaço tão tecnologicamente integrado e se o apelo ao “redesign da IA” que as iniciativas populares e institucionais defendem é razoável ou praticável. Este apelo deveria começar por responder a uma questão mais premente: Como é que é possível “redesenhar” os monopólios de dados e conhecimento em grande escala [27]? À medida que grandes empresas como a Amazon, a Walmart e a Google conquistaram um acesso único às necessidades e aos problemas de todo o corpo social, um movimento crescente pede não só que estas infraestruturas se tornem mais transparentes e responsáveis, mas também que sejam coletivizadas como serviços públicos (como sugeriu Fredric Jameson, entre outros), ou que sejam substituídas por alternativas públicas (como defendeu Nick Srnicek [28]). Mas qual seria uma forma diferente de projetar essas alternativas?

Tal como a teoria da automação deste livro sugere, qualquer aparelho tecnológico e institucional, incluindo a IA, é uma cristalização de um processo social produtivo. Os problemas surgem porque essa cristalização “ossifica” e reitera estruturas, hierarquias e desigualdades do passado. Para criticar e desconstruir artefatos complexos como os monopólios de IA, devemos começar por fazer o trabalho meticuloso do desconexão (“deconnectionism”) , desfazendo – passo a passo, arquivo a arquivo, conjunto de dados a conjunto de dados, metadado a metadado, correlação a correlação, padrão a padrão – o tecido social e econômico que os constitui na origem. Este trabalho já está sendo desenvolvido por uma nova geração de acadêmicos que estão a dissecar a cadeia de produção global de IA, especialmente os que utilizam métodos de “pesquisa-ação”. Destacam-se, entre muitos outros, a plataforma Turkopticon de Lilly Irani, utilizada para “interromper a invisibilidade do trabalhador” na plataforma de trabalho temporário Amazon Mechanical Turk; a investigação de Adam Harvey sobre conjuntos de dados de treino para reconhecimento facial, que expôs as violações maciças da privacidade das empresas de IA e da investigação acadêmica; e o trabalho do coletivo Politically Mathematics da Índia, que analisou o impacto econômico dos modelos preditivos da Covid-19 nas populações mais pobres e recuperou a matemática como um espaço de luta política (ver o seu manifesto citado no início deste texto).

A teoria laboral da automação é um princípio analítico para estudar o novo “olho do mestre” que os monopólios de IA encarnam. No entanto, precisamente devido à sua ênfase no processo de trabalho e nas relações sociais que constituem os sistemas técnicos, é também um princípio sintético e “sociogênico” (para utilizar o termo programático de Frantz Fanon e Sylvia Wynter [29]). O que está no cerne da teoria laboral da automação é, em última análise, uma prática de autonomia social. As tecnologias só podem ser julgadas, contestadas, reapropriadas e reinventadas se se inserirem na matriz das relações sociais que originalmente as constituíram. As tecnologias alternativas devem situar-se nestas relações sociais, de uma forma não muito diferente do que os movimentos cooperativos fizeram nos séculos passados. Mas construir algoritmos alternativos não significa torná-los mais éticos. Por exemplo, a proposta de codificação de regras éticas na IA e nos robôs parece altamente insuficiente e incompleta, porque não aborda diretamente a função política geral da automação no seu cerne [30].

O que é necessário não é nem o tecnosolucionismo nem o tecnopauperismo, mas sim uma cultura de invenção, concepção e planejamento que se preocupe com as comunidades e o coletivo, sem nunca ceder totalmente a agência e a inteligência à automação. O primeiro passo da tecnopolítica não é tecnológico, mas político. Trata-se de emancipar e descolonizar, quando não de abolir na totalidade, a organização do trabalho e das relações sociais em que se baseiam os sistemas técnicos complexos, os robôs industriais e os algoritmos sociais – especificamente o sistema salarial, os direitos de propriedade e as políticas de identidade que lhes estão subjacentes. As novas tecnologias do trabalho e da sociedade só podem se basear nesta transformação política. É evidente que este processo se desenrola através do desenvolvimento de conhecimentos não só técnicos mas também políticos. Um dos efeitos problemáticos da IA na sociedade é a sua influência epistêmica – a forma como transforma a inteligência em inteligência de máquina e promove implicitamente o conhecimento como conhecimento processual. O projeto de uma epistemologia política que transcenda a IA terá, no entanto, de transmutar as formas históricas do pensamento abstrato (matemático, mecânico, algorítmico e estatístico) e integrá-las como parte da caixa de ferramentas do próprio pensamento crítico. Ao confrontar a epistemologia da IA e o seu regime de extrativismo do conhecimento, é necessário aprender uma mentalidade técnica diferente, uma “contra-inteligência” coletiva.


Notas:

[1]: “Disruption: A Manifesto,” Logic Magazine, no. 1, março de 2017.
[2]: Politically Mathematics collective, “Politically Mathematics Manifesto,” 2019
[3]: Karl Marx, Capital, Livro 1: O processo de produção do capital, p.330. Trad. Rubens Enderle. Boitempo, 2013
[4]: Veja o debate sobre o processo trabalhista em: Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twentieth Century (Monthly Review Press, 1974); David Noble, Forces of Production: A Social History of Industrial Automation (Oxford University Press, 1984).
[5]: Émile Durkheim, “Da Divisão do Trabalho Social” (1893), publicado no Brasil com esse título, por entre outras, a WMF Martins Fontes, em tradução de Eduardo Brandão.
[6]: Kurt Lewin, “Die Sozialisierung des Taylorsystems: Eine grundsätzliche Untersuchung zur Arbeits- und Berufspsychologie,” Schriftenreihe Praktischer Sozialismus, vol. 4 (1920) – sem tradução para o português. Também ver Simon Schaupp, “Taylorismus oder Kybernetik? Eine kurze ideengeschichte der algorithmischen arbeitssteuerung,” WSI-Mitteilungen 73, no. 3, (2020).
[7]: Gaston Bachelard, “La dialectique de la durée” (Boivin & Cie, 1936), traduzido no Brasil para “A Dialética da Duração”, publicado pela Editora Ática em 1993. Henri Lefebvre, “Éléments de rythmanalyse” (Éditions Syllepse, 1992), último livro do autor, publicado no Brasil como “Elementos de Ritmanálise e outros Ensaios” pela Editora Consequência em 2021.
[8]: Frederic Sellet, “Chaîne Opératoire: The Concept and Its Applications,” Lithic Technology 18, no. 1–2 (1993). Sem tradução no Brasil
[9]: Gilles Deleuze, “Postscript on the Society of Control,” October, no. 59 (1992). Publicado no Brasil em DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34,1992. Ver também David Savat, “Deleuze’s Objectile: From Discipline to Modulation,” in Deleuze and New Technology, ed. Mark Poster and David Savat (Edinburgh University Press, 2009).
[10]: Matthew L. Jones, “Querying the Archive: Data Mining from Apriori to PageRank,” in Science in the Archives, ed. Lorraine Daston (University of Chicago Press, 2017); Matteo Pasquinelli, “Google’s PageRank Algorithm: A Diagram of Cognitive Capitalism and the Rentier of the Common Intellect,” in Deep Search, ed. Konrad Becker and Felix Stalder (Transaction Publishers, 2009).
[11]: Irina Kaldrack and Theo Röhle, “Divide and Share: Taxonomies, Orders, and Masses in Facebook’s Open Graph,” Computational Culture, no. 4 (November 2014); Tiziana Terranova, “Securing the Social: Foucault and Social Networks,” in Foucault and the History of Our Present, ed. S. Fuggle, Y. Lanci, and M. Tazzioli (Palgrave Macmillan, 2015).
[12]: Grégoire Chamayou, “Pattern-of-Life Analysis,” chap. 5 in A Theory of the Drone (New Press, 2014). Publicado no Brasil como “Teoria do Drone”, pela Cosac & Naify em 2015. Veja também Matteo Pasquinelli, “Metadata Society,” keyword entry in Posthuman Glossary, ed. Rosi Braidotti and Maria Hlavajova (Bloomsbury, 2018), e “Arcana Mathematica Imperii: The Evolution of Western Computational Norms,” in Former West, ed. Maria Hlavajova and Simon Sheikh (MIT Press, 2017).
[13]: Andrea Brighenti and Andrea Pavoni, “On Urban Trajectology: Algorithmic Mobilities and Atmocultural Navigation,” Distinktion: Journal of Social Theory 24, no. 1 (2001).
[14]: M. Giermindl et al., “The Dark Sides of People Analytics: Reviewing the Perils for Organisations and Employees,” European Journal of Information Systems 33, no. 3 (2022). Veja também Alex Pentland, “Social Physics: How Social Networks Can Make Us Smarter” (Penguin, 2015).
[15]: A palavra “estatística” significava originalmente o conhecimento que o Estado possuía sobre seus próprios assuntos e territórios: um conhecimento que tinha de ser mantido em segredo. Em: Michel Foucault, Security, Territory, Population (Segurança, Território, População): Lectures at the Collège de France 1977-1978, trans. Graham Burchell (Palgrave Macmillan, 2009).
[16]: Sobre a influência da metrologia cerebral na história da IA, ver Simon Schaffer: “Os julgamentos de que as máquinas são inteligentes envolveram técnicas para medir os resultados do cérebro. Essas técnicas mostram como o comportamento discricionário está ligado ao status daqueles que dependem da inteligência para sua legitimidade social.” Schaffer, “OK Computer”, em Ansichten der Wissenschaftsgeschichte, ed., Michael Hagner (Fischer, 2001) Michael Hagner (Fischer, 2001). Sobre a metrologia inicial do sistema nervoso, veja Henning Schmidgen, The Helmholtz Curves: Tracing Lost Times (Fordham University Press, 2014).
[17]: Luke Stark, “Algorithmic Psychometrics and the Scalable Subject,” Social Studies of Science 48, no. 2 (2018).
[18]: Ruha Benjamin, Race after Technology: Abolitionist Tools for the New Jim Code (Polity, 2019); Wendy Chun, Discriminating Data: Correlation, Neighborhoods, and the New Politics of Recognition (MIT Press, 2021). Tarcízio Silva fez uma boa análise deste livro em seu blog.
[19]: Sobre a imbricação de colonialismo, racismo e tecnologias digitais, veja Jonathan Beller, The World Computer: Derivative Conditions of Racial Capitalism (Duke University Press, 2021); Seb Franklin, The Digitally Disposed: Racial Capitalism and the Informatics of Value (University of Minnesota Press, 2021). No Brasil, ver “Racismo Algorítmico: Inteligência Artificial e Discriminação nas Redes Digitais”, de Tarcízio SIlva, lançado pelas Edições Sesc em 2022;“Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal“”, org. de Sérgio Amadeu, Joyce Souza e Rodolfo Avelino lançada em 2021 pela Autonomia Literária; e “Colonialismo Digital: Por uma crítica hacker-fanoniana”, de Deivison Faustino e Walter Lippold, publicado pela Boitempo em 2023.
[20]: Henning Schmidgen, “Cybernetic Times: Norbert Wiener, John Stroud, and the ‘Brain Clock’ Hypothesis”, History of the Human Sciences 33, no. 1 (2020). Sobre a cibernética e a “medição da racionalidade”, veja Orit Halpern, “Beautiful Data: A History of Vision and Reason since 1945” (Duke University Press, 2015), 173.
[21]: Em mecânica, os graus de liberdade (DOF) de um sistema, como uma máquina, um robô ou um veículo, são o número de parâmetros independentes que definem sua configuração ou estado. Normalmente, diz-se que as bicicletas têm dois graus de liberdade. Um braço robótico pode ter muitos. Um modelo grande de aprendizado de máquina, como o GPT, pode ter mais de um trilhão.
[22]: Rishi Bommasani et al., On the Opportunities and Risks of Foundation Models, Center for Research on Foundation Models at the Stanford Institute for Human-Centered Artificial Intelligence, 2021
[23]: Para uma leitura diferente sobre a automação da automação, ver Pedro Domingos, The Master Algorithm: How the Quest for the Ultimate Learning Machine Will Remake Our World (Basic Books, 2015); Luciana Parisi, “Critical Computation: Digital Automata and General Artificial Thinking,” Theory, Culture, and Society 36, no. 2 (March 2019).
[24]: “Breaking Models: Data Governance and New Metrics of Knowledge in the Time of the Pandemic,” workshop, Max Planck Institute for the History of Science, Berlin, and KIM research group, University of Arts and Design, Karlsruhe, September 24, 2021.
[25]: Giorgio Agamben, Where Are We Now? The Epidemic as Politics, trans. V. Dani (Rowman & Littlefield, 2021). Publicado no Brasil como “Em que ponto estamos?”, pela n-1 edições em 2021.
[26]: Min Kyung Lee et al., “Working with Machines: The Impact of Algorithmic and Data-Driven Management on Human Workers,” in Proceedings of the 33rd Annual ACM Conference on Human Factors in Computing Systems, Association for Computing Machinery, New York, 2015; Sarah O’Connor, “When Your Boss Is an Algorithm,” Financial Times, September 8, 2016. See also Alex Wood, “Algorithmic Management Consequences for Work Organisation and Working Conditions,” no. 2021/07, European Commission JRC Technical Report, Working Papers Series on Labour, Education, and Technology, 2021.
[27]: Redesigning AI, ed. Daron Acemoglu (MIT Press), 2021.
[28]: Leigh Phillips and Michal Rozworski, The People’s Republic of Walmart: How the World’s Biggest Corporations Are Laying the Foundation for Socialism (Verso, 2019); Frederic Jameson, Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions (Verso, 2005), 153n22; Nick Srnicek, Platform Capitalism (Polity Press, 2017), 128.
[29]: Sylvia Wynter, “Towards the Sociogenic Principle: Fanon, Identity, the Puzzle of Conscious Experience, and What It Is Like to Be ‘Black,’” in National Identities and Sociopolitical Changes in Latin America, ed. Antonio Gomez-Moriana, Mercedes Duran-Cogan (Routledge, 2001). Veja também Luciana Parisi, “Interactive Computation and Artificial Epistemologies,” Theory, Culture, and Society 38, no. 7–8 (October 2021).
[30]: Frank Pasquale, New Laws of Robotics: Defending Human Expertise in the Age of AI (Harvard University Press, 2020); Dan McQuillan, “People’s Councils for Ethical Machine Learning,” Social Media+ Society 4, no. 2 (2018).

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