Sala Giordano Bruno

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Giordano Bruno foi  condenado à morte em fevereiro de 1600 e obrigado a ouvir sua setença de joelhos.  Desabafou:  "talvez sintam maior temor ao pronunciar essa sentença do  que eu ao ouví-la". Foi queimado na fogueira, no campo dei Fiori, em Roma. Clique aqui para ler a biografia completa de Giordano. 

Biografia 

Giordano Bruno (Italiano: [dʒorˈdaːno ˈbruːno]; em latim: Iordanus Brunus Nolanus; nascido Filippo Bruno, (Nola, Reino de Nápoles, 1548[1]Campo de' Fiori, Roma, 17 de fevereiro de 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor, matemático, poeta, teórico de cosmologia, ocultista hermético e frade dominicano italiano[2][3][4] condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana (Congregação da Sacra, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício) com a acusação de heresia[5] ao defender alegações consideradas erros teológicos. É também referido como Bruno de Nola ou Nolano.[6] É considerado por alguns como um mártir da igreja dos tempos de então, tendo contribuído para avanços significativos do conhecimento do seu tempo.[7] Ele é conhecido por suas teorias cosmológicas, que conceitualmente estenderam o então novo modelo copernicano. Ele propôs que as estrelas fossem sóis distantes cercados por seus próprios planetas e levantou a possibilidade de que esses planetas criassem vida neles próprios, uma posição filosófica conhecida como pluralismo cósmico. Ele também insistiu que o universo é infinito e não poderia ter "centro".

A partir de 1593, Bruno foi julgado por heresia pela Inquisição romana, acusado de negar várias doutrinas católicas essenciais, incluindo a condenação eterna, a Trindade, a divindade de Cristo, a virgindade de Maria e a transubstanciação. O panteísmo de Bruno também era motivo de grande preocupação,[8] assim como seus ensinamentos sobre a transmigração da alma. A Inquisição o considerou culpado e ele foi queimado na fogueira no Campo de' Fiori, em Roma, em 1600. Após sua morte, ganhou fama considerável, sendo particularmente comemorado por comentaristas do século XIX e início do século XX que o consideravam mártir de ciência,[9] embora os historiadores concordem que seu julgamento por heresia não foi uma resposta a seus pontos de vista astronômicos, mas sim uma resposta a seus pontos de vista filosóficos e religiosos.[10][11][12][13][14] Já outros historiadores consideram sim que suas visões cosmológicas foram o principal motivo ou um dos principais da condenação (heresia da pluralidade dos mundos).[15][16][17] O caso de Bruno ainda é considerado um marco na história do livre pensamento e das ciências emergentes.[18][19]

Além da cosmologia, Bruno também escreveu extensivamente sobre a arte da memória, um grupo pouco organizado de técnicas e princípios mnemônicos. A historiadora Frances Yates argumenta que Bruno foi profundamente influenciado pela astrologia árabe (particularmente a filosofia de Averróis[20]), neoplatonismo, hermetismo renascentista e lendas do gênero Gênesis em torno do deus egípcio Tote.[21] Outros estudos de Bruno se concentraram em sua abordagem qualitativa da matemática e sua aplicação dos conceitos espaciais da geometria na linguagem.[22]

Origem e formação

Filho do militar Giovanni Bruno e Fraulissa Savolino,[23] seu nome de batismo era Filippo Bruno.[24] Adotou o nome de Giordano quando ingressou na Ordem Dominicana, aos 15 anos de idade.[24]

No seminário, estudou Aristóteles e Tomás de Aquino, predominantes na doutrina católica da época, doutorando-se em Teologia.

Suas ideias particulares, porém, suscitaram suspeitas por parte da hierarquia da Igreja. Em 1576 foi acusado de heresia e levado a Roma para ser julgado. Poucos meses depois, abandonou o hábito[24] e em 1579 deixou a Itália.[25]

Iniciou-se, então, o período de peregrinação de sua vida. Em Gênova, ainda em 1579, aparentemente, adotou o calvinismo, o que negaria mais tarde, ao ser julgado em Veneza.[24] Acabou sendo excomungado pelos calvinistas e expulso de Gênova.[24] Viajou sucessivamente para França (Toulouse, Paris[24]), Suíça e Inglaterra.[25] Em Londres, onde permaneceu de 1583 a 1585, esteve sob a proteção do embaixador francês, e frequentou o círculo de amigos do poeta inglês Philip Sidney. Em 1585, Bruno retornou a Paris, indo em seguida para Marburgo, Wittenberg, Praga, Helmstedt e Frankfurt, onde conseguiu publicar vários de seus escritos.

Em Roma, o julgamento de Bruno durou oito anos, durante os quais ele foi preso, por último, na Torre de Nola. Alguns documentos importantes sobre o julgamento estão perdidos, mas outros foram preservados e entre eles um resumo do processo, que foi redescoberto em 1999.[26] As numerosas acusações contra Bruno, com base em alguns de seus livros, bem como em relatos de testemunhas, incluíam blasfêmia, conduta imoral e heresia em matéria de teologia dogmática e envolvia algumas das doutrinas básicas da sua filosofia e cosmologia. Luigi Firpo lista estas acusações feitas contra Bruno pelo tribunal local:[27]

Giovanni Mocenigo (1558-1623), membro de um das mais ilustres famílias venezianas, encontrou Bruno em Frankfurt em 1590 e convidou-o para ir a Veneza, a pretexto de lhe ensinar mnemotécnica, a arte de desenvolver a memória, em que Bruno era perito. Segundo Will Durant[28] Bruno estava havia muitos anos na lista dos procurados pela Inquisição, ansiosa por prendê-lo por suas doutrinas subversivas, mas Veneza gozava da fama de proteger tais foragidos, e o filósofo sentiu-se encorajado a cruzar os Alpes e regressar. Como Mocenigo quisesse usar as artes da memória com fins comerciais, segundo alguns, ou esperasse obter de Bruno ensinamentos de ocultismo para aumentar seu poder, prejudicar seus concorrentes e inimigos, segundo outros, Bruno se negou a ensiná-lo.[29] Segundo Durant, Mocenigo, católico piedoso, assustava-se com "as heresias que o loquaz e incauto filósofo lhe expunha", e perguntou a seu confessor se devia denunciar Bruno à Inquisição. O sacerdote recomendou-lhe esperar e reunir provas, no que Mocenigo assentiu; mas quando Bruno anunciou seu desejo de regressar a Frankfurt, o nobre denunciou-o ao Santo Ofício. Mocenigo trancou-o num quarto e chamou os agentes da Inquisição para levarem-no preso, acusado de heresia. Bruno foi transferido para o cárcere do Santo Ofício de San Domenico de Castello, no dia 23 de maio de 1592.[30]

No último interrogatório pela Inquisição do Santo Ofício, não abjurou e, no dia 8 de fevereiro de 1600, foi condenado à morte na fogueira. Obrigado a ouvir a sentença ajoelhado, Giordano Bruno teria respondido com um desafio: Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis quam ego accipiam ("Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu ao ouvi-la").[31]

A execução de sua sentença ocorreu no dia 17 de fevereiro de 1600. Na ocasião teve a voz calada por um objeto de madeira posto em sua boca.[32]

Ideário

Ver também: Magia no Renascimento § Bruno

Foi trágico o desfecho do processo contra Giordano Bruno (século XVI), acusado de panteísmo e queimado vivo por defender com exaltação poética a doutrina da infinitude do Universo e por concebê-lo não como um sistema rígido de seres, articulados em uma ordem dada desde a eternidade, mas como um conjunto que se transforma continuamente.[33]

Um dos pontos chave de sua cosmologia é a tese do universo infinito e povoado por uma infinidade de estrelas, como o Sol, e por outros planetas, nos quais, assim como na Terra, existiria vida inteligente.[34] Sua perspectiva se define a partir das ideias do cardeal Nicolau da Cusa, de Copérnico e de Giovanni Battista della Porta. Bruno é às vezes citado como o primeiro a propor que o universo é infinito, o que ele fez durante seu tempo na Inglaterra, mas um cientista inglês, Thomas Digges, apresentou essa ideia em um trabalho publicado em 1576, cerca de oito anos antes de Bruno,[35] e também filósofos da antiguidade clássica como Arquitas e Lucrécio. Um universo infinito e a possibilidade de vida alienígena também já haviam sido sugeridos pelo cardeal católico Nicolau de Cusa em "Sobre a Douta Ignorância", publicado em 1440.

As suas ideias sobre a relatividade anteciparam as de Galileu:[36][37] num universo infinito, qualquer perspectiva de qualquer objeto é sempre relativa à posição do observador, há infinitos referenciais possíveis e não existe nenhum privilegiado em relação aos demais.[38] Além de defender a existência de planetas extrassolares.[38]

Seu livro Spaccio de la Bestia Trionfante era um ataque à religião e mostrava o panteísmo do seu autor.[39]

Segundo John Gribbin, em seu livro Science: A History (1543-2001), Bruno filiou-se ao hermetismo, baseado em escrituras egípcias, da época de Moisés. Entre outras referências, esse movimento utilizava os ensinamentos atribuídos ao deus egípcio Thoth, cujo equivalente grego era Hermes (daí hermetismo), conhecido pelos seguidores como Hermes Trismegisto. Bruno teria abraçado a teoria do padre Copérnico porque ela se encaixava bem na ideia egípcia de um universo centrado no sol.

Deus seria a força criadora perfeita que forma o mundo e que seria imanente a ele. Bruno defendia a crença nos poderes humanos extraordinários, a crença de que todas as coisas tinham alma, criou a Geometria Sagrada e enfrentou abertamente a Igreja Católica,[40] a Igreja Luterana, Calvinista, sendo excomungado de todas elas.

A contribuição geral de Bruno para o nascimento da ciência moderna ainda é controversa. Alguns estudiosos seguem Frances Yates, enfatizando a importância das ideias de Bruno sobre o universo ser infinito e sem estrutura geocêntrica como ponto de cruzamento crucial entre o antigo e o novo. Outros vêem na ideia de Bruno de múltiplos mundos instanciando as infinitas possibilidades de um indivisível e pristino Um,[41] um precursor da interpretação de muitos mundos de Everett da mecânica quântica.[42]

Enquanto muitos acadêmicos observam a posição teológica de Bruno como panteísmo, vários a descreveram como pandeísmo e alguns como panenteísmo.[43][44] O físico e filósofo Max Bernhard Weinstein, em seu Welt und Lebensanschauungen, Hervorgegangen aus Religion, Philosophie und Naturerkenntnis ("Visões da vida e do mundo emergindo da religião, filosofia e natureza"), escreveu que o modelo teológico do pandeísmo era fortemente expresso nos ensinamentos de Bruno, especialmente no que diz respeito à visão de uma divindade para a qual "o conceito de Deus não está separado do conceito do universo".[45] No entanto, Otto Kern faz exceção ao que considera as afirmações gerais de Weinstein de que Bruno, assim como outros filósofos históricos como João Escoto Erígena, Anselmo de Canterbury, Nicolau de Cusa, Mendelssohn e Lessing seriam pandeístas ou se inclinavam para o pandeísmo.[46] O editor da Discover, Corey S. Powell, também descreveu a cosmologia de Bruno como pandeística, escrevendo que era "uma ferramenta para avançar uma teologia animista ou pandeísta",[47] e essa avaliação de Bruno como pandeísta foi concordada pelo escritor científico Michael Newton Keas e o escritor da The Daily Beast David Sessions.[48]

Filosofia\

Giordano Bruno foi o grande defensor da ideia de infinito.[49]

"Nós declaramos esse espaço infinito, dado que não há qualquer razão, conveniência, possibilidade, sentido ou natureza que lhe trace um limite." (Giordano Bruno, Acerca do Infinito Universo e Mundos, 1584), com base nas ideias do cardeal Nicolau de Cusa.

Bruno era hilozoísta (pensava que tudo tem vida) e panpsiquista (pensava que tudo tem uma natureza psíquica, uma alma).

"A Terra e os astros (...), como eles dispensam vida e alimento às coisas, restituindo toda matéria que emprestam, são eles próprios dotados de vida, em uma medida bem maior ainda; e sendo vivos, é de maneira voluntária, ordenada e natural, segundo um princípio intrínseco, que eles se movem em direção às coisas e aos espaços que lhes convêm" (A ceia de cinzas).

"Todas as formas de coisas naturais têm almas? Todas as coisas são animadas? pergunta Dicson.[50] Theophilo, porta-voz de Bruno, responde: Sim, uma coisa, por minúscula que seja, encerra em si uma parte de substância espiritual, a qual, se encontra o sujeito [suporte] adequado, torna-se planta, animal (...); porque o espírito se encontra em todas as coisas, e não há mínimo corpúsculo que não o contenha em certa medida e que não seja por ele animado." (Causa, Princípio e Unidade, 1584).

"E o que se pode dizer de cada parcela do grande Todo, átomo, mônada, pode se dizer do universo como totalidade. O mundo abriga em seu coração a Alma do mundo" (idem).

"O mundo é infinito porque Deus é infinito. Como acreditar que Deus , ser infinito, possa ter se limitado a si mesmo criando um mundo fechado e limitado?" (idem)

"Não é fora de nós que devemos procurar a divindade, pois que ela está do nosso lado, ou melhor, em nosso foro interior, mais intimamente em nós do que estamos em nós mesmos." (A ceia de cinzas).

Visões retrospectivas de Bruno

Posição tardia do Vaticano

O Vaticano publicou poucas declarações oficiais sobre o julgamento e execução de Bruno. Em 1942, o cardeal Giovanni Mercati, que descobriu vários documentos perdidos relacionados ao julgamento de Bruno, afirmou que a Igreja estava perfeitamente justificada em condená-lo. No 400º aniversário da morte de Bruno, em 2000, o cardeal Angelo Sodano declarou a morte de Bruno como um "episódio triste", mas, apesar de seu pesar, defendeu os promotores de Bruno, afirmando que os inquisidores "tinham o desejo de servir à liberdade e promover o bem comum e fizeram todo o possível para salvar sua vida".[51] No mesmo ano, o papa João Paulo II fez um pedido de desculpas geral pelo "uso da violência que alguns cometeram a serviço da verdade".[52]

Um mártir para a ciência

Alguns autores caracterizaram Bruno como um "mártir da ciência", sugerindo paralelos com o caso Galileu, que começou por volta de 1610.[53] "Não deve ser suposto", escreve A. M. Paterson, de Bruno, e seu "sistema solar heliocêntrico", que ele "alcançou suas conclusões através de alguma revelação mística....Seu trabalho é uma parte essencial dos desenvolvimentos científicos e filosóficos que ele iniciou".[54] Paterson repete Hegel ao escrever que Bruno "introduz uma moderna teoria do conhecimento que compreende todas as coisas naturais do universo a serem conhecidas pela mente humana através da estrutura dialética da mente".[55]

Ingegno escreve que Bruno adotou a filosofia de Lucrécio, "destinada a libertar o homem do medo da morte e dos deuses".[56] Os personagens do livro Causa, Princípio e Unidade de Bruno desejam "melhorar a ciência especulativa e o conhecimento das coisas naturais" e alcançar uma filosofia "que produza a perfeição do intelecto humano de maneira mais fácil, eminente e mais próxima da verdade da natureza".[57]

Outros estudiosos se opõem a essas opiniões e afirmam que o martírio de Bruno para a ciência é exagerado ou totalmente falso. Para Yates, enquanto "liberais do século XIX" foram levados "a êxtases" sobre o copernicanismo de Bruno, "Bruno empurra o trabalho científico de Copérnico de volta a um estágio pré-científico, de volta ao hermetismo, interpretando o diagrama copernicano como um hieróglifo de mistérios divinos".[58]

Segundo o historiador Mordechai Feingold, "Tanto os admiradores quanto os críticos de Giordano Bruno basicamente concordam que ele era pomposo e arrogante, valorizando muito suas opiniões e mostrando pouca paciência com quem até discordava dele levemente". Discutindo a experiência da rejeição de Bruno quando ele visitou a Universidade de Oxford, Feingold sugere que "poderia ter sido a maneira de Bruno, sua linguagem e sua autoafirmação, e não suas ideias" que causaram ofensa.[59]

Heresia teológica

Em suas Palestras sobre a História da Filosofia, Hegel escreve que a vida de Bruno representava "uma rejeição ousada de todas as crenças católicas baseadas na mera autoridade".[60]

Alfonso Ingegno afirma que a filosofia de Bruno "desafia os desenvolvimentos da Reforma, põe em questão o valor da verdade de todo o cristianismo e afirma que Cristo perpetrou um engano na humanidade... Bruno sugere que agora podemos reconhecer a lei universal que controla o devir perpétuo de todas as coisas em um universo infinito".[61] A. M. Paterson diz que, embora não tenhamos mais uma cópia da condenação papal oficial de Bruno, suas heresias incluíam "a doutrina do universo infinito e dos inúmeros mundos" e suas crenças "sobre o movimento da terra".[62]

Michael White observa que a Inquisição pode ter perseguido Bruno no início de sua vida com base em sua oposição a Aristóteles, interesse no arianismo, leitura de Erasmo e posse de textos proibidos. White considera que a heresia posterior de Bruno era "multifacetada" e pode ter se apoiado em sua concepção de mundos infinitos. "Esta foi talvez a noção mais perigosa de todas ... Se existiam outros mundos com seres inteligentes vivendo lá, eles também tiveram suas visitações? A ideia era completamente impensável".[63]

Frances Yates rejeita o que ela descreve como a "lenda de que Bruno foi processado como um pensador filosófico, foi queimado por suas visões ousadas sobre inúmeros mundos ou sobre o movimento da terra". Yates, no entanto, escreve que "a Igreja estava ... perfeitamente dentro de seus direitos se incluísse pontos filosóficos na condenação das heresias de Bruno" porque "os pontos filosóficos eram bastante inseparáveis ​​das heresias".[64]

De acordo com a Stanford Encyclopedia of Philosophy, "em 1600 não havia posição católica oficial no sistema copernicano, e certamente não era uma heresia. Quando Bruno [...] foi queimado na fogueira como herege, não teve nada a ver com seus escritos em apoio à cosmologia copernicana".[65]

O site dos Arquivos Secretos do Vaticano, discutindo um resumo dos procedimentos legais contra Bruno em Roma, declara:

"Nas mesmas salas em que Giordano Bruno foi interrogado, pelas mesmas razões importantes da relação entre ciência e fé, no início da nova astronomia e no declínio da filosofia de Aristóteles, dezesseis anos depois, o cardeal Bellarmino, que então contestou as teses heréticas de Bruno, convocou Galileu Galilei, que também enfrentou um famoso julgamento inquisitorial que, felizmente para ele, terminou com uma simples abjuração".[66]

Obras

Obras disponíveis na Internet

Filmografia

Ver também

Notas e referências

Notas

Referências

Bibliografia

Em língua portuguesa

E, outros idiomas

O Commons possui imagens e outros ficheiros sobre Giordano Bruno

O Wikiquote possui citações de ou sobre: Giordano Bruno

Ligações externas

A literatura self do capitalismo tardio

Professora provoca: obsessão pela experiência individual está multiplicando a produção de arte narcísica, em ensaios pessoais e autoficção. Para ela, isso é o produto de uma vida comandada pelo imediato e de uma ecologia social cada vez mais fraturada

Jacobin Brasil, via Outras Palavras (expandir)

Anna Kornbluh em entrevista a Daniel Zamora, na Jacobin

A cultura contemporânea é obcecada pela experiência, desde pinturas imersivas até romances narrados em primeira pessoa. Em todo o lado, a ideia de que é possível falar e escrever de uma forma que não depende fundamentalmente da identidade de alguém está sob ataque. Anna Kornbluh, teórica literária e autora de Immediacy: Or, The Style of Too Late Capitalism (Verso, 2024), conversou com a Jacobin sobre as causas desses desenvolvimentos na esfera cultural. Numa conversa ampla, ela argumenta que eles são o paralelo estético de mudanças semelhantes que ocorrem no mundo da economia.

Leia a entrevista

Você começa o livro discutindo a proliferação das chamadas exposições de pintura “imersivas”. As “experiências” de Vincent van Gogh, Frida Kahlo ou Claude Monet estão agora surgindo em todo o mundo. Uma maneira de olhar para este desenvolvimento é a partir da perspectiva econômica. Tais exposições são obviamente facilmente replicáveis ​​e mais baratas do que as exposições mais tradicionais. Mas você argumenta que há algo mais acontecendo. Você poderia dizer o que é isso?

O livro tenta pensar por que há tantas pressões sobre a representação no presente. Existe uma sensação geral de que as pessoas não têm tempo para a arte, que não podemos permitir-nos a lentidão de pensamento que a representação exige. Se você estiver diante de uma pintura de Van Gogh, seu significado não será evidente; talvez os sapatos no chão sejam o ponto, talvez o ângulo de perspectiva seja o ponto, talvez algo sobre o mercado de pigmento amarelo seja o ponto, e por isso temos que processar o que está diante de nós.

Se você fizer uma pose de ioga na Aula Matinal Imersiva de Van Gogh, a contemplação não é o objetivo; a fusão sensorial total é. Esta mudança da contemplação para a experiência intensa é vendida como libertadora, mas é paralela a outras mudanças sociais e econômicas que não são tão grandes.

Nestas exposições, a ênfase está na experiência: experiência corporal, sensorial, avassaladora. A ênfase não está na obra de arte, nem nas técnicas pelas quais ela é mediada e na contemplação que elas solicitam. Parte da razão para o aumento da proeminência deste tipo de arte é, como você diz, que ela é barata. De um certo ponto de vista, isto faz parte de um processo de democratização. Mas temos de compreender isso também como um corte da obra de arte e, portanto, como uma rejeição profunda da arte.

Além disso, temos de compreender que este é também um esforço econômico: eliminar o intermediário faz parte do modelo dos grandes negócios na indústria do século XXI, desde o compartilhamento de automóveis até à corretagem eletrônica. Os lucros vêm menos da produção e mais da troca. Quando o nosso estilo estético dominante abraça mensagens diretas e acesso instantâneo, ele se agarra demasiadamente às relações capitalistas em vez de as iluminar.

Você também argumenta que hoje não estamos enfrentando uma crise de historicidade, mas de “futuridade”. O que isso significa?

“Crise de historicidade” é o termo usado pelo teórico literário Fredric Jameson para a estética do pós-modernismo. Esta é uma estética que retira estilos ou técnicas do seu contexto histórico e os mistura, um pastiche que ele vê como uma resposta ao tempo unificado da economia globalizada. “Crise da futuridade” é o meu termo para um aspecto da nossa situação estética que o “pós-modernismo” não descreve bem: nós perdemos o futuro — a humanidade enfrenta uma extinção forçada — e em vez de brincar com o passado, o nosso estilo estético dominante amplia o presente e a presença.

Esta perda do futuro está, obviamente, distribuída de forma desigual, não obstante, implica a espécie na totalidade. É uma forma de explicar como a nossa cultura torna a experiência emocional mais extrema — na arte, no cinema e na literatura, a dor, a raiva e o desespero tornam-se mais profundos.

O livro tenta unir um conjunto de desenvolvimentos econômicos e estéticos e, surpreendentemente, conectar os romances de Karl Ove Knausgård, o filme Joias Brutas e a atuação, A Artista Está Presente, de Marina Abramović. O que eles compartilham um com o outro?

No trabalho dos artistas que você menciona está difundido um repúdio à espessura da representação, uma intolerância às mensagens indiretas, uma recusa à mediação. A mediação é a atividade social de criar significado, de dar sentido, de colocar algo num meio, de construir relações entre coisas, pessoas e lugares; sem ela a arte desmorona, o mundo torna-se incompreensível e os movimentos coletivos de mudança tornam-se insustentáveis. Na obra destes artistas a mediação é expressamente rejeitada.

A narração em primeira pessoa tornou-se o estilo literário dominante da nossa era do imediatismo. Esta é uma mudança substancial. Durante a maior parte de seus trezentos anos de existência, o romance foi geralmente escrito na terceira pessoa. O que essa mudança indica e como devemos explicá-la?

O projeto teve origem na minha tentativa de examinar as mudanças no estilo literário e como elas pareciam responder a uma mudança cultural mais ampla. Na história do romance inglês, a ficção é majoritariamente composta na terceira pessoa. A terceira pessoa é o modo gramatical não apenas do experimento especulativo da onisciência, mas em certo sentido da própria ficcionalidade. Isto porque constrói perspectivas contrafactuais em diferentes tempos e espaços – uma perspectiva que a experiência individual é naturalmente incapaz de acessar.

A terceira pessoa é também o modo que torna possível o discurso indireto livre, uma forma de mesclar o pensamento de diferentes mentes, única no romance. Em nenhum outro lugar podemos pensar em pensamentos compartilhados coletivamente (é isso que os torna “livres”; eles não são propriedade de ninguém).

É essa terceira pessoa, esse modo mágico, que parece estar desaparecendo: os romances em inglês do século XXI são, em sua maioria, em primeira pessoa. Este é um acontecimento radical na história da literatura, que exige explicação. Por que os escritores querem eliminar a capacidade única da consciência ficcional? Por que, ao desmantelar explicitamente a narratividade como tal, tantos romancistas contemporâneos também rejeitam explicitamente a noção de personagem literário, ou enredo, ou de duração temporal à qual a forma do romance é frequentemente associada?

Isto também explica talvez a proliferação do formato de memórias e do ensaio pessoal.

Tento responder a esta questão num capítulo do livro onde abordo as transformações nas indústrias dos meios de comunicação, como o jornalismo, a publicação literária e as redes sociais, bem como na universidade. Nestas áreas, analiso as condições econômicas para a produção cultural criativa.

De acordo com o New York Times, as vendas de memórias aumentaram 400% neste século em relação ao século anterior. Ao mesmo tempo, o ensaio pessoal predomina como um modo barato ou desqualificado de jornalismo e geração de “conteúdo”. E há uma dinâmica relacionada, a hegemonia de uma epistemologia de ponto de vista enfraquecida. Esta teoria, que prioriza o conhecimento moldado pela perspectiva de quem conhece, foi inicialmente desenvolvida para promover os objetivos da classe trabalhadora, feminista, queer e outras minorias. Na cultura atual, contudo, forneceu justificação para uma hostilidade em relação à abstração e às reivindicações de conhecimento universal.

Você critica bastante aqueles que descrevem o aumento da autoficção e dos ensaios pessoais como uma espécie de “epidemia de narcisismo” alimentada pelas redes sociais.

Alguns críticos culturais e profissionais de saúde mental explicam esta onda do self como resultado de uma crescente “epidemia de narcisismo”. E certamente, as tendências antissociais na nossa sociedade são palpáveis. Mas não é suficiente compreender a produção cultural contemporânea através de uma lente que psicologize ou moralize, por diversas razões.

A principal delas é que a psicologia não está isolada do resto da sociedade; a cultura, a economia e a tecnologia desempenham um papel importante na estruturação de sintomas e distúrbios. Se estamos vivendo uma espécie de inflação do ego e da autoimagem, isso tem de estar ligado à nossa ecologia mediática e à ideologia econômica dominante do capital humano e do bootstrapping, bem como ao desmantelamento das instituições sociais que apoiam a vida cotidiana – como a educação pública.

Mas a outra razão pela qual não é suficiente descrever a nossa cultura como narcisista é que os tipos de priorização do eu que podemos notar nas obras de arte também são acompanhados pelo esvaziamento da mediação. Se houver um ataque ao significado coletivo, o significado individual surge em seu lugar. Se houver uma ruptura na mediação, coisas que parecem imediatas – a experiência, o corpo, o pessoal – surgem. Mas é o ataque, a disrupção – o que nos negócios é chamado de “desintermediação” – que vem primeiro.

Você também parece ligar esse desenvolvimento estético ao desenvolvimento mais amplo de como a política evoluiu nas últimas duas décadas. O “momento populista” também veio acompanhado de uma necessidade crescente de eliminar os intermediários. O nosso presente é menos caracterizado pela mediação de partidos e sindicatos de massas e mais por revoltas e “movimentos” espontâneos. Significou a “desintermediação” da política com formas de pertencimento menos estruturadas e duradouras. Você diria que essas duas tendências estão conectadas?

Absolutamente. Identificar o imediatismo como um estilo cultural envolve conectar as artes ao conhecimento e à economia, bem como à política. As artes são geralmente a arena onde a mediação se mostra. É definitivamente a arena onde “obras” específicas têm contornos e limites que se prestam à análise. Em contraste, a “política” pode ser mais complicada para  criar um objeto de estudo rigoroso.

Essa é provavelmente a minha formação como pesquisadora de estética, mas pode ser mais fácil saber onde olhar para ver a rejeição da mediação acontecendo em um programa de TV ou poemas do que no movimento geral do populismo na esfera política. No entanto, o livro tenta absolutamente indicar que o estilo de imediatismo governa as preferências tácticas (e ideológicas) pelo horizontalismo, localismo, anarco-espontaneidade, anti-sindicalismo e a falta de organização disciplinada na esquerda. Este último é frequentemente substituído por cultos ao carisma, ao opinionismo virulento e ao anti-institucionalismo. Todas estas tendências podem ser observadas na esquerda e na direita políticas. Houve análises realmente importantes destas políticas à medida que se desenvolveram ao longo da última década; espero que outra pessoa escreva um estudo abrangente e aprofundado sobre o imediatismo na política.

Daniel Zamora é um sociólogo de pós-doutorado na Université Libre de Bruxelles e Cambridge University. Seu livro, “Le Dernier Homme e A Finada da Revolução: Foucault après Mai 68”, em co-autoria com Mitchell Dean, será publicado em inglês pela Verso em 2020.

Anna Kornbluh é professora de inglês e membro do United Faculty Bargaining Committee da Universidade de Illinois Chicago. É autora de The Order of Forms (University Chicago 2019), Marxist Film Theory and Fight Club (Bloomsbury 2019) e Realizing Capital (Fordham 2014).   

Jacobin Brasil

A revista Jacobin é uma voz destacada da esquerda radical no mundo. Agora, em português, contribui no Brasil para uma perspectiva socialista na política, economia e cultura.


Inteligência artificial: o que esperar dos Estados

Apropriação do trabalho intelectual coletivo. Precarização. Desenvolvimento de robôs assassinos. Se ficar sob controle de corporações, nova tecnologia será fonte de pesadelos. Por isso as sociedades, mais que regulá-la, precisam dirigi-la.

Mariana Mazzucato, Outras Palavras

Em dezembro passado, a União Europeia (UE) estabeleceu um precedente global ao finalizar a Lei de Inteligência Artificial, um dos conjuntos de regras de IA mais abrangentes do mundo. A legislação emblemática da Europa pode sinalizar uma tendência mais ampla em direção a políticas de IA mais responsivas. Mas embora a regulamentação seja necessária, não é suficiente. Além de impor restrições às empresas privadas de IA, os Estados devem assumir um papel ativo no desenvolvimento da tecnologia, projetando sistemas e moldando mercados para o Comum (continue a leitura)

É claro que os modelos de IA estão evoluindo rapidamente. Quando os reguladores da UE divulgaram o primeiro rascunho da lei sobre o tema em abril de 2021, eles gabaram-se de ele ser supostamente “à prova de futuro”. Apenas um ano e meio depois, correram para atualizar o texto, em resposta ao lançamento do ChatGPT. Mas os esforços regulatórios não são em vão. Por exemplo, a proibição, por lei, do uso de IA no policiamento por biometria continuará provavelmente relevante, em que pesem os avanços na tecnologia. Além disso, os parâmetros de risco incluídos na lei de IA ajudarão os formuladores de políticas a se proteger contra alguns dos usos mais perigosos da tecnologia. Embora a IA tenda a se desenvolver mais rápido do que a política, os princípios fundamentais da lei não precisarão mudar – embora ferramentas regulatórias mais flexíveis sejam necessárias para ajustar e atualizar as regras.

Mas pensar no Estado apenas como regulador é perder de vista o aspecto principal. A inovação não é apenas um fenômeno de mercados sagazes. Ela tem uma direção; e esta depende das condições em que emerge. Os formuladores de políticas públicas podem influenciar essas condições. O surgimento de um design tecnológico ou modelo de negócios dominante é o resultado de uma luta de poder entre vários atores – corporações, órgãos governamentais, instituições acadêmicas — com interesses conflitantes e prioridades divergentes. Ao refletir essa luta, a tecnologia resultante pode ser mais ou menos centralizada, mais ou menos proprietária, e assim por diante.

Os mercados que se formam em torno de novas tecnologias seguem o mesmo padrão, com implicações distributivas importantes. Como o pioneiro do software Mitch Kapor coloca, “Arquitetura é política”. Mais do que regulamentação, o design de uma tecnologia e da infraestrutura que a circunda dita quem pode fazer o quê com ela e quem se beneficia. Para assegurarem que inovações transformadoras produzam crescimento inclusivo e sustentável, não basta que os Estados corrijam os mercados. Eles precisam moldá-los e cocriá-los. Quando os Estados contribuem para a inovação por meio de investimentos ousados, estratégicos e orientados para missões, eles podem criar novos mercados e atrair o setor privado.

No caso da IA, a tarefa de direcionar a inovação está atualmente dominada por grandes corporações privadas. Isso leva a uma infraestrutura que serve aos interesses dos já envolvidos e agrava a desigualdade econômica. É o reflexo de um problema de longa data. Algumas das empresas de tecnologia que mais se beneficiaram de apoio público – como Apple e Google – também foram acusadas de usar suas operações internacionais para evitar o pagamento de impostos. Essas relações desequilibradas e parasitárias entre grandes empresas e o Estado agora correm o risco de ser ampliadas pela IA, que promete recompensar o capital enquanto reduz as rendas conferidas ao trabalho.

As empresas que desenvolvem IA generativa já estão no centro dos debates sobre comportamentos extrativistas, devido ao seu uso desenfreado de textos, áudios e imagens protegidos por direitos autorais, para treinar seus modelos. Ao centralizarem o valor dentro de seus próprios serviços, elas reduzirão os fluxos de recursos para os artistas de quem dependem. Assim como nas redes sociais, os mecanismos estão alinhados para a extração de renta, cuja lógica é permitir que intermediários dominantes acumulam lucros às custas de outros. As plataformas que prevalecam hoje – como Amazon e Google – exploraram sua posição dominante usando seus algoritmos para extrair tarifas cada vez maiores (“rentas de atenção algorítmica”) para acesso aos usuários. Uma vez que Google e Amazon se tornaram um gigantesco esquema de jabaculês, a qualidade da informação deteriorou e as plataformas passaram a extrair valor do ecossistema de sites, produtores e desenvolvedores de aplicativos nos quais as se baseiam. Os sistemas de IA de hoje poderiam seguir um caminho semelhante: extração de valor, monetização disfarçada e deterioração da qualidade da informação.

Governar modelos de IA generativa para o Comum exigirá parcerias mutuamente benéficas, orientadas para objetivos compartilhados e a criação de valor público, e não apenas privado. Isso não será possível com Estados que agem apenas após os fatos consumados. Precisamos de Estados empreendedores, capazes de estabelecer estruturas pré-distributivas que compartilhem riscos e recompensas ex ante. Os formuladores de políticas devem se concentrar em entender como as plataformas, os algoritmos e a IA generativa criam e extraem valor, para que possam estabelecer as condições – entre elas, regras de design equitativas – para uma economia digital que remunere a criação de valor.

Lembre-se da História

A internet é um bom exemplo de uma tecnologia que foi projetada a partir de princípios de abertura e neutralidade. Considere o princípio do “ponto a ponto”, que garante que ela opere como uma rede neutra,k responsável pela entrega de dados. O conteúdo entregue de computador para computador pode ser privado, mas o código é gerenciado publicamente. E a infraestrutura física necessária para acessar a internet é privada, mas o desenho original assegurou que, colocados online, os recursos para a inovação na rede são livremente disponíveis.

Essa escolha de design, coordenada [nos EUA] pelo trabalho inicial da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (entre outras organizações), tornou-se um princípio orientador para o desenvolvimento da internet, permitindo flexibilidade e inovação extraordinárias nos setores público e privado. Ao visualizar e moldar novos espaços de criação, o Estado pêde estabelecer mercados e direcionar o crescimento, em vez de apenas incentivá-lo ou estabilizá-lo.

É difícil imaginar que empresas privadas, encarregadas de desenvolver a internet na ausência de envolvimento governamental, tivessem aderido a princípios igualmente inclusivos. Considere a história da tecnologia telefônica. O papel do Estado foi predominantemente regulatório. A inovação foi deixada, em grande medida, nas mãos de monopólios privados. Este tipo de centralização não apenas prejudicou o ritmo da inovação, mas também limitou os benefícios sociais mais amplos que poderiam ter surgido.

Por exemplo, em 1955, a American Telephone and Telegraph (AT&T) persuadiu a Comissão Federal de Comunicações a banir um dispositivo que reduziria o ruído nos receptores telefônicos, alegando direitos exclusivos para melhorias na rede. O mesmo tipo de controle monopolista poderia ter relegado a internet a ser apenas um instrumento de nicho para um grupo seleto de pesquisadores, em vez da tecnologia universalmente acessível e transformadora em que se converteu.

Da mesma forma, a transformação do GPS – de uma ferramenta militar para uma tecnologia universalmente benéfica – destaca a necessidade de governar a inovação para o bem comum. Inicialmente projetado pelo Pentágono para coordenar ações militares, o acesso público aos sinais de GPS foi deliberadamente rebaixado, por motivos de segurança nacional. Mas, à medida que o uso civil ultrapassou o militar, o governo dos EUA, sob o presidente Bill Clinton, tornou o GPS mais responsivo aos usuários civis e comerciais em todo o mundo.

Essa mudança não apenas democratizou o acesso à tecnologia de geolocalização precisa, mas também estimulou uma onda de inovação em muitos setores, incluindo navegação, logística e serviços baseados em localização. Uma mudança de política que buscava maximizar o benefício público teve um impacto transformador e de longo alcance na inovação tecnológica. Mas esse exemplo também mostra que governar para o bem comum é uma escolha consciente que requer investimento contínuo, alta coordenação e capacidade de entrega.

Para aplicar essa escolha à inovação em IA, precisaremos de estruturas de governança inclusivas e orientadas para missões, com meios para investir conjuntamente com parceiros que reconheçam o potencial da inovação liderada pelo Estado. Para coordenar respostas de múltipos atores a objetivos ambiciosos, os formuladores de políticas devem estabelecer condições para financiamento público, de modo que os riscos e recompensas sejam compartilhados de forma mais equitativa. Isso significa objetivos claros, aos quais as empresas precisam se adequar; altos padrões de trabalho, sociais e ambientais; e compartilhamento de lucros com o público. As condicionalidades podem e devem exigir que as Big Tech sejam mais abertas e transparentes. Não devemos aceitar nada menos do que isso, se quisermos levar a sério a ideia de capitalismo de stakeholders.

Por fim, enfrentar os perigos da IA exige que os governos ampliem seu papel além da regulação. Sim, diferentes governos têm capacidades diferentes, e alguns são altamente dependentes da economia política global mais ampla da IA. A melhor estratégia para os Estados Unidos pode não ser a melhor para o Reino Unido, a UE ou qualquer outro país. Mas todos devem evitar a falácia de presumir que governar a IA para o Comum está em conflito com a criação de um setor de IA robusto e competitivo. Pelo contrário, a inovação floresce quando o acesso às oportunidades está aberto e as recompensas são amplamente compartilhadas.   

Mariana Mazzucato

é uma economista italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex.


Vida, trabalho e dignidade

Luiz Marques, Terapia Política (expandir)

Em Uma breve história da igualdade, Thomas Piketty revela: “Até o início do século XX, não existia uma classe média, no sentido de que os 40% compreendidos entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos eram quase tão pobres (em termos de participação na propriedade total) quanto os 50% mais pobres. Em contrapartida, no fim do século XX e no início do século XXI, a classe média patrimonial é constituída por pessoas que não são imensamente ricas, mas estão longe de ser pobres”. Descontado o eurocentrismo, temos o “tipo ideal” weberiano para outras realidades. Aqui, interessa o olhar do clínico geral e não o dos especialistas sobre a doença em um país, em especial.

Crise da civilização

Após a década de 1980, a middle class genérica é jogada mais para o fundo do poço nos países ocidentais. Os filhos acumulam menos bens materiais do que os pais acumulavam, outrora. Por sua vez, a ideologia meritocrática é desacreditada. Ademais, ao persuadir vencedores a considerarem que o sucesso deles é produto de suas ações e a encararem os derrotados como os de baixo com desdém, bloqueia a possibilidade de conciliação de classes. Isso ajuda a explicar por que os deixados para trás pela globalização ficam ressentidos e por que se sentem atraídos por populistas autoritários. Eis aí o retrato das camadas intermediárias do sistema capitalista, em nossa época.

A desindustrialização e a precarização dos empregos recriam a barbárie estrutural no contexto das inovações cibernéticas. De um lado, o retrocesso espalha o fascismo social; de outro, capilariza o fascismo político. Em 26 dos 27 Legislativos das nações da União Europeia, a extrema direita tem cadeiras. Na Hungria, Polônia e Itália (terceira economia, atrás da Alemanha e França) já assumiu o poder. Hoje o espectro que ronda o velho continente é o avesso do especulado pela utopia socialista.

Está em curso uma crise da civilização, com a erosão da democracia. Um fenômeno que desperta para a necessidade da resiliência primordial e também irrefreada, para escapar ao pó. A concepção schmittiana separa a política em “amigos” vs “inimigos” no âmbito nacional, e redesenha a divisão internacional do trabalho. Fixar-se no agro (latifúndio, monocultura, exportação) era o que queria o atraso, no Brasil. Dizer que o parto da multipolaridade passa pela guerra nuclear não é um absurdo.

A política apresenta-se em exposições públicas com clichês rancorosos. Os valores do Iluminismo – a razão, a liberdade, a laicidade, a ciência, o lema “ouse conhecer” – são trocados por dogmas. O cansaço com os princípios fundadores da modernidade conduz a humanidade à autodestruição e o planeta à hecatombe climática. A soberania do povo e a participação social vão para o índex.

Vale lembrar o discurso de Javier Milei ao tomar posse na Argentina. “A curto prazo, a situação vai piorar”. Óbvio. Ministérios do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Trabalho; Cultura; Mulheres, Gênero e Diversidade que atendiam demandas modernas indispensáveis são extintos. O empobrecimento dos setores médios e a miserabilidade dos desalentados aprofundam os medos e a insegurança. Ouvem-se os sinais da monumental recessão. O país de Jorge Luis Borges se deixou agrilhoar por um palhaço sociopata, com o tango do anarcocapitalismo. “Viva la libertad, carajo”.

O populismo direitista usa “fatos alternativos”, como o espírito de um cão morto, para atrair os eleitores em ambientes de degradação ética e cognitiva – atacando as instituições, per se, além dos direitos sociais. “Sua força popular depende não da evidência, mas do sentimento; a essência da cultura da pós-verdade”, na reflexão de Matthew D’Ancona, em Pós-verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. O sentimento é, em simultâneo, de confusão cerebrina e absoluta falta de consciência sobre a identidade dos responsáveis pelo caos. A “verdade objetiva” se esvai no ralo da demagogia. A guerra de todos contra todos mostra o fracasso do modelo social hegemônico.

Unificar demandas

A alteridade assume ares hostis. A coletividade é pulverizada, torna-se um simulacro. O excedente de imaginário abastece as pulsões necropolíticas (a uberização da vida) e o colapso civilizacional. Antes, as vitrines do comércio funcionavam como ponto de fuga; agora, com o Big Data, viraram uma clausura. Com a dinâmica da inteligência artificial (machine learning) perseguem-se os moinhos da cidadania – o feminismo, o antirracismo, a anti-homofobia, o ambientalismo, a esquerda. Em lugar da emancipação coletiva revolucionária, a salvação pessoal pela Teologia da Prosperidade. O hiperindividualismo sintetizado na imagem do Lobo de Wall Street é reproduzido nas periferias.

No pano de fundo do cenário está a financeirização do Estado e da sociedade. A noção do demos (povo) é desconstruída. A representação se desvanece (“Não me representa”). A lealdade se dissipa (“Partidos são iguais”). As redes digitais se transfiguram na publicidade golpista da Festa da Selma. O tecido sociopolítico é esgarçado. A ignorância é monetizada por rastaqueras saídos do esgoto em bueiros do mapa-múndi, com uma verborragia totalitária sobre a moral e os costumes. Que fazer?

A tarefa dos progressistas é defender a bandeira do igualitarismo e da cooperação mútua. No livro Forjando a democracia – o título remete a Hefesto, “Deus da Forja” (tecnologia, metalurgia, armas, fogo) na antiga Atenas – o autor Geoff Eley ressalta: “A democracia sempre foi uma fronteira em movimento, cujas projeções idealistas irrealizadas foram tão importantes quanto ganhos efetivos”. As derrotas plantam sementes onde amanhã nascem punhos fechados, no asfalto. A vitória épica de Lula e da esquerda unida no Brasil trouxe de volta a esperança ao coração dos desesperançados.

Se as disputas parlamentares importam, mais decisivo é o que floresce nas relações sociopolíticas. A mediação das massas na esfera pública é crucial. Humilhados e ofendidos precisam se reconhecer em um fórum interclassista, sob uma palavra de ordem abrangente: “Vida, Trabalho e Dignidade”:

A unificação das demandas é a chave do futuro. A questão organizativa condensa a possibilidade da edificação contra-hegemônica. Salve Lenin. A polarização provocada pelo movimento pró-fascismo se nutre da valorização do privado e desvalorização do público. Se a privatização da existência é a essência da alienação dos indivíduos; a privatização dos espaços urbanos é a barreira erguida contra a perspectiva de convivialidade na diversidade das urbes. Sem as lutas pela equanimidade e o bloco na rua, seguimos reféns do ressentimento e do ódio sob o neoliberalismo selvagem das finanças.

O sonho não morreu

O pior é que não podemos buscar consolo na ideia de que se trata de uma circunstância excepcional, quando o Estado de exceção parece configurar a nova normalidade. Conforme sublinha Freud, em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, o belicismo não cessará “enquanto os povos [e as classes sociais, acrescente-se, con permiso] viverem em condições tão diferentes, enquanto divergirem de tal modo no valor que atribuem à vida individual e enquanto os ódios que os dividem representarem forças psíquicas tão intensas”. Até lá, a besta humana desse período de decadência imperialista gozará com os escombros palestinos na Faixa de Gaza, na reprodução metonímica de Guernica. Nosso desafio é desconstruir a história da desigualdade no mundo. O sonho não morreu.


Clique aqui para ler artigos do autor. 

Luiz Werneck Vianna (1938-2024)

Um dos principais nomes da sociologia brasileira. Pensamento arguto e militante que nos ajudou a entender o país e suas difíceis contradições. Alguns textos e entrevistas que reúnem parte da riqueza de seu pensamento estão lincados abaixo.

# Arquivos Luiz Werneck Vianna (A Terra é redonda) # Artigos de Luiz Werneck Vianna (PUC-Rio) # Entrevista: A luta de classes saiu da moda (UFMG) # Tudo sobre Luiz Werneck Vianna (Estadão) # Antologia (Fundação Astrogildo Pereira) # Uma difícil democracia: diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna (IHU)

Clara Mattei: Capitalismo é incompatível com democracia

Pesquisadora italiana que trabalha com o tema 'austeridade' afirma que políticas de redução do Estado são espinha dorsal das economias modernas contra trabalhadores

Uirá Machado, Folha (expandir)

Celebrado por figurões como Thomas Piketty e Martin Wolf, o livro "A Ordem do Capital" propõe uma nova maneira de enxergar as políticas de austeridade adotadas por diferentes países.

Não como uma exceção impopular e dolorosa usada só para reduzir o déficit orçamentário em momentos de maior desequilíbrio nas contas públicas, mas como "o sustentáculo do capitalismo moderno", segundo a italiana Clara Mattei.

A italiana Clara Mattei no Festival Costituzione, na Itália, em maio de 2023 - Divulgação/Festival Costituzione

No livro, a pesquisadora volta à década de 1920 para mostrar como a austeridade surgiu depois da Primeira Guerra Mundial em países como Inglaterra e Itália, quando trabalhadores organizados cobravam mais direitos sociais.

Para Mattei, a austeridade foi naquela época —e continua sendo hoje— "uma reação antidemocrática às ameaças de mudança social vindas de baixo para cima". Daí o subtítulo da obra: "Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo".

Em entrevista à Folha, ela diz que "as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas", mas que o "capitalismo é incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas".

Em seu livro, a sra. afirma que os programas de austeridade devem ser vistos não como exceção, mas como o sustentáculo do capitalismo moderno. Qual o ganho analítico dessa perspectiva?
Minha definição tem a vantagem de ser uma definição política, na qual fica claro quem ganha e quem perde com as políticas de austeridade. Essa definição tenta ir além da ideia de que a austeridade seja apenas a redução do tamanho do Estado.

Falar em "menos Estado" é uma maneira muito ideológica de entender a história do capitalismo e nossa situação econômica atual. O ponto não é ver se o Estado gasta menos, mas onde o Estado gasta. Porque austeridade não significa menos Estado, mas Estado gastando a favor das elites em detrimento da maioria da população.

A trindade de políticas de austeridade —fiscal, monetária e industrial— tem o objetivo de enfraquecer os sindicatos e manter os trabalhadores sob controle. E isso enquanto o Estado gasta muito dinheiro no complexo industrial militar, por exemplo, ou subsidiando e desonerando investimentos privados em energia verde, ou resgatando bancos.

Sua pesquisa volta aos anos 1920 para detectar as origens da austeridade na Inglaterra e na Itália. O que explica o surgimento desse receituário?
A austeridade não é um produto da exceção do sistema neoliberal. O que tento mostrar é como, na verdade, a austeridade é funcional e estrutural para o capitalismo. Ela é particularmente útil quando as pessoas querem um sistema econômico alternativo, querem mais direitos sociais. Aí a austeridade é muito importante para a elite, a fim de preservar o status quo.

Após a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], isso ficou muito claro, porque foi um momento em que, no coração do capitalismo, os cidadãos estavam exigindo sociedades pós-capitalistas, rompendo com as relações salariais, rompendo com a propriedade privada dos meios de produção em favor da democracia econômica. Ou seja, as pessoas queriam a participação dos trabalhadores no processo de produção e distribuição. Foi aí que a austeridade nasceu.

O subtítulo do livro faz uma ligação forte entre austeridade e fascismo, mas a Inglaterra não teve um governo fascista. É possível generalizar a conexão?
A questão é mostrar que Mussolini se tornou tão poderoso porque ele era muito bom em implementar a austeridade, exatamente as mesmas políticas que os liberais na Itália, nos Estados Unidos e no Reino Unido estavam patrocinando.

A capacidade de subjugar os trabalhadores, de fazê-los aceitar salários mais baixos e parar com as greves; a capacidade de privatizar, de cortar gastos sociais e revalorizar a lira: tudo isso fez de Mussolini quem ele se tornou, um ditador fascista que permaneceu no governo por mais de 20 anos.

O capitalismo é bastante incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas e na distribuição de recursos.

Claro que o capitalismo é compatível com a democracia eleitoral, mas isso é superficial. No capitalismo contemporâneo, você pode se tornar fascista para apoiar as prioridades da economia. Foi o que aconteceu na Itália sob Mussolini, no Chile sob Pinochet e é o que está acontecendo agora na Argentina com Milei.

Em outros países não é tão diferente, se você olhar para a necessidade de proteger as decisões econômicas da interferência das pessoas. E isso é feito com a independência do Banco Central, com a ideia de colocar orçamentos equilibrados na Constituição, com mecanismos técnicos que têm o mesmo efeito de desdemocratizar a economia.

Há uma tensão entre capitalismo e democracia. Os governos fascistas, obviamente, são antidemocráticos. Mas o que é generalizável é que as supostas democracias liberais também têm tendências antidemocráticas que se associam muito mais ao fascismo do que se costumava pensar.

Que lições podem ser tiradas em relação à extrema direita hoje?
Os governos de extrema direita são muito bons em implementar a austeridade e, por esse motivo, ganham a confiança do mercado e são vistos com bons olhos pelos tecnocratas internacionalmente.

Mas o contexto agora é muito diferente. Quando Mussolini chegou ao poder, ele estava lá explicitamente para esmagar quem estava se mobilizando. Hoje, as pessoas votam em governos de extrema direita porque foram desempoderadas por um século de políticas de austeridade.

O sucesso da austeridade está em nos individualizar, nos tornar muito precários, nos tornar muito inseguros, para que não sintamos que estamos unidos como trabalhadores. A razão pela qual esses governos de extrema direita chegam ao poder é porque, em última instância, representam a expressão da insatisfação com o atual sistema econômico, que as pessoas entendem como um sistema a favor dos ricos e poderosos.

O problema é que as pessoas votam na direita, mas a direita é melhor em implementar a austeridade.

No Brasil, políticas de austeridade não são exclusivas de governos de direita. Por que isso acontece?
Essa é outra lição muito importante que podemos tirar do estudo histórico: infelizmente, a austeridade atravessa as linhas partidárias. É a expressão do falso pluralismo na economia que nossas democracias eleitorais apresentam. Elas nos dão a impressão de que, se votarmos em Lula em vez de Bolsonaro, teremos uma completa mudança nas políticas econômicas, mas é mais complicado do que isso.

Sob o capitalismo, a prioridade de qualquer governo, de direita ou de esquerda, é garantir os fundamentos para a acumulação de capital, o que significa não perturbar os investidores privados.

Então não podemos pensar que votamos uma vez a cada quatro anos e nosso trabalho está feito, porque existem pressões muito fortes vindas do mercado. Se o povo brasileiro, como qualquer outro povo, quiser uma mudança social séria, precisa lutar por isso.

Se você olhar historicamente, perceberá que há muito mais potencial para sistemas econômicos alternativos do que estamos acostumados a pensar, porque o objetivo principal dos economistas no poder é nos dizer que não há alternativa possível.

As alternativas existem, mas, para obtê-las, não basta eleger alguém que diga que fará algo diferente. Precisamos de uma participação maior do povo na economia.

Mas como escapar da lógica que comanda a economia em escala global hoje em dia?
A mensagem principal que emerge do livro é que as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas, no sentido de que não há nada que seja uma necessidade técnica. São decisões políticas que acontecem dentro de um sistema que funciona sob pressões específicas.

Você pode ir contra essas pressões, mas terá de arcar com as consequências. Essa mudança não acontecerá suavemente. Se você quiser realmente subverter o Estado capitalista de dentro, você precisa entender que não vai ser fácil.


Clara E. Mattei, 35
Formada em filosofia, mestre na mesma disciplina e doutora em economia, é professora associada do Departamento de Economia da New School for Social Research (Nova York)

# Acesse a matéria original publicada pela Folha

# Acesse também extratos em pdf do texto original do livro traduzidos por Fernando Nogueir da Costa


Intelectuais (novamente) em questão
Paulo Fernandes Silveira,  A Terra é redonda (expandir)

Em tempos de redes sociais, o papel dos intelectuais precisa ser colocado novamente em questão

“Tá tudo errado, irmão, então pega a visão”
(Planet Hemp, “Distopia”)

1.

Em abril de 1994, a revista Magazinne Littéraire publicou parte da correspondência entre Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre (MERLEAU-PONTY; SARTRE, 1995). Essas cartas evidenciam a razão da ruptura entre os filósofos: uma divergência sobre suas concepções acerca do engajamento intelectual.

Poucos meses depois, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma tradução dessas cartas feita por Renato Janine Ribeiro. Essa edição dominical do jornal também trazia textos de Marilena Chaui (1994b; 1994c), Alberto Muñoz (1994); Manuel da Costa Pinto (1994) e do próprio Janine Ribeiro (1994) sobre Merleau-Ponty e Sartre.

Na quinta-feira da semana anterior, o jornal havia publicado outros dois textos que mencionavam Sartre. Em meio à campanha presidencial que tinha FHC e Lula na lista de candidatos, Marilena Chaui (1994a) e Otávio Frias Filho (1994) analisaram uma frase da atriz Ruth Escobar: “Nessa eleição temos duas opções: votar em Jean-Paul Sartre ou num encanador” (SILVA; PASCOVITCH, 1994, p. 8).

Além de criticar o preconceito de classe implícito na frase, Marilena Chaui cita um artigo em que Jânio de Freitas denuncia a arbitrariedade de uma pergunta que teria sido formulada numa pesquisa do Ibope: “o sr. preferiria para presidente do Brasil: alguém como Lula, que é realmente próximo da população pobre e dos trabalhadores, mas que tem pouca instrução e pouca experiência para presidente, ou alguém como Fernando Henrique, que não é tão próximo da população pobre e dos trabalhadores, mas que tem instrução e experiência necessárias para ser presidente?” (FREITAS, 1994, p. 5).

Em seu texto, publicado na página anterior à do texto de Chaui, o diretor e um dos donos da Folha de S. Paulo advoga pela analogia criada por Escobar: “como o preconceito sempre toma por verdade geral uma constatação parcialmente verdadeira, ou pelo menos justificável em parte, cabe perguntar se FHC não é de fato ‘Sartre’ e Lula um ‘encanador’” (FRIAS FILHO, 1994, p. 2).

Numa entrevista concedida durante a campanha, FHC afirma que Lula estava preparado para ser líder sindical, mas talvez não estivesse para ser presidente (FHC ACHA LULA PREPARADO, 1994). Na mesma edição em que registra essa fala de FHC, a Folha de S. Paulo destaca que, segundo o Datafolha, a falta de estudo é um dos principais motivos da rejeição a Lula (TOLEDO, 1994).

Nesse contexto eleitoral, a aproximação entre FHC e Sartre guarda mais de um sentido. Autor de livros importantes de filosofia e de literatura, Sartre também foi reconhecido como um homem de ação. Comprometido com as causas da esquerda, o escritor engajou-se em diversas campanhas populares. A afirmação de que FHC é Sartre sugere, portanto, capacidade intelectual (teórica) e política (prática) ao candidato.

2.

A figura do homem de ação é central no debate travado entre Merleau-Ponty e Sartre. Em suas cartas, Sartre (1994a; 1994b) procura refutar as críticas que Merleau-Ponty lhe fez numa aula aos estudantes do Colégio de França. Nessa aula, publicada com o título Elogio à filosofia, Merleau-Ponty (1986) traça um panorama histórico das relações entre a filosofia e a política. A posição de Sartre é criticada na última parte do texto.

No fim da sua carta, Merleau-Ponty (1994b) faz um resumo da sua aula aos estudantes, destacando o tema do engajamento. Na aula e no resumo, Merleau-Ponty faz criticas à tradição intelectualista (CHAUI, 1994c), segundo a qual a consciência, situando-se fora do mundo, dominaria a tudo pelo pensamento. Segundo Merleau-Ponty, o filósofo não ocupa um lugar absoluto na compreensão da realidade (CASTANHEIRA, 2002).

Entre a filosofia e a política há um horizonte de ambiguidades. É preciso ter cautela antes de tomar qualquer decisão. Essa posição de Merleau-Ponty entra em confronto com a figura do homem de ação que Sartre representa. Em determinadas circunstâncias, afirma Sartre, a urgência das questões políticas cobra-lhe uma decisão: “como homem, como francês, como cidadão e como intelectual” (1994a, p. 6).

Em sua defesa, Merleau-Ponty argumenta que sua filosofia está sempre comprometida com a realidade social, de todo modo: “Há acontecimentos que permitem, ou melhor, exigem ser julgados imediatamente e em si mesmos: por exemplo, a condenação e execução dos Rosenberg… mas, o mais das vezes, o acontecimento só pode ser apreciado no quadro global de uma política que lhe muda o sentido” (1994a, p. 7).

No texto que inspira esse ensaio, Maurice Blanchot reconhece que o antiautoritarismo de Maio de 68 colocou os intelectuais em questão: “Quando alguns de nós (intelectuais) tomaram parte no movimento de Maio de 68, esperavam poder evitar qualquer pretensão à singularidade e, de certo modo, conseguiram não ser considerados à parte, mas como todos os demais” (2003, p. 114).

No final de 1971, uma manifestação contra o racismo no bairro Goutte D’Or, em Paris, reuniu vários intelectuais (DOSSE, 2010). Uma das fotos da manifestação mostra Michel Foucault discursando com um megafone. Em 1975, a Magazinne Littéraire republicou a foto com a seguinte legenda: “Sartre, Foucault, Glukcsmann: os filósofos estão na rua” (RANCIÈRE; RANCIÈRE, 1978, p. 13).

Num artigo intitulado “A legenda dos filósofos”, o casal Danielle e Jacques Rancière identifica na foto dos três ilustres manifestantes: “a constituição de um novo poder filosófico selada entre representantes intelectuais e representantes políticos das massas” (1978, p. 12). A legitimidade das posições de Sartre e de Foucault estaria certificada pela figura do militante maoísta André Glucksmann.

Nesse período, a revista D’Arc publicou uma conversa entre Gilles Deleuze e Foucault sobre os intelectuais e o poder. Tendo o trabalho realizado pelo Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), coordenado por Foucault, como exemplo, Deleuze sustenta que não cabe ao intelectual, ao partido ou ao sindicato ser a consciência representante ou representativa de ninguém: “A meu ver, você foi o primeiro a nos ensinar – tanto em seus livros quanto no domínio da prática – algo de fundamental: a indignidade de falar pelos outros” (1979, p. 72).

Sobre o trabalho organizado pelo GIP, Foucault afirma: “E quando os prisioneiros começaram a falar, viu-se que eles tinham uma teoria da prisão, da penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, esse contra-discurso expresso pelos prisioneiros, ou por aqueles que são chamados de delinquentes, é que é o fundamental, e não uma teoria sobre a delinquência” (1979, p. 72).

Na perspectiva de Deleuze, “uma teoria é como uma caixa de ferramentas” (1979, p. 71). O intelectual deve identificar ou construir teorias que funcionem, que sejam úteis para as pessoas que lutam por justiça. As relações teoria-prática são parciais e fragmentárias, uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio. Se uma teoria não responde às necessidades práticas, é preciso criar novas teorias.

3.

O movimento político de 68 também marcou as diretrizes do engajamento intelectual nas universidades brasileiras. Numa coletânea de textos sobre o impacto do movimento na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, o ex-aluno Eder Sader afirma que a Faculdade: “não era apenas cenário importante da vida intelectual, como também centro de acesos debates políticos” (1988, p. 159).

Na juventude, além de cursar ciências sociais, Eder Sader militou em duas organizações de resistência à ditadura militar: a Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-POLOP) e o Partido Operário Comunista (POC). Com a criação da Operação Bandeirante (OBAN), a maioria dos militantes das organizações de resistência foram presos e torturados, alguns foram assassinados (KILSZTAJN, 2022).

Em suas anotações, Eder Sader (1988) aponta para a discrepância entre os seminários da militância sobre Marx e a chatice das aulas de Introdução à Sociologia, ministradas por docentes ilustres, como Octávio Ianni e FHC. A inspiração para esse tipo de curso, focado na bibliografia dos funcionalistas norte-americanos, seria a postura acadêmica e sociológica de Florestan Fernandes.

Para corroborar sua análise, Eder Sader refere-se a uma aula inaugural de Florestan Fernandes, ministrada em 1950, a estudantes da Faculdade de Filosofia: “Ali ele assinala a ruptura a ser feita tanto com a ‘cosmologia popular’, quanto com o ‘socialismo’, para que se adentrasse o campo das ciências sociais. A relação entre a atividade sociológica e a prática política se daria na medida em que esta pudesse se aproveitar dos conhecimentos científicos daquela, a qual, para isso mesmo deveria ter uma consistência distinta da dos engajamentos políticos” (1988, p. 161).

Essa aula de Florestan Fernandes, publicada na revista do grêmio da Faculdade de Filosofia, foi elaborada para estudantes que estavam começando o curso. Sem dúvida, Fernandes procura distinguir as ciências sociais dos outros dois tipos de explicação do social que muitos estudantes costumam ter acesso: a cosmologia popular e o socialismo. Contudo, Fernandes enfatiza que os conhecimentos produzidos pelas ciências sociais “se ligam tanto aos nossos problemas mais imediatos, quanto às nossas preocupações e anseios mais íntimos” (1951, p. 96).

De certo modo, a crítica de Eder Sader a Florestan Fernandes e a seus discípulos se aproxima da crítica de Sartre a Merleau-Ponty. Todavia, distinguir o horizonte das pesquisas em filosofia ou em ciências sociais do engajamento espontâneo do cidadão não implica em rejeitar o engajamento intelectual (RIBEIRO, 2005). Nesse sentido, Deleuze e Foucault destacam a centralidade da teoria nas intervenções da filosofia no mundo social.

No grego antigo, “theoria” significa contemplação, o verbo correspondente é “theoreo”, que se refere à ação de observar com atenção. Na sabedoria dos rappers, a relação teoria-prática pode ser traduzida pela expressão: pega a visão. Nas comunidades, pessoas de todas as idades a utilizam regularmente. Até mesmo meninos e meninas concebem suas próprias visões sobre a realidade que os cerca.

4.

Nesses tempos de redes sociais, o papel dos intelectuais precisa ser colocado novamente em questão. Muitos docentes das universidades utilizam o espaço virtual como extensão do espaço acadêmico: divulgam suas produções e as dos seus parceiros, apresentam os programas dos seus cursos, expõem detalhes dos pareceres negativos que receberam para suas pesquisas e artigos, entre outras coisas.

Seus textos postados nas redes sociais tratam de inúmeros assuntos do contexto nacional e internacional. São intelectuais polímatas. Alguns se dedicam a resenhar, diariamente, artigos publicados na grande imprensa. Seus textos mais populares evocam a principal vocação das redes sociais: instigar o linchamento moral das pessoas. Sobram opiniões, faltam teorias profícuas.

As redes sociais potencializam seus projetos acadêmicos, levando um público maior para suas atividades e ajudando a vender seus livros, palestras e cursos oferecidos em empresas particulares. As redes também facilitam sua inserção na carreira acadêmica, mesmo em áreas completamente estranhas à sua formação original. Aqueles que podem opinar sobre qualquer tema, também podem lecionar sobre tudo.

Alguns se colocam como influenciadores digitais, sempre prontos para se engajar em qualquer acontecimento. Como na foto de Foucault ao lado de Sartre e Glucksmann, estampam em seus perfis sociais fotos deles mesmos com microfones ou megafones. São ativistas virtuais. As selfs nas mais diversas manifestações atestam que esses intelectuais vão às ruas (com seus smartphones).

Certamente, é uma indignidade falar pelos outros. Mesmo que haja uma demanda social por líderes ou gurus. As pessoas têm consciência das situações de opressão em que estão submetidas, e podem criar suas próprias teorias para mudar a realidade. Cabe aos filósofos, cientistas sociais e demais intelectuais formularem novas teorias, como caixas de ferramentas que possam ser utilizadas.

*Paulo Fernandes Silveira é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Referências


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De massa marginal a uberizados

Por que invisibilizamos a racialização nos debates sobre o futuro do trabalho?

Vanessa Monteiro, A Terra é redonda (expandir)

No ano primeiro ano da pandemia global de Covid-19 o mundo foi abalado pelo levante negro que irradiou do coração do imperialismo norte-americano para todo o mundo. Derrubando estátuas e erguendo um pensamento radicalmente antirracista, anticapitalista e anticolonial, o movimento Black Lives Matter massificou a discussão sobre racismo estrutural e sistêmico. Ainda em 2020, ocorre no Brasil a primeira paralisação nacional de entregadores de aplicativos, com alcance internacional.

O Breque dos APPs colocou estes trabalhadores invisíveis no centro dos noticiários e foi responsável por uma queda histórica na avaliação da maior plataforma de entregas do país, o iFood, indicando a comoção e apoio de grandes setores da sociedade civil à paralisação. Ambos acontecimentos parecem ter-nos pego de surpresa, apesar de jogarem luz sobre processos nada recentes e mais ainda sobre o futuro da luta de classes.

Nosso ponto de partida para o presente texto são características estruturais da atual época de deterioração do modo de produção capitalista e seus efeitos nos países periféricos. Se o debate sobre o desenvolvimento ou não das forças produtivas no capitalismo no interior do movimento operário data de mais de cem anos, a argumentação de que o capitalismo atualmente permite o desenvolvimento da humanidade é cada vez mais insustentável. A emergência climática é a faceta mais explícita desta encruzilhada, mas não a única. Nos países do sul global o avanço das forças destrutivas incorpora tanto a formação de uma massa marginal quanto a política de morte, ambas atingindo sobretudo os povos racializados.

O Brasil, já apontava Lélia Gonzalez no final dos anos 1970,[i] não deixa de ser uma espécie de modelo deste desenvolvimento desigual e combinado dos processos históricos de acumulação do capital, por combinar uma economia dependente e neocolonial – até hoje baseada na exportação de commodities – que traz formas produtivas anteriores com a formação de uma massa marginalizada dos processos hegemônicos. Lélia Gonzalez apontava, há mais de 50 anos, que a população negra brasileira tinha os mais baixos níveis de participação na força de trabalho.

O privilégio racial, mesmo no interior da classe trabalhadora, é um componente que leva com que efetivamente o que exista seja uma divisão racial do trabalho: “…não é por coincidência que a maioria quase absoluta da população negra brasileira faz parte da massa marginal crescente: desemprego aberto, ocupações “refúgio” em serviços puros, trabalho ocasional, ocupação intermitente e trabalho por temporada etc (…) trabalhando de cinquenta a cem dias por ano, sem as garantias das leis trabalhistas” (GONZALEZ, 1979).

Além disso, expunha como um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro brasileiro na força de trabalho a sistemática perseguição, opressão e violências policiais, segundo os quais “todo negro é um marginal até prova em contrário”. Por fim, constata-se também o grave problema da situação do desemprego sobre a juventude negra.

Atualmente, somos um país de economia ainda dependente, em dinâmica de desindustrialização e contexto de estagnação econômica global. A crise global de 2008 segue como um marco do colapso do capitalismo financeirizado neoliberal, cujos traços estruturais são a tendência à precarização do trabalho, avanço da exploração e espoliação dos trabalhadores e a massificação do desemprego. O avanço das tecnologias desde então e o boom das startups de tecnologia não deixam de ser expressão também da reestruturação do capitalismo frente a esta crise, criando novas formas de exploração e de acúmulo do capital.[ii] A chegada da pandemia catalisou todos estes processos e ocasionou a generalização das condições degradantes de vida para amplas parcelas da população, ampliando o empobrecimento, a fome e a desigualdade que, em um país assentado no passado da colonização, tem classe e raça.

No Brasil, 73% da população negra perdeu renda durante a pandemia[iii] e está entre a ampla maioria dos que perderam o emprego em 2020, representando 71% do total.[iv] A ampliação em larga escala do que Lélia Gonzalez chamava de massa marginal manifesta-se nos mais de sete milhões de trabalhadores negros desalentados que saíram da força de trabalho ao final de 2020, comparado a menos de 3 milhões entre trabalhadores brancos. A desigualdade racial atravessa todas as camadas sociais do país, demonstrando a vigência do privilégio branco e a relativa autonomia que existe no fator raça como marcador social da diferença. Segundo pesquisa feita pelo Sebrae, empreendedores negros faturaram menos, tiveram maior perda de receita e estão entre a maioria dos inadimplentes comparado aos empreendedores brancos. Destes, as mulheres negras foram as mais afetadas.

A surpreendente queda no desemprego em 2022 na verdade tem por trás a rápida recuperação dos trabalhos informais após reabertura da economia, comparado aos empregos formais.[v] Ou seja, diminui o desemprego porque essa parcela antes fora do mercado de trabalho está se inserindo em trabalhos precários, com maiores jornadas e menores salários. Segundo dados da PNAD, a taxa de informalidade no Brasil representa 40,1% da população ocupada, totalizando mais de 38 milhões de brasileiros, um gigante social. Entre os trabalhadores negros, um a cada dois estão na informalidade. Assim, o contingente de jovens negros que trabalham como entregadores de aplicativos cresce a olhos vistos, sobretudo nas grandes capitais. Em São Paulo, segundo a Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo, realizada pela Aliança Bike, 71% dos entregadores são negros, trabalham 14h diariamente e recebem em média R$963 por mês.

A uberização, além das plataformas digitais, é uma tendência para o futuro laboral, um novo tipo de gestão e controle da força de trabalho, consolidando os modelos “just-in-time” e sob demanda[vi] mais como regra do que exceção. O processo de informalização, ou seja, a perda de formas estáveis, contratualmente estabelecidas e socialmente acordadas, não é exatamente uma novidade histórica para um país periférico como o Brasil. O que ocorre, no contexto de crise, é o alastramento – viral – dessa condição periférica; ao mesmo tempo em que piora ainda mais a vida daqueles que historicamente estiveram à margem.

Vale destacar que a crise social atrelada ao racismo estrutural é extremamente vantajosa e lucrativa para essas empresas. Segundo relatório da Euromonitor, o Brasil lidera o ranking mundial de demanda por delivery. As empresas-aplicativo estão no centro destes números, devido a baixa remuneração e desvalorização do valor da força de trabalho,[vii] barateando o preço final aos clientes. Desde que ocorreu o Breque dos APPs, não encontramos na imprensa divulgação dos valores exatos do lucro da iFood, que hegemoniza o mercado no Brasil concentrando mais 80% das vendas de delivery.[viii]

Porém, sabemos que até abril de 2020 o iFood teve crescimento em seu faturamento de 234%[ix] e crescimento de 205% em sua receita anual, segundo relatório do Prosus, acionista do iFood.[x] O grupo diz ainda que o setor de entregas tem um potencial de faturamento no mercado global de mais de US$330 bilhões até 2022 e a perspectiva é de lucrar ainda mais. Faz todo o sentido, com essas cifras, que o Prosus comemore em seu relatório: “Foi um ano extraordinário!”.

A condição do entregador que não tem direitos trabalhistas e previdenciários, que cumpre jornadas extenuantes para poder sobreviver e que é o mesmo corpo vítima da violência do Estado é inversamente proporcional aos lucros destas empresas. Não à toa o iFood tem em sua origem uma relação direta com grandes empresas que apoiaram o regime do apartheid na África do Sul.[xi] Como aponta o sociólogo Léo Vinicius Liberato “a história pesa sobre o presente, e o passado continua tomando outras formas, mesmo que em diferentes geografias”. E assim pesa sobre o presente todos os dias a segregação racial e o genocídio negro, que não se dissocia da invisibilização e desumanização com a qual empresas como o iFood lidam com os entregadores.

O Rio de Janeiro, nesse sentido, é um exemplo acabado sobre as relações entre segregação racial e violência de Estado em tempos de crise. Em Niterói, em novembro do ano passado, Elias de Lima Oliveira, que era entregador do iFood, foi assassinado pela polícia com um tiro na cabeça. Assim como foi Moïse, Jonathan, as vítimas da chacina do Jacarezinho e da Vila Cruzeiro, Elias foi alvo da mesma visão: a de que todo negro é marginal e por isso pode ser sumariamente executado.

Neoliberalismo, autoritarismo e necropolítica são parte de um mesmo projeto. Capitalismo e democracia nunca foram compatíveis. Falamos de um modo de produção edificado sobre o colonialismo, onde prevaleceram regimes autoritários e racialmente hierarquizados. Hoje, em meio à crise neoliberal o que vemos é um racismo cada vez mais violento, que se expressa tanto pelo aprofundamento da desigualdade social e a perpetuação dessa massa marginal composta por homens e mulheres negras, quanto na coerção e extermínio por aparato do estado ou privado. Do Black Lives Matter ao Breque dos APPs há um mesmo corpo racializado que hoje está no centro das principais formas de dominação para a exploração da força de trabalho e reprodução do capital.

Ainda assim, fomos pegos de surpresa e é com esse “por quê” que concluímos nossa reflexão. Se o centro das formas atuais de dominação do capitalismo neoliberal em crise estão nas margens – nos países do sul global, sobre os povos racializados, na forma de uberização do trabalho e política de extermínio – e se, como não poderia deixar de ser, partem daí as principais tendências da luta de classes em nosso tempo, por que nos falta – enquanto esquerda revolucionária – o programa e a obstinação por responder a estes problemas? O quanto não há por trás de certo desprezo pela organização dos precários o fetiche pelo operário industrial cada vez mais minoritário na composição da classe trabalhadora em nosso país?

O quanto não há por trás da ideia de que estes homens são “mais lumpens do que trabalhadores” uma assimilação da divisão racial do trabalho, que justifica com que o povo negro seja jogado à margem dos processos hegemônicos? Sob a ótica cega de que ocorrem lutas específicas deixamos de ver o potencial de novos mundos que pulsam vida e irrompem barreiras. Confiamos que, com humildade e olhar atento, o rastilho destes confrontos pode iluminar nossos caminhos.

*Vanessa Monteiro é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Notas


[i] GONZALEZ, Lélia. A juventude negra e a questão do desemprego. Apresentado no encontro anual da African Heritage Studies Association, com o título “Black Youth and Unemployment”. Em II Annual Meeting of The African Heritage Studies Association, Pittsburgh, 26-29 abr. 1979. Mimeografado.

[ii] SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataformas. Buenos Aires: Caja Negra Editora, 2018.

[iii] https://observatorio3setor.org.br/noticias/no-brasil-73-da-populacao-negra-perdeu-renda-durante-a-pandemia/

[iv] https://www.cut.org.br/noticias/racismo-estrutural-segrega-negros-no-mercado-de-trabalho-548e#:~:text=De%20acordo%20com%20os%20dados,menor%3A%202%2C7%20milh%C3%B5es.

[v] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60148613

[vi] ABÍLIO, L, C. Uberização: A era do trabalhador just-in-time? Revista de Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p.111-126, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3498.008 >

[vii] https://bahia.ba/entretenimento/brasil-lidera-ranking-de-maior-demanda-de-delivery-no-mundo/

[viii] https://tecnoblog.net/especiais/ifood-domina-o-delivery-no-brasil-mas-restaurantes-e-rivais-contam-como-vao-reagir/

[ix] https://www.snaq.co/post/ifood-entregando-resultado-faturamento-cresce-234

[x] https://www.prosus.com/news/investors-annual-reports/

[xi] https://diplomatique.org.br/ifood-a-heranca-do-apartheid-no-brasil/

Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política

Considerações sobre o livro de Rodrigo Nunes

Fernando Nogueira da Costa, A Terra é redonda (expandir)

o livro Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política, Rodrigo Nunes afirma: “a melhor forma de fortalecer a atividade local não é focar na construção de organizações por si só, sem um propósito claro, mas partir de apostas estratégicas concretas e deixar o trabalho envolvido na sua execução ditar as necessidades organizacionais”.

Isso coloca a ênfase mais na estratégia em vez de ser nas estruturas organizacionais, para alcançar suas metas. Promove a fidelidade a uma base social, uma análise e um plano geral de ação sobre a identidade do grupo.

O importante é o trabalho ser feito, não quem o faz. A força de um núcleo organizador não reside no tamanho dos seus membros em si, mas naquilo capaz de ele realizar.

Uma meta estratégica é parcial não no sentido de se restringir a uma pequena escala ou a uma única questão local, mas no sentido de não saber como todas as mudanças acontecem. Em parte, trata-se de processamento de informações: há um limite de assuntos ser mantidos em foco a qualquer momento.

É preciso saber por onde começar. Desenvolver uma compreensão mais apurada de partes específicas do “quebra-cabeça” social tem também a ver com a capacidade de agir: dividir o objetivo sistêmico mais amplo em intervenções específicas possíveis de planejar, organizar e desenvolver.

O leitor atento percebe a ciência da complexidade apoiar a ciência política utilizada pela análise de Rodrigo Nunes. Ela é uma abordagem transdisciplinar capaz de explorar sistemas complexos e dinâmicos e oferecer insights valiosos para a ciência política.

A ciência da complexidade permite a construção de modelos de análise, considerando a interconexão e a interdependência de diferentes elementos em sistemas políticos. Esses modelos podem capturar dinâmicas não-lineares e emergentes, melhorando a compreensão de como mudanças em uma parte do sistema afetam o todo.

Também é útil na análise de redes sociais, identificando padrões de interconexão entre atores políticos, partidos, organizações e cidadãos. Isso ajuda a compreender melhor as relações de poder, alianças e influências, as quais configuram o cenário político de maneira dinâmica, isto é, variável ao longo do tempo.

Abordagens complexas podem ser aplicadas ao estudo do comportamento eleitoral, considerando as influências mutáveis e inter-relacionadas capazes de moldar as escolhas dos eleitores. Inclui fatores como opiniões públicas, redes sociais e influências culturais.

O método da ciência da complexidade auxilia a elaborar estratégias para a resolução de conflitos, considerando a natureza dinâmica e adaptativa dos sistemas sociais e políticos. Abordagens mais flexíveis são desenvolvidas para lidar com situações complexas.

A compreensão de sistemas políticos como sistemas complexos permite desenvolver políticas mais adaptáveis e resilientes. Isso é crucial em um mundo onde as mudanças rápidas e imprevisíveis são comuns.

A ciência da complexidade oferece insights sobre como melhorar a tomada de decisão política, considerando a incerteza, a variedade de agentes e os efeitos não-lineares possíveis de surgir de diferentes cursos de ação. Ao analisar movimentos sociais e ativismo político como sistemas complexos, entende-se como as ideias se espalham, como os grupos se formam e como as mudanças políticas surgem de maneira orgânica.

Integrar os princípios da ciência da complexidade na ciência política, como está nas entrelinhas do livro de Rodrigo Nunes enriquece a compreensão dos fenômenos políticos, proporcionando uma visão mais holística e dinâmica. Essa abordagem é útil em um mundo onde as mudanças rápidas e a interconexão global desempenha um papel significativo na dinâmica política.

Ele também examina as transformações pelas quais a ideia de revolução passou, desde o século XVIII, para trazer à tona três características: contingência, composição, complexidade. Dominam a forma como a concebemos hoje.

Uma teoria da revolução é necessária para uma teoria da organização? A grande desilusão do Socialismo Realmente Existente (SOREX) deixou claro: os países ditos socialistas não estiveram, de fato, em transição para o comunismo, conforme Karl Marx.

Para alguns marxistas dogmáticos, desconhecendo a teoria de evolução sistêmica, a revolução será imediata ou jamais acontecerá. Porém, “o comunismo não será alcançado em um piscar de olhos”, logo, exige uma transição plena de toda a sociedade.

No seu sentido geral de passagem entre estados de coisas, “transição” é um conceito mais amplo diante de “revolução”. Portanto, a transição não deve ser uma parte da revolução da qual se parte, mas, ao contrário, uma revolução talvez atue na transição.

Uma mudança sistêmica exige uma combinação de lógicas reformistas, de construção alternativa intersticial e de revolucionárias ou disruptivas, ou seja, é um processo de “transição”. Diferentemente da tradição marxista, ela é não linear, desigual e conflituosa, em vez de ser contínua, homogênea e gerida a partir de cima por um único partido.

O reformismo gradualista modifica o sistema capitalista mais apropriadamente, em lugar de enfrentar uma reação negativa, provocada por um choque revolucionário. As iniciativas intersticiais produzem uma alternativa funcional aos circuitos existentes de produção e reprodução. Uma onda de ruptura institui formas sociais totalmente novas em vez de uma ruptura da vida cotidiana se tornar insuportável.

A alternativa, proposta por Nunes, é conceber um processo no qual a destruição, a construção e o reaproveitamento aconteçam em paralelo. A ruptura, bem como a mediação, ocorram em diferentes escalas ao mesmo tempo.

Uma “sociedade transitória” é entendida como uma formação social instituída na sequência de um grande evento perturbador para mediar entre a formação social a ser destruída e aquela a ser criada pela combinação de características de ambas.

Se o desafio da transição é essencialmente o de gerir a velocidade da transformação – não tão lenta sem escapar da mera reprodução das formas sociais existentes, nem tão rápida a ponto de a reprodução social ser completamente destruída – a questão chave é coordenar múltiplas temporalidades de ritmos de mudança em velocidades variáveis. Exige um esforço constante e deliberado para jogar continuidades e descontinuidades em apoio a (para reforçar) e contra (para corrigir o curso de) o outro.

Portanto, Rodrigo Nunes propõe a noção de “diversidade de estratégias”. É difícil imaginar, a partir da situação atual, qualquer tática ou estratégia única poder, por si só, evitar alterações climáticas catastróficas e criar um sistema global igualitário no processo.

Em vez de multiplicar incessantemente a ação em inúmeras decisões individualizadas e iniciativas apenas locais, a aposta mais razoável parece ser maximizar o impacto estrutural das limitadas capacidades de ação. Buscar a combinação de ação direta, intervenção estatal e construção de infraestruturas autônomas.

Já há algum tempo a esquerda reduziu artificialmente as suas próprias opções, insistindo em tratar novos problemas empíricos como existissem a priori e rejeitando impensadamente possibilidades não com base em avaliações situadas do possível de funcionar, mas por razões meramente identitárias. Rodrigo Nunes sugere este ser um sintoma melancólico, associado às derrotas do século XX, as quais dividiu a esquerda em dois amplos campos incapazes de aprender alguma coisa com o fracasso, exceto a confirmação interminável das falhas inerentes à abordagem do outro campo.

Em última análise, não importa se algum dia conseguiremos realmente acabar com essa melancolia antirrevolucionária. Bastará termos feito o suficiente para continuar com o trabalho de investir recursos finitos para dar aos projetos importantes para nós a melhor oportunidade possível de vencer.

Em síntese de minha leitura do citado livro, organizar politicamente movimentos sociais com manifestações de certas ideias requer estratégia, comunicação eficaz e engajamento da comunidade. Exige: (i) estabelecer metas e objetivos específicos para o movimento; (ii) ter clareza sobre o que se quer alcançar para orientar ações e mobilizar o apoio; (iii) desenvolver uma mensagem clara e acessível para transmitir os objetivos do movimento; (iv) aproveitar as redes sociais e outras plataformas online para mobilizar apoiadores, compartilhar informações e criar conscientização sobre as questões em pauta; (v) colaborar com organizações afins, grupos comunitários e outros movimentos sociais; (vi) engajar a comunidade através de reuniões, fóruns, workshops e outros eventos; (vii) ter líderes capacitados pode fortalecer a capacidade do movimento de articular suas ideias de maneira eficaz; (viii) o movimento deve ser inclusivo e representativo da diversidade da comunidade para fortalecer sua legitimidade e sua representatividade; (ix) planejar manifestações e protestos pacíficos porque a presença física em eventos públicos atrai a atenção da mídia e da opinião pública; (x) dialogar com partes interessadas, incluindo representantes governamentais.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

Referência


Rodrigo Nunes. Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política. Tradução: Raquel Azevedo. São Paulo, Ubu, 2023, 384 págs. [https://amzn.to/3Uupo3R]

O consumo conspícuo

Resumo: A teoria do consumo conspícuo é um elemento da construção teórica Vebleniana elaborada originalmente em seu primeiro livro A Teoria da Classe Ociosa. O termo é entendido como o padrão de consumo (especialmente) da classe ociosa usado como símbolo de status, demonstração de prestígio individual e de distinção social. Assim sendo, apresenta um importante componente cultural em que as preferências são formadas endogenamente, sendo emulado pelas outras classes, tornando-se, portanto, um comportamento socializado. Em meados do século XX, esta ideia geral de que classes mais ricas procuram demonstrar riqueza através do consumo de bens de luxo foi absorvida pela microeconomia convencional. O objetivo deste artigo é examinar as características gerais do conceito Vebleniano e demonstrar as inconsistências e limitações de sua “neoclassização”. Conclui-se que sua interpretação neoclássica implicou em determinadas abstrações que viesaram a proposta original do autor institucionalista (acesse o texto integral)

Alexandre Ottoni Teatini Salles, UFES, Scielo

Leia também: Espaços VIP simulam riqueza num país pobre de cidadania, Fabiana Moraes, Intercept 

Abstract

The theory of conspicuous consumption is an element of the Veblenian theoretical construction originally elaborated in his first book The Theory of the Leisure Class. The term is understood as the level of consumption (especially) of the leisure class used as a status symbol, a demonstration of individual prestige and social distinction. Thus, it presents an important cultural component, in which preferences are formed endogenously, emulated by the other classes, and thus become a socialized behavior. By the middle of the twentieth century, this general idea that richer classes seek to demonstrate wealth through consumption of luxury goods has been absorbed by conventional microeconomics. The purpose of this article is to examine the general characteristics of the Veblenian concept and to demonstrate the inconsistencies and limitations of its “neoclassization”. It is concluded that this neoclassical interpretation resulted in certain abstractions that justified the institutionalist author’s original proposal.

Keywords:
Conspicuous consumption; Intersubjective preferences; Veblen, Thorstein, 1857-1929

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Introdução

Thorstein B. Veblen (1857-1929) é conhecido como o precursor de uma Escola de pensamento da ciência econômica que foi batizada por Hamilton (1918) de Economia Institucional, e chamada por Boulding (1957) e Kapp (1968) de Institucionalismo Americano. Décadas mais tarde, devido ao surgimento de outra agenda de pesquisa também relacionada às instituições, a abordagem Vebleniana foi denominada Institucionalismo Original (ou Velho Institucionalismo) por Hodgson (1989), Langlois (1989), Mayhew (1989) e Rutherford (1989). As obras completas do autor envolvem a publicação de mais de cem artigos e de onze livros (Camic; Hodgson 2011) abarcando teoria e aplicação de seu método aos mais variados temas de sua realidade histórica. Sua principal contribuição para a ciência econômica foi a proposição de uma economia política evolucionária de inspiração darwiniana, com importante rigor sociológico e antropológico. Por conseguinte, recusou-se aceitar a hipótese de que a característica primordial do comportamento humano é determinada por racionalidade substantiva, hedonismo e imutabilidade.

A partir de um sistema de economia política antropológico-evolucionário (Cavalieri, 2009) o autor investigou temas da ciência econômica em claro contraste com a abordagem convencional de sua época. Isso inclui, por exemplo: a natureza epistemológica da Economia; a evolução histórica da sociedade humana enquanto desenvolvimento de suas instituições; a metodologia econômica; as características da atividade industrial, passando por discussões sobre estruturas de mercado, ciclos econômicos, sistema de preços e de crédito; a estrutura das classes sociais, envolvendo discussões sobre seus hábitos de vida, padrões de comportamento e de consumo; o papel das instituições na determinação da atividade econômica; além de temas relacionados a relações internacionais, nacionalismo, judaísmo, guerra, ensino superior e a condição da mulher na evolução histórica das sociedades.

Baseado em suas pesquisas acerca da natureza da vida sob o sistema pecuniário, Veblen estabeleceu as causalidades dos fenômenos econômicos e sociais dentro de uma perspectiva evolucionária. Ou seja, a atividade econômica é resultado de uma sequência cumulativa de eventos que se desdobram no tempo gerando consequências que são, simultaneamente, não antecipáveis (por isso, não calculáveis) e imprevisíveis. A isso, ele denominou (unfolding) sequence of cause and effect (1898a [2017], 1909). Assim, buscou compreender e analisar características do comportamento humano até então não incorporadas à análise econômica convencional, tais como: instintos, hábitos, instituições, costumes, códigos de conduta, valores humanos ligados a comportamentos idiossincráticos, e rivalidades sociais.

Na teoria institucionalista e evolucionária do autor, a sociedade é vista como um organismo complexo que evolui a partir das mudanças sequenciais e cumulativas ocorridas na estrutura institucional na qual se estabelece. Em outras palavras, a evolução social é um processo de seleção natural das instituições de forma que a vida do homem em sociedade assemelha-se (metaforicamente) à luta pela sobrevivência das espécies tal como proposto por Darwin. Veblen define instituições como hábitos de pensamento disseminados e arraigados na estrutura mental de uma sociedade que determinam o comportamento corriqueiro e o esquema de vida dos indivíduos (Veblen, 1898a [2017], 1898b e 1899 [1983]). Sendo assim, resultam de processos históricos passados, adaptados a circunstâncias sociais e culturais passadas, não estando por isso em pleno acordo com as exigências do presente.

A teoria do consumo conspícuo é um aspecto da construção teórica Vebleniana elaborada originalmente em seu primeiro livro (sua obra mais conhecida), A Teoria da Classe Ociosa (1899) (TCO)1. Na TCO Veblen define consumo conspícuo como aquele que visa demonstrar, prima facie, que o agente possui um elevado nível de renda e faz uso disso por meio de ostentação consumista a fim de se diferenciar socialmente dos outros indivíduos. Através deste conceito, compreende-se que tal padrão de consumo era característico das classes abastadas almejando ostentar seu padrão de vida imódico. Ademais, Veblen (1899) assevera que este comportamento da classe ociosa influenciava a formação de preferências e o padrão de consumo das classes inferiores, de tal forma que estas procuravam emular o padrão de consumo daquelas. Desde então, esta interpretação tem impactado marcadamente a compreensão de scholars que estudam o consumo na sociedade moderna. Uma vez que o padrão de consumo típico da classe mais alta é emulado pelas classes mais baixas, o consumo ostentatório assumiu um caráter ubíquo. Assim, tornou-se um conceito amplamente utilizado por diferentes autores para interpretar o consumo com diferentes propósitos e sob diferentes pontos de vista (Edgell 1992; Trigg, 2001; Barreiro, 1998; Ayala, 2004; Gonzalez, 2008; Woodside, 2012; Figueras; Morero, 2013).

Esta ideia geral de que classes mais ricas procuram demonstrar sua riqueza através do consumo de bens de luxo foi absorvida pela microeconomia convencional em meados do século XX. Tendo isso em mente, o objetivo do artigo é apresentar as interpretações marginalistas do consumo conspícuo a partir do artigo seminal de Harvey Leibenstein (1950) até os estudos mais recentes, demonstrando que sua modelagem implicou em diversas abstrações que enviesam a proposta teórica institucionalista e evolucionária de Veblen. Por isso, propõe-se que houve uma interpretação marginalista da abordagem Vebleniana do consumo, ou seja, uma neoclassização do conceito, em oposição à sua conotação original (semelhante ao que foi feito com o pensamento de Keynes no âmbito da Síntese Neoclássica). O artigo demonstra que autores marginalistas (de forma explícita ou não) absorveram o conceito, mas não a metodologia e a ontologia que o fundamenta. Esta ampliação das fronteiras do pensamento convencional “abrindo sua agenda, fechando questões pendentes e uniformizando o discurso cada vez mais formalizado” foi chamado metaforicamente por Possas (1997) de “cheia do mainstream”2.

O artigo possui quatro seções adicionais. Na seguinte, apresenta-se a teoria do consumo conspícuo tal como discutida por Veblen na TCO. A seção 2 examina as interpretações marginalistas do consumo conspícuo iniciando com o artigo seminal de Leibenstein (1950) e avança para autores mais recentes. Em seguida, procura-se demonstrar como o consumo conspícuo foi interpretado pela abordagem convencional, propondo que ocorreu uma neoclassização da TCO. Por fim, considerações finais concluem o artigo.

1 O consumo conspícuo segundo a interpretação Vebleniana

De acordo com Mason (2002), Veblen desenvolve uma abordagem de natureza histórica-antropológica-sociológica acerca do consumo na TCO. Tal interpretação está ligada à sua teoria do processo de decisão que se assenta em uma construção ontológica do agente erguida sob os conceitos de instintos, hábitos e instituições (Salles; Camatta, 2017). Assim, uma análise Vebleniana do consumo propõe que o padrão de comportamento do consumidor está relacionado não apenas às escolhas dos indivíduos isoladamente, mas principalmente aos hábitos mentais desenvolvidos por eles, enraizados em sua cultura. Isso significa que o consumo apresenta um caráter inerentemente social e cultural. Significa também que o autor entende o consumo em uma perspectiva evolucionária uma vez que leva em consideração as características e as mudanças no comportamento dos indivíduos ao longo do tempo diante da interação destes com o ambiente social. Isso quer dizer que alterações estruturais no perfil das instituições e das relações econômicas e sociais são importantes para descrever as particularidades do fenômeno. Trata-se, portanto, de um conceito histórica e institucionalmente denso.

No livro de 1899, Veblen apresenta as condições históricas subjacentes ao surgimento da classe ociosa. Esta é considerada a classe social responsável por ocupações governamentais, bélicas, religiosas e esportivas, sendo por isso isenta de qualquer função industrial. Ao identificar as características idiossincráticas do comportamento desta classe afortunada financeiramente e privilegiada socialmente, Veblen elabora sua visão sobre o que chamou de consumo conspícuo. Para o autor, o consumo não é somente motivado pela necessidade (no sentido de indispensável à subsistência), ou até mesmo pelo conforto que ele confere, mas também pelo apelo ostentatório intrínseco à sua aquisição. Isso significa que muito além das necessidades físicas, espirituais3, estéticas e intelectuais, o consumo para esta classe serve como forma de demonstração de honorabilidade e distinção, sendo um importante meio de materializar status social a seu possuidor.

Para o precursor da Economia Institucional, a mola propulsora do consumo é a emulação pecuniária, ou seja, a necessidade de cada indivíduo sobrepujar outros agentes na acumulação de bens. Neste caso, o indivíduo busca a demonstração (leia-se, ostentação) de sua riqueza para satisfazer seu instinto de competição pecuniária de tal forma que a posse da riqueza torna-se, por si só, honorífica. Em outras palavras, a propriedade de bens adquire valor principalmente como prova de superioridade daquele que a possui em relação aos que não dispõem de haveres materiais. No momento em que a atividade industrial se sobrepõe à atividade predatória (ou seja, às funções meramente pecuniárias e não produtivas), “a posse da riqueza se torna relativamente mais importante e mais eficaz como a base costumeira de estima e reputação” (Veblen, 1899 [1983], p. 17).

O apego aos bens materiais é de tal modo elevado que não é possível conquistar uma posição honrosa na sociedade moderna sem a propriedade deles, uma vez que esta torna-se a base convencional da estima social. Isso significa que a opulência, inicialmente valiosa como prova de aptidão industrial, torna-se um ato digno por si mesmo pois confere honra a seu possuidor. Por isso, Hamilton (1987) considera que a visão de Veblen sobre o consumo tem duas dimensões: uma cerimonial e outra instrumental. Ou seja, o consumo serve de símbolo de status social e, simultaneamente, como um instrumento para alcançar determinado fim, a ostentação.

Veblen não descarta a importância da utilidade como “o elemento mais patente” que motiva o consumo. Contudo, ele propõe que há uma motivação mais significativa do que esta ao afirmar que a emulação é a “prova honorífica de prepotência do dono” (1899 [1983], p. 16). Ou seja, conquanto a utilidade - proveniente da necessidade - seja um elemento que leva ao consumo, é a ostentação de riqueza que representa o comportamento típico do consumidor. O desenvolvimento das técnicas industriais e o consequente aumento em eficiência do sistema econômico acarretaram uma “luta ulterior pela riqueza” como a necessidade de melhoria no modo de vida, principalmente pelo aumento dos “confortos físicos” que o consumo proporciona4.

A mercadoria consumida para ostentação tem um “período de validade” curto pois desde que deixa de ser considerada novidade já não é capaz de promover comoção. Logo, os agentes são obrigados a continuar consumindo produtos diferenciados de modo a manter o objetivo ostentatório atribuído a este hábito. A moda é um dos resultados desta tendência. Ela se modifica em períodos curtos (por exemplo a cada estação, no caso do vestuário) orientando os consumidores a manterem-se sempre dentro destes padrões estabelecidos culturalmente pela classe ociosa.

Quando o nível de renda do agente atinge um patamar superior ao que é necessário à sua subsistência, a maior parte dos aumentos posteriores que ele obtiver será dedicada ao consumo conspícuo. Portanto, os ganhos de produtividade advindos de novas tecnologias e qualificação do trabalho tendem a aumentar os gastos conspícuos ao invés de reduzir sua quantidade de trabalho. Em outras palavras, o agente não diminui seu número de horas trabalhadas a fim de assim aumentar sua renda e, por conseguinte, seu gasto conspícuo emulatório.

O conceito de emulação pecuniária também engloba o de ócio conspícuo. Na abordagem Vebleniana, ócio significa simplesmente tempo gasto em qualquer atividade não-produtiva. O tempo despendido nestas atividades decorre, primeiramente, pelo indecoro do trabalho industrial (repetitivo). E, em segundo lugar, como prova da necessidade de cada indivíduo de superar o outro através de sua opulência pecuniária, que permite não tenha necessidade de empreender qualquer atividade ligada à produção.

O aprendizado formal de boas maneiras é um exemplo de ócio conspícuo uma vez que requer dispêndio de tempo e treinamento em atividades não produtivas. Como forma de ocupação digna do tempo ocioso, a boa educação não é somente um sinal de excelência, mas um traço da alma de seus detentores. Assim, o valor intrínseco das boas maneiras está no fato de que são prova de uma vida opulenta. Ou seja, ócio conspícuo demonstra a capacidade do indivíduo de se sustentar sem exercer qualquer tipo de trabalho produtivo, o que contribui para sua própria respeitabilidade.

Tanto o ócio quanto o consumo conspícuo servem para demonstração pecuniária de poder, obtendo eficácia semelhante. Assim, a opção entre a emulação via ócio ou consumo conspícuo depende da ocasião e do grupo para qual se deseja atingir. Contudo, de acordo com o autor institucionalista, a melhor maneira de se demonstrar honorabilidade é de fato o consumo conspícuo exatamente por conta de seu mecanismo emulativo. Veblen reconhece que em estágios primitivos da civilização em que as comunidades eram de menor porte, tanto o ócio quanto o consumo conspícuos eram formas eficientes de demonstração pecuniária. Contudo, com o avanço da urbanização e o crescimento demográfico, surge a crescente necessidade de demonstrar riqueza a um número cada vez maior de pessoas em localidades mais distantes. Por isso, o ócio torna-se pouco eficaz e a demonstração de riqueza se concentrou no consumo. Ócio exige que o observador tenha um conhecimento maior sob o observado, enquanto o consumo de luxo (mansões, jóias, carros) são imediatamente sinalizados aos observadores5.

Segundo Veblen, a regra do dispêndio honorífico influencia as escolhas dos indivíduos no que se refere à beleza, utilidade e obrigações. Neste ponto, o autor afirma que as regras do gosto possuem raízes “antiguíssimas” e antecedem o advento das instituições pecuniárias, como é o caso dos hábitos de pensamentos. No período onde as mercadorias ainda não eram elementos de emulação pecuniária pelos indivíduos, sua utilidade era o fator determinante para o consumo. De maneira involuntária, a beleza de um objeto está ligada a uma questão de facilidade de percepção, ou seja:

(...) a beleza de qualquer objeto percebido significa que a mente prontamente exerce a sua atividade perceptiva nas direções facultadas pelo objeto em questão. Mas as direções nas quais a atividade prontamente se desenvolve ou se exprime são as direções para as quais a mente se inclina mercê de um hábito longo e antigo (Veblen, 1899 [1983], p. 90).

A clássica comparação feita pelo autor entre duas colheres deixa clara a relação existente entre beleza e dispendiosidade. Uma colher feita à mão com requintes de estilo e forma não é mais útil, no sentido corriqueiro da palavra, do que uma colher do mesmo material feita à máquina em escala industrial. Porém, para o fim ostentatório, a colher feita à mão e mais cara (apesar de suas possíveis imperfeições) é mais efetiva do que a segunda, feita à máquina e mais barata. Assim, artigos produzidos à mão são mais exclusivos e, portanto, preferíveis àqueles produzidos em série no que se refere à dispendiosidade honorífica do tempo e esforço.

A utilidade de objetos, adornos e vestuários consumidos conspicuamente advém em maior grau à honra de sua posse do que à sua beleza intrínseca. Objetos belos e úteis são cobiçados como uma propriedade valiosa, e seu desfrute é uma maneira de demonstração pecuniária. Deste modo, qualquer objeto bastante valioso tem de se conformar não apenas aos requisitos da beleza como também devem ter um alto preço. Isso quer dizer que uma coisa dita bela e não dispendiosa, de fato não é bela. Por exemplo, um artigo pode ser rotulado de perfeitamente belo, contudo, após análise de seu valor estético, pode-se concluir que ele é apenas pecuniariamente honorífico.

Independente da classe social a que pertence o indivíduo, quando se trata do consumo conspícuo, o objeto deve apresentar beleza pecuniária como suplemento da beleza estética. Ou seja, um objeto não pode apenas ser belo fisicamente para ser atrativo e consumível. Ele precisa também ter beleza pecuniária6 como forma de demonstração. Todavia, existem diferenças de gosto entre classes. Estas não se devem às características estéticas dos bens, mas sim aos hábitos de pensamento que determinam se o consumo de determinado bem é honorífico.

A determinação do padrão de gosto da maior parte da população passa pela escolha do que é belo, e do que não é. A compreensão deste aspecto é necessária para o entendimento das propostas até aqui expostas uma vez que envolve conjuntamente os conceitos de belo e honorífico. Nas palavras do próprio autor: “a regra do preço caro nos afeta de tal maneira ao ponto de fundir inextricavelmente (...) em nossa apreciação os sinais de preço caro com os belos traços do objeto e subordinar o efeito resultante ao rótulo de uma apreciação da sua simples beleza” (Veblen, 1899 [1983], p. 80).

A classe ociosa não utiliza apenas vestimentas e adornos como forma de demonstração de riqueza. O cachorro e o cavalo de corrida também são utilizados e apreciáveis para fins de ostentação. O cachorro pela relação de servidão estabelecida entre o animal e seu dono, principalmente por este constituir uma fonte de gastos supérfluos. Neste aspecto, Veblen faz uma analogia entre a servidão dos cães para com seus donos, e a servidão de um escravo a seu senhor. Como os animais de estimação são excluídos de qualquer vínculo industrial e a atenção despendida a eles é considerada inútil, pode-se então considerá-lo também como forma demonstração de ócio conspícuo. Por sua vez, o cavalo de corrida é um instrumento de jogo e não tem nenhuma função industrial, por isso, distancia-se do útil e aproxima-se do ócio. O apelo social intrínseco a estes animais representa um dispêndio honorífico, e por isso são considerados belos.

Neste ponto, pode-se destacar novamente a importância dos hábitos de pensamento para difusão e incorporação de certas atitudes presentes em cada época. Para Veblen, a ligação entre o valor estético e o valor pecuniário emulativo das mercadorias não está conscientemente manifesto na visão do consumidor. Por isso, a formação dos hábitos é indispensável para que as pessoas os aceitem. Ao fazer sua escolha em relação ao mais belo, uma pessoa não pondera se este objeto está carregado pecuniariamente uma vez que este é um pensamento que já está enraizado.

Pode-se inferir daí que os termos usuais para designar a beleza de determinado objeto são os mesmos utilizados para classificar objetos carregados pecuniariamente, porém sem deixar claro que este objeto está sendo julgado de uma forma honorífica. Assim, Veblen afirma que as exigências pecuniárias coincidem com as exigências de beleza na compreensão popular.

O hábito de observar os traços de dispêndio conspícuo na mercadoria e o apelo à sua utilidade emuladora influencia a escolha dos indivíduos. Isto conduz a uma mudança nos padrões pelos quais se mede a utilidade das mercadorias. Tal como sublinhado acima, qualquer artigo produzido precisa conter o elemento honorífico e o elemento da eficácia. Por isso, Veblen afirma que nenhuma indústria produz mercadorias desprovidas do primeiro. Ele acrescenta que o indivíduo que fez da pobreza extrema uma virtude e insiste na eliminação de todos os elementos honoríficos ou de desperdício de consumo, não conseguiria suprir suas necessidades mais básicas no mercado moderno. Ademais, ele acharia quase impossível abandonar os hábitos “contemporâneos” de pensamentos de tal maneira que raramente poderia obter suprimento para subsistência sem que instintivamente incorporasse um produto supérfluo à sua lista de requisitos.

Com a produção em larga escala pela indústria e a diminuição dos custos unitários de produção, as mercadorias industriais passaram a representar uma situação de inferioridade, pois se tornaram mais baratas e acessíveis a mais pessoas. Logo, passaram a ser repudiadas pela classe mais alta da sociedade, tornando-se o que Veblen chama de “comum”. Assim, seu consumo deixa de ser honorifico porque não serve aos propósitos de uma favorável comparação emuladora em relação aos outros consumidores.

Em última instância, o consumo conspícuo é uma forma de adequar o modo de vida dos indivíduos aos padrões estabelecidos pela sociedade. São estes padrões que determinam o que Veblen chama de “regra reguladora do consumo”. O consumidor alheio a estas regras não está de acordo com os padrões de “decência, na qualidade, quantidade e grau dos bens consumidos” (Veblen, 1899 [1983], p. 55). Por sua vez, a formação das preferências de consumo está intimamente ligada aos demais interesses do indivíduo devido à estrutura intrincada entre os hábitos de pensamento econômicos e não econômicos. Desta forma, as regras de dispêndio (provenientes do interesse econômico) afetam os sensos de estética, honra, dever, etc.

Uma vez apresentados estes aspectos essenciais acerca da caracterização do consumo conspícuo, a seção seguinte examina como este conceito extraído da TCO influenciou autores marginalistas, e como estes o interpretaram dentro de seu próprio arcabouço teórico.

2 A interpretação marginalista do consumo conspícuo

A partir da década de 1950, o conceito de consumo conspícuo foi absorvido pela abordagem marginalista, incorporando-se na agenda de pesquisa desta Escola em discussões relativas a temas tais como funções de utilidade endógenas, externalidades de consumo, economia da informação, sinalização, teoria dos jogos, entre outras. Uma evidência da utilização mais ampliada deste termo foi apresentada por Weber (2011). Ele realizou uma pesquisa com o termo “conspicuous consumption” em artigos de revistas internacionais de grande prestígio em Economia no período entre 1894 e 2010, e constatou que este aparece 227 vezes. Contudo, ele observou que o nome “Veblen” é referenciado em apenas 85 destes artigos. Identificou também que os termos “Veblen Efect”, “conspicuous consumption” e “prestigie goods” são utilizados como conceitos correlatos. Desta pesquisa, o autor conclui a interpretação marginalista do termo pode ser considerado de conhecimento universal na ciência econômica,

Como é bem conhecido nos manuais de microeconomia, o consumidor neoclássico não se move no tempo histórico, mas no tempo lógico, uma vez que suas decisões devem ser passíveis de representação conceitual matemática. A fim de acomodar este tipo de comportamento, a literatura especializada apresenta uma série de argumentos como os bens substitutos, complementares, bens de Giffen, os diversos conceitos de elasticidade da demanda, etc. Estes demonstram que o comportamento do consumidor pode mudar intertemporalmente. Na prática, isso significa que a teoria propõe a hipótese de que há várias possibilidades de equilíbrio devido a mudanças de curto prazo nas preferências dos agentes. Em suma, a teoria neoclássica do consumidor propõe que agentes racionais buscam, de forma hedonista, maximizar sua função de produção (ou função utilidade no caso das famílias) por meio do cálculo marginalista de utilidade decrescente das mercadorias.

Nesta interpretação, o consumo conspícuo ocorre quando os agentes consomem os chamados bens de Veblen, ou seja, bens de elevado valor, cujo interesse está intimamente ligado a seu alto preço e sua estética, em detrimento de sua serventia. A este respeito, duas obras seminais são dignas de nota. A primeira é o livro Income, Saving and the Theory of Consumer Behavior de James Duesenberry publicado em 1949. Nele, o autor interpreta matematicamente a teoria do consumo Vebleniana sem, contudo, utilizar o conceito de utilidade marginal para tanto. Logo a seguir, em 1950, Harvey Leibenstein publica o artigo Bandwagon, Snob, and Veblen Effects in the Theory of Consumers Demand. Este foi pioneiro na interpretação da teoria do consumo conspícuo de Veblen a partir de uma abordagem marginalista.

A ausência de um debate teórico mais amplo sobre o consumo conspícuo tal como apresentado entre o surgimento da TCO (1899) e os trabalhos de Duesenberry (1949) e Leibenstein (1950) pode ser parcialmente explicado pelos rigores socioeconômicos decorrentes que caracterizou a primeira metade do século XX marcada por duas guerras mundiais e pela grande depressão. Este período conturbado de crises promoveu uma drástica redução do consumo de bens de luxo ao redor do mundo. O resgate das ideias relacionadas ao consumo conspícuo acontece justamente quando este torna-se mais evidente. Tal fenômeno coincide com o surgimento de instrumentos de publicidade e propaganda veiculados por diversos meios de comunicação - em especial pela televisão - que no pós-guerra já tinha se tornado acessível para grande parte das famílias americanas (Mason, 2002; Patsiouras; Fitchett, 2012). As grandes transformações ocorridas na dimensão do mercado de massa neste período foram determinantes para o restabelecimento dos debates em torno das preferências de consumo na ciência econômica (Mason, 2000).

Duesenberry (1949) foi o primeiro autor a utilizar a matemática para mensurar e prever a busca por status social e o consumo baseado nas decisões de outros agentes. O autor cita o trabalho de Veblen como uma influência em sua teoria sobre a interdependência de sistemas de preferências, porém não considera suas próprias pesquisas como uma continuação da teoria Vebleniana justamente pela utilização da modelagem matemática (que Duesenberry denomina de Analytical Economics)7. Para ele, as preferências são formadas socialmente pela habituação dos agentes. Logo, seu livro não pode ser considerado como a primeira incursão marginalista sobre a teoria do consumo conspícuo, mas sim como uma primeira interpretação matemática sobre este tema8.

De fato, Leibenstein (1950) afirma que na época da publicação de seu artigo, a teoria do consumo conspícuo ainda não tinha sido absorvida pela abordagem marginalista9. Ele deu o primeiro passo nesta direção, introduzindo os conceitos de Snob Effect, Bandwagon Effect, e Veblen Effect. O consumo conspícuo é modelado a partir de curvas de demanda não aditivas uma vez que o autor postula que não seria possível somar as demandas individuais para obter uma curva de demanda agregada. Esta impossibilidade se deve ao fato de que, neste caso, o consumo de um agente influencia o dos demais. Afirma ainda que é possível abstrair este efeito (não aditividade da demanda) em diversos mercados, sem prejuízo da análise e da previsibilidade do comportamento do consumo dos bens normais. Todavia, este não é o caso dos bens que envolvem o consumo conspícuo, a moda, os bens “in style”, e aqueles relacionados ao Veblen Effect, Snob Effect e ao Bandwagon Effect. Diante destes, é necessário relaxar a hipótese de aditividade e direcionar o estudo para as características interpessoais deste tipo de consumo.

Segundo Leibenstein (1950), a literatura sobre a interpessoalidade da utilidade, anterior à publicação de seu artigo, havia sido abordada de três diferentes formas: a primeira ele denomina sociológica, e equivale à interpretação Vebleniana tal como discutida anteriormente, apesar de não ter sido ele o primeiro autor a definir o conceito10. A segunda abordagem equivale à teoria do Welfare, cujo foco está na política pública voltada à regulação dos bens conspícuos e à melhor utilização dos recursos utilizados em sua produção. A terceira, denominada teoria pura, lida com a problemática da não aditividade das curvas de demanda.

Entre as hipóteses do modelo adotado por Leibenstein (1950) estão: (i) a adoção da metodologia estática, na qual a ordem dos fenômenos pode ser abstraída de tal forma que o recebimento da renda e o gasto podem ser considerados sincronizados; (ii) repetição dos padrões de renda destinada ao consumo entre períodos; (iii) toda a renda recebida no período é gasta (não existe poupança); e, (iv) a variação de preços e os desequilíbrios só podem ocorrer e serem resolvidos entre períodos.

Após explicitar os pressupostos do modelo, Leibenstein (1950) divide a demanda em dois tipos: funcional, a qual surge devido a características inerentes à commodity; e não funcional, que equivale a demandas impostas por motivações exteriores à própria mercadoria. Por sua vez, esta demanda não funcional é dividida em três partes de acordo com a motivação que a incita: efeitos externos da utilidade; motivos especulativos; e motivos irracionais. Os componentes da primeira categoria (expostos a seguir) são o foco de seu artigo. Quanto à segunda, o agente compra mercadorias na expectativa de que seu preço suba. Finalmente, nos motivos irracionais, estão representadas todas as demandas não classificadas na tipologia acima. Em relação às diferentes motivações da demanda, Leibenstein (1950, p. 197), afirma que: “It is not within the competence of the economist to investigate the psychology of this kind of behavior”. Em outras palavras, o autor propõe que o comportamento psicológico que leva ao consumo conspícuo existe e, portanto, aquele que se interessa em estudar este tipo de consumo a partir de uma análise econômica deve considerar que este afeta a curva de demanda.

Os efeitos externos da utilidade dividem-se em três categorias: Bandwagon Effect, Snob Effect e Veblen Effect. O primeiro traduz situações onde a demanda individual de um produto conhecido num mercado definido depende tanto da qualidade deste bem quanto da demanda deste por outros agentes, considerando-se que há informação disponível suficiente em relação às demandas individuais. No caso do Snob Effect, a curva de demanda individual também depende da qualidade dos bens e da demanda de mercado, entretanto a relação com esta última é inversa. Neste, o comprador busca exclusividade, e quanto maior a demanda de mercado, menor o valor do bem. O caso extremo deste efeito é o bem no qual há somente um comprador.

No que tange ao Veblen Effect, novamente Leibenstein propõe que a utilidade da mercadoria não advém somente da sua qualidade intrínseca, mas também de seu preço (o que equivale a dizer que a utilidade é diretamente proporcional ao preço). Ao discutir este efeito, o autor assevera que a teoria do consumo conspícuo é de natureza sociológica, sutil e complexa. Contudo, ao formular sua análise, conclui que: “(...) we can, for our pourpose, quite legitmately abstract from the psychological and sociological elements and address our attention exclusively to the effect that conspicuous consumption has on the demand function” (Leibenstein, 1950, p. 202).

Com relação à diferença entre a interpretação de Leibenstein (1950) e Duesenberry (1949), ressalta-se que enquanto o primeiro acreditava que seria possível adaptar o tratamento microeconômico convencional da demanda ao consumo interpessoal, o segundo entendia que era necessária uma reformulação da modelagem sobre o consumo na teoria tradicional. Leibenstein afirma que a contribuição de seu contemporâneo foi extremamente importante, porém carecia de um maior detalhamento. Por último, pode-se notar que o livro de 1949 tem um caráter inerentemente macroeconômico, voltado para a determinação de políticas públicas, enquanto o trabalho de Leibenstein (1950) utiliza amplamente o aparato marginalista de caráter microeconômico (Mason, 2000, 2002).

Após do artigo de Leibenstein, o tema deixa de ser discutido na literatura internacional, ressurgindo no final dos anos 1980 com a publicação de uma série de artigos dedicados ao desenvolvimento de modelos, ainda mais formalizados, para a interpretação marginalista do conceito Vebleniano. Falando em termos bem mais amplos, Possas (1997, p. 13) afirma que o mainstream promoveu com grande intensidade o aumento da correnteza e a inundação das margens “na última década e meia, aproximadamente”, ou seja, exatamente por volta deste período mencionado acima.

Por exemplo, Basmann et al. (1988) conceberam um modelo no qual os consumidores possuem dois componentes de utilidade que competem entre si: (i) a utilidade advinda dos ganhos de bem-estar; e (ii) uma utilidade secundária imanente dos ganhos “sociais” da posse de determinada mercadoria. Os autores baseiam seu estudo econométrico diretamente nos escritos de Veblen (particularmente da TCO) e não fizeram qualquer menção ao modelo convencional clássico elaborado por Leibenstein (1950), ao contrário da maioria dos autores neoclássicos examinados no presente artigo. Basmann et al interpretaram os dois tipos de consumo diretamente a partir dos conceitos marginalistas de utilidade, apesar de reconhecerem suas diferenças com a proposta original de Veblen. Neste estudo, os bens de consumo são divididos em 5 categorias, quais sejam: alimentos, vestuário, habitação, duráveis, e saúde, sendo utilizados dados dos EUA para o período 1948/79. O principal resultado do modelo (relacionados aos propósitos deste artigo) é que, nestes anos ocorreu um aumento significativo do consumo motivado pela utilidade secundária (ii), ou seja, aquela voltada para a emulação.

Anos mais tarde, Bagwell e Bernheim (1996) 11 reinterpretaram as ideias propostas de Leibenstein desenvolvendo um modelo que retrata bens de mesma qualidade (bens idênticos) que são vendidos tanto como luxury brands (bens de luxo) quanto budget brands (bens comuns), porém, consideram que a venda dos primeiros gera uma renda mais elevada do que os outros. Os budget brands obedecem aos princípios clássicos da microeconomia convencional, e têm seu preço igualado ao custo marginal em uma estrutura de concorrência perfeita. Por outro lado, os luxury brands possuem preço superior a este custo (lucro econômico maior que zero). A diferença está justamente no preço pago entre os dois tipos, sendo que os consumidores que optam pelos luxury brands o fazem para demonstrar sua capacidade pecuniária.

Nesta perspectiva, o efeito Veblen ocorre quando os agentes aceitam pagar um preço maior por um substituto perfeito mais barato. O objetivo destes agentes é adquirir status social mediante o consumo conspícuo e a ostentação pecuniária. No modelo, a emulação ocorre quando eles procuram se diferenciar das classes inferiores, imitando o consumo das classes superiores. Bagwell e Bernheim (1996) afirmam que numa teoria de consumo conspícuo fiel aos princípios Veblenianos, a utilidade do bem deve ser definida a partir do status do consumo em detrimento dos preços. Todavia, na situação de equilíbrio, o status é sinalizado a partir dos preços.

Os motivos que estimulam a emulação ocorrem através de sinalização. Este conceito, comum na Nova Economia Institucional (teoria dos contratos) e na Nova Economia da Informação, equivale a uma situação onde uma parte (o agente) envia informações críveis sobre si à outra parte (o principal). No modelo do consumo conspícuo marginalista, o agente membro da classe superior sinaliza sua riqueza a partir do consumo de bens cujo preço seja proibitivo para as classes inferiores.

Em artigo aceito pelo Journal of Economic Psychology neste mesmo ano de 1996 (publicado em 1998), Chao e Schor dão continuidade às ideias propostas por Duesenberry (1949) e Leibenstein (1950) de que há um forte componente social nas demandas por consumo dos agentes. As autoras utilizam dados relativos à demanda de cosméticos norte-americana para ilustrar a correlação positiva entre o consumo destes bens (de alto preço) e a demonstração de status. A escolha deste tipo de bem se revela emblemática para ilustrar o consumo conspícuo nesta sociedade. Segundo os resultados do modelo, os agentes preferem (recorrentemente) consumir produtos substitutos quase perfeitos com preço superiores em aproximadamente 100 dólares como estratégia de emulação. É interessante ressaltar que apesar de propor uma interpretação marginalista do consumo conspícuo, as autoras fizeram referência em vários momentos à abordagem Vebleniana sobre o assunto através de citações diretas de trechos da TCO.

Aceito também em 1996, Corneo e Jeanne (1997a) publicaram o artigo “Snobs, bandwagon and the origin of social customs in consumer behavior” no Journal of Economic Behavior & Organization. Numa alusão explícita a Leibenstein (1950), os autores utilizaram os efeitos bandwagon e snob para ilustrar como normas sociais são criadas por agentes e instituições ao longo do tempo. Apesar da discussão acerca dos diferentes tipos de consumo, o objetivo principal do paper foi apontar as situações em que as firmas decidem explorar os segmentos de mercados pautados por estas social norms. Contudo, neste artigo, há uma única referência à TCO em uma nota de rodapé, e o termo consumo conspícuo não foi sequer mencionado.

Porém, neste mesmo ano, estes mesmos autores publicaram outro artigo cujo objetivo foi desenvolver um modelo em que consumidores sinalizam seu nível de renda através do consumo de bens conspícuos. Logo, ao contrário do anterior, neste o consumo conspícuo aparece já no título e Veblen é amplamente mencionado no texto. Os artigos apresentam dois modelos diferentes de sinalização, ambos baseados nos conceitos de Snob e Conformism Effects de Leibenstein. Em Corneo e Jeanne (1997b) os bens conspícuos são classificados como indivisíveis, ou seja, o consumo de um agente necessariamente exclui os demais. Esta inclusão é importante para as conclusões dos modelos que objetivam ponderar quais seriam as políticas públicas eficientes para taxação (e até proibição) de bens demonstrativos.

Para os autores, havia certo consenso de que a alocação de parte da renda dos agentes para emulação gera distorções no mercado como um todo, inclusive de bens normais. Isto se deve-se ao fato deles deixarem de consumir bens normais para consumir de acordo com os efeitos snob e follower. Desta forma, caberia ao governo reduzir os mercados de luxo através de taxação. Contudo, discordam desta concepção pois demonstram que a taxação dos bens eleva os preços e gera um aumento do consumo conspícuo. Consequentemente, isso provocaria uma diminuição ainda maior do bem-estar social. Por fim, outra contribuição importante deste artigo em relação ao 1997a refere-se à provisão privada de bens públicos. Os autores propõem que uma das formas usuais de demonstração de riqueza advém dos gastos com filantropia. Assim sendo, os agentes sinalizariam seu poder pecuniário em doações e eventos de caridade.

Amaldouss e Jain (2005) abordam o consumo conspícuo a partir de um modelo baseado em expectativas racionais. Isto significa que os agentes podem cometer erros na definição de sua cesta de consumo, porém, estatisticamente, geralmente acertam. Isto ocorre num ambiente onde existem consumidores snob (no sentido dado por Leibenstein) e followers (que são impelidos a consumir o mesmo tipo de bem de seus pares)12. Ambas as demandas são interdependentes e se enquadram na classificação de Motivos Externos à Utilidade de Leibenstein (1950). Os autores afirmam que o modelo apresentado se diferencia da literatura sobre o tema pois se baseia em externalidades e considera tanto as ações quanto as expectativas do consumo de bens snob e followers. Os modelos microeconômicos de externalidade traduzem situações econômicas nas quais a ação de um agente gera custos ou benefícios para outros, que não participaram da decisão. Sendo assim, concluem que para bens conspícuos, a demanda só possui inclinação positiva caso o mercado possua tanto consumidores snob quanto followers. Caso haja somente uma das categorias, a curva de demanda é sempre negativamente inclinada.

Uma das conclusões obtidas neste modelo contraria Bagwell e Bernheim (1996) no que tange ao lucro econômico obtido na venda de bens de luxo. Para Amaldouss e Jain (2005) o lucro diminui com o snob effect e aumenta com o follower effect. Este fato se deve ao comportamento do consumo snob, no qual quanto maior o consumo de determinado bem, menor é o interesse no consumo conspícuo deste (externalidade negativa de consumo). A estrutura de mercado analisada é o monopólio.

Na verdade, Amaldouss e Jain (2004) já haviam desenvolvido um modelo formal baseado na mensuração de utilidade no qual buscavam compreender a influência do componente social na demanda e na formulação de preços. Da mesma forma, as influências sociais no consumo dividem os agentes em dois grupos: conformisms e snobs. Similarmente, este efeito social no consumo é modelado tendo como base as externalidades em detrimento de sinalização. O modelo tenta prever como o preço de equilíbrio e a rentabilidade das firmas são afetados pelo grau de conformismo ou necessidade de diferenciação dos consumidores.

A inclusão do consumo relativo em adição ao consumo absoluto, implica em conflito entre o bem-estar individual e social. Frank (2005) ilustra este fato através da metáfora da corrida armamentista. Nesta situação, os agentes investem no setor bélico de modo a competir com os demais, porém estes gastos retiram renda de outros setores essenciais, deslocando assim o consumo de seu ponto ótimo. O autor apresenta o conceito de positional goods para caracterizar os bens cuja demanda é motivada pelo consumo relativo. Afirma que modelos que incorporam tais bens podem abranger diversos tipos de externalidades advindas deste tipo de consumo. Entre estas, aponta-se: efeito dos aumentos de gastos entre agentes de renda inferior mediante aumento de gastos em segmentos de renda superior; relação entre a desigualdade de renda e preço de imóveis, falências (de pessoas físicas), taxa de divórcios; e horas trabalhadas.

Charoenrook e Thakor (2008) incorporam um elemento extremamente importante à teoria do consumo conspícuo marginalista, qual seja, o custo de exposição das mercadorias (cost of display). O modelo elaborado por eles trata da riqueza sinalizada pelo consumo de bens de alto preço. Para os autores, o consumo conspícuo relaciona-se com os bens de luxo, e seu estudo se justifica pelo forte aumento no consumo deste tipo na segunda metade do século XX. Segundo eles, a produção destes bens é acompanhada por investimento intensivo em publicidade com o objetivo de caracterizar as mercadorias como símbolo de status. Influenciados pela interpretação Vebleniana do consumo conspícuo, apontam que a demonstração de riqueza não acontece somente na compra dos bens, mas na exibição destes. Esta análise está em pleno de acordo com Leibenstein (1950) no que tange a concepção do Efeito Veblen como ato de consumir e exibir um bem cujo preço é maior que o custo marginal de produzi-lo.

Em última instância, Charoenrook e Thakor (2008) constroem um modelo cujas premissas são a racionalidade substantiva e a livre entrada de produtores no mercado. Tal modelo busca analisar a sinalização de riqueza a partir do consumo conspícuo, englobando a exibição dos bens consumidos. Os autores discordam da literatura de consumo conspícuo marginalista anterior em dois pontos principais: primeiro, divergem de modelos em que o consumo de bens conspícuos gera um aumento direto de utilidade individual. Para os autores, o aumento da utilidade advém do status obtido pelo agente que consome bens caros e não do consumo em si. Em segundo lugar, acreditam que a abordagem que pressupõe mercados monopolísticos para tratar bens da moda não é suficiente para explicar o consumo de bens conspícuos no mercado competitivo. De acordo com eles, o modelo desenvolvido captura a intuição Vebleniana de formação de preferência por bens caros ao englobar o status à análise num âmbito de mercado competitivo.

Quanto ao mecanismo de exposição, os autores definem as display units como sendo o espaço físico e as oportunidades sociais de exposição; e os display costs como os custos derivados da escassez de display units. Esta limitação está relacionada tanto à incapacidade de se exibir uma grande quantidade de bens de alto valor (por exemplo, só é possível que o agente dirija um carro de luxo por vez), quanto ao limite estético da exposição, na qual a extrapolação fere as normas do bom gosto (por exemplo, limite de exposição simultânea de jóias). Afirmam que há duas maneiras de sinalizar riqueza: o consumo de bens de alto preço, ou seja, preço maior que o custo marginal; e o consumo de uma grande quantidade de bens a preços iguais ao custo marginal. No momento da decisão de emulação, o agente calcula o trade-off entre o preço do bem e custo de exposição destes.

Arrow e Dasgupta (2009) corroboram a tese de que o consumo conspícuo sinaliza a posse de riqueza uma vez que esta não é observável. Este tipo de consumo pode ser representado por uma variável na função de felicidade (usado por eles como sinônimo de função utilidade) dos agentes. Pressupondo que os agentes agem racionalmente nos moldes da abordagem convencional, asseveram que o consumo conspícuo não necessariamente leva ao excesso de consumo no presente. Desta maneira, conseguem equilibrar o quanto de bens de luxo serão consumidos tanto no presente quanto no longo prazo. Portanto, o objetivo dos autores é compreender como acontece essa escolha intertemporal na estrutura das funções de felicidade. De forma simplificada, o modelo pressupõe que são produzidos somente dois bens, e que ambos possuem características demonstrativas no sentido conspícuo. Desta forma, atinge-se o equilíbrio de mercado no sentido de Pareto quando a utilidade marginal no consumo do bem 1 é igual a utilidade marginal do consumo do bem 2.

À luz do que foi estudado acerca da concepção do próprio Veblen sobre o consumo, a menção aos conceitos elaborados por ele não significa uma “conversão” dos autores à abordagem institucionalista. De fato, Arrow e Dasgupta fazem uma adaptação à estrutura teórica marginalista no qual prevalece o equilíbrio intertemporal no consumo de bens de luxo, tomando como dado o caráter emulativo desta decisão. Este distanciamento em relação à proposta original Vebleniana pode ser observado na seguinte passagem: “So, although we shall use Veblen’s terminology here, we do not necessarily invoke the reasoning he deployed to explain why relative consumption matters to people” (Arrow; Dasgupta, 2009, p. 3).

Dentre os autores marginalistas estudados, Arrow e Dasgupta (2009) foram os únicos que modelaram o ócio conspícuo. Eles trataram este conceito Vebleniano como um bem conspícuo que pode ser observado através de dados relativos ao consumo de viagens, hotéis, ingressos para eventos artísticos, etc. A modelagem do ócio conspícuo é um elemento distintivo na literatura convencional e indica que os autores se ocuparam em captar formalmente o debate acerca do consumo conspícuo em uma dimensão mais ampla do que seus antecessores. De fato, ao longo do artigo, o autor institucionalista é citado diversas vezes, inclusive na epígrafe do texto. Isso demonstra o reconhecimento por parte da abordagem ortodoxa da relevância do conceito de consumo conspícuo elaborado por Veblen. Demonstra também o vigor da “cheia do mainstream” uma vez que ela incorpora este tema dando-lhe o status de “objeto cientificamente sério” (Possas, 1997). No caso específico deste artigo, é digno de nota que o tema tenha chamado a atenção de um autor que recebeu o Nobel de Economia por suas contribuições pioneiras fundadas no core do pensamento neoclássico, tais como a teoria do equilíbrio geral e a teoria do crescimento endógeno, dentre outras.

Há ainda vários outros modelos da agenda de pesquisa marginalista baseados na utilidade que não podem ser abordados nesta seção em função da limitação de espaço. Dentre eles, pode-se mencionar: a relação entre utilidade, consumo, lazer, status social e externalidades negativas advinda da poluição (Howarth, 1996)13; a relação entre consumo relativo, nível ótimo de taxação e crescimento econômico (Fischer, 2000); a relação entre consumo conspícuo, desigualdade social e horas trabalhadas (Bowles, 2004); a relação entre consumo conspícuo e seleção sexual (Fraja, 2008); a maximização de utilidade ao considerar-se o consumo conspícuo sob a forma de inveja e orgulho (Friedman; Ostrov, 2008); a influência do consumo conspícuo nas elasticidades das curvas de demanda (Heffetz, 2011); e, a relação entre consumo conspícuo, taxa de poupança e capital humano (Moav; Neeman, 2012).

A fim de sumariar os principais argumentos elaborados pelos autores discutidos mais pormenorizadamente nesta seção, o Quadro 1 apresenta uma síntese de suas contribuições essenciais.

3 A Síntese neoclássica da TCO

O objetivo da seção 1 foi apresentar os fundamentos teóricos essenciais da teoria do consumo conspícuo de Veblen tal como discutido na TCO. Por sua vez, a seção 2 intentou demonstrar como alguns destes alicerces foram emoldurados pela abordagem convencional. Analisando estas seções em sobreposição, pode-se concluir que atingiu-se outro objetivo deste artigo, qual seja, revelar o contraste entre a proposta original da teoria e seu enquadramento na estrutura teórica neoclássica. Destarte, a fim de concluir o objetivo geral deste artigo, esta seção examina com mais detalhes as consequências da disparidade entre a proposição original de Veblen e sua contextualização convencional. Em alusão a um movimento semelhante ocorrido com as ideias de Keynes, chamamos esta neoclassização do Institucionalismo Vebleniano de Síntese Neoclássica da TCO. A análise que se segue procura deixar clara a inadequação desta interpretação vis-à-vis sua origem institucionalista.

A este respeito, um primeiro ponto a ser levantado refere-se à construção teórica e metodológica de ambas Escolas. O desacordo com os princípios dos marginalistas neoclássicos14 está presente em toda obra de Veblen. Em seu artigo clássico “Por que a Economia não é uma ciência evolucionária? “, publicado um ano antes da TCO, ele classifica a teoria destes autores (não só dos marginalistas) como pré-evolucionária, deixando claro que a interpretação que advoga sobre o funcionamento do sistema econômico é antagônica. Um dos eixos fundamentais de sua crítica é de natureza ontológica. O trecho abaixo é uma passagem muito citada deste artigo em que o autor elucida sua discordância com o hedonismo proposto pela ortodoxia econômica. Ele descreve, de forma satírica, o padrão de comportamento característico do Homo Economicus (o homem racional e autointeressado) estabelecendo em seguida os contrastes com sua abordagem evolucionária e institucionalista. Assim, Veblen (1898a [2017], p. 45) argumenta que:

A concepção hedonista do homem é o de uma calculadora relâmpago de prazer e dor, que oscila como um glóbulo homogêneo de desejo por felicidade sob o impulso de estímulos que o deslocam, mas o deixam intacto. Ele não tem nem antecedente, nem precedente. Ele é um dado humano isolado, definitivo, em equilíbrio estável, exceto pelos golpes das forças atuantes que o desloca em uma direção ou outra. Autoequilibrado no espaço elementar, ele gira simetricamente em torno de seu próprio eixo espiritual até que o paralelogramo de forças cai sobre ele, quando então ele segue a linha resultante.

A abordagem neoclássica concebe o agente econômico como um ser hedonista que toma decisões a partir de uma concepção de tempo lógico e mecânico. Logo, suas escolhas são reversíveis e abertas, o que significa que ele pode substituí-las a qualquer momento sem prejuízo de seu padrão de otimalidade e equilíbrio. Neste artigo de 1898a [2017], Veblen confronta esta proposição com a abordagem evolucionária que defende. Assim, em contraposição, a ontologia proposta por ele dispõe que o comportamento dos agentes no tempo histórico é idiossincrático e, portanto, muda qualitativamente. Isto é, evolui juntamente com as instituições. Essa evolução resulta de mudanças em seus hábitos de pensamento, que promovem reconstrução dos valores, dos pactos, dos compromissos e da forma de viver dos indivíduos e da sociedade, afetando assim o processo de causação dos fenômenos econômicos. A partir deste entendimento característico de uma economia evolucionária, pode-se concluir que os agentes tomam decisões (inclusive as de consumo) num ambiente marcado por uma sequência cumulativa de evolução das instituições, o que desabona a possibilidade de prevalência de situações de equilíbrio como um somatório de posições de equilíbrios alcançadas individualmente.

Este primeiro argumento estabelece uma clara incompatibilidade teórica entre marginalistas e o institucionalismo Vebleniano. Depreende-se daí que o conceito do consumo conspícuo possui determinações analíticas evolucionárias contrárias à interpretação meramente teleológica presente na concepção hedonista da natureza humana15.

O próprio Veblen expressou em vários artigos seu descontentamento com a falta de realismo da teoria Neoclássica. No trecho abaixo, Mason (2002, p. 89) mostra que o autor tinha clareza que este problema envolvia inclusive a abordagem desta Escola acerca do consumo. E que isso era incompatível com sua abordagem evolucionária. Na passagem a seguir pode-se inferir que, de certa forma, o primeiro a identificar e rejeitar a interpretação marginalista do consumo conspícuo foi o próprio precursor da Economia Institucional.

Veblen had never been happy with the neoclassical approach to consumer theory, and between 1898 and 1900 published a series of articles in the Quarterly Journal of Economics (1898; 1899a, b; 1900) attacking many of the assumptions and perceived lack of realism implicit in much neoclassical theory. It was not acceptable, in Veblen’s view, for economists to declare that they could only concern themselves with outcomes and not with the underlying motives of consumption, and he pressed for greater interest to be shown in the intersubjectivity of consumer demand as a means to a better understanding of consumer behavior. Veblen was particularly concerned with the importance of interpersonal effects on consumer preference formation, and in his The Theory of the Leisure Class ([1899c] 1957: 22-34; 68-101) he explored the nature of pecuniary emulation and of conspicuous consumption in both sociological and economic terms. ... Only by adopting interdisciplinary approaches to economic analysis, Veblen believed, would any real progress be made in developing a consumer theory, which could properly describe real-world market behavior.

No final do século XIX, período de grande vigor do pensamento neoclássico, Veblen trilhou o caminho oposto daquele seguido pela esmagadora maioria dos pensadores econômicos do seu país e do mundo. Ele enveredou pela interface entre a Economia, a Sociologia e a Antropologia, ainda muito incipiente à época. Na verdade, ele foi um pouco além disso, propondo estabelecer nesta interface uma abordagem evolucionária utilizando o método biológico de Darwin (Hodgson, 1992, 2003, 2004a, 2004b, 2005). Como visto acima, isso implicou no abandono do individualismo metodológico, e, portanto, na crítica ao Homo Economicus enquanto padrão de comportamento humano. Apesar de reconhecer que o comportamento do ser humano é dotado de um sentido teleológico, propôs que sua conduta é pautada também por decisões não teleológicas regidas por instintos, hábitos e instituições. Isso significa que, além de um componente racional, as ações humanas são guiadas pelo que está inconsciente ou fora do alcance de sua capacidade imediata de fazer cálculos, em contraposição ao paradigma de racionalidade substantiva maximizadora postulada pelo mainstream.

No que se refere ao consumo, esta crítica tem consequências adicionais. Segundo Veblen (1898a [2017]), o modelo de homem racional, maximizador e calculista que age apenas teleologicamente a partir de preferências dadas torna a Economia uma ciência não evolucionária e um mero modelo mental abstrato. Uma vez guiada por instintos, hábitos e instituições, as ações e preferências se modificam ao longo do tempo histórico devido à influência de mudanças na cultura e nas transformações econômicas e sociais. Esta perspectiva contrasta com o comportamento de consumidor convencionado pela abordagem ortodoxa tal como apresentado nos modelos estudados na seção anterior.

Conclui-se, portanto, que na interpretação institucionalista de Veblen, o entendimento acerca da motivação que leva ao consumo é completamente diferente daquele proposto pela abordagem dominante, uma vez que prevalecem outras determinações enraizadas culturalmente e lideradas pelo padrão estabelecido pela classe ociosa. Ou seja, indivíduos consomem como forma de ostentação mediante a exibição de bens adquiridos e de demonstração de honorabilidade, muito diferente da abordagem mainstream na qual a ação racional do consumidor é a maximização de uma função utilidade (sujeito a restrição orçamentária) conducente a uma situação de equilíbrio intertemporal estacionário. Como visto, os conceitos de consumo e ócio conspícuo, assim como a emulação pecuniária, demonstram que a utilidade (tal como interpretada convencionalmente) não tem necessariamente ligação com o nível de consumo ou com as preferências do consumidor. Veblen demonstrou na TCO que esse tipo de comportamento em relação ao consumo esteve presente ao longo das diversas etapas de desenvolvimento das relações humanas, mudando apenas de forma.

À luz da discussão feita na seção 2, conclui-se que os autores mencionados extraíram o conceito de consumo conspícuo da TCO, enquadraram-no em sua própria agenda, mas obtiveram resultados contrastantes e restritivos em comparação à proposta evolucionária de Veblen apresentada na seção 1. Esta apropriação ocorreu através da elaboração de modelos formais que introduziram motivos externos à utilidade das mercadorias (aquelas não relacionadas à utilidade intrínseca do bem, por exemplo, a demonstração de riqueza) como elementos fundamentais à motivação por consumir. Além disso, utilizaram tanto mecanismos de externalidades do consumo quanto de sinalização de renda para enquadrar o consumo conspícuo no aparato convencional. Ao “neoclassizar” a abordagem do autor através destes modelos e artifícios, obteve-se resultados incompatíveis com a análise evolucionária institucionalista. Em suma, o Veblenianismo neoclássico está em claro desacordo com a proposta evolucionária e intersubjetiva preconizada por Veblen com respeito aos determinantes do consumo.

Isso remete ao que Possas (1997) chamou de “aumento da correnteza” na medida em que a incorporação do tema atraiu o interesse de uma proporção crescente de acadêmicos. Ademais, a seção 2 também revela que ocorreu também o fenômeno que ele chamou de “inundação das margens”. Isso porque os autores supracitados elaboraram um arrazoado de preceitos, tal como Bandwagon Effect, Snob Effect, Veblen Effect, Cost of Display, e sinalização da riqueza, que, simultaneamente, absorveram conceitos Veblenianos e trouxeram novos temas de pesquisa sobre o assunto no interior da agenda convencional.

Tal segmentação é inerente à teorização marginalista. Prova disso é a afirmação de Leibenstein (1950) de que o estudo sobre os fenômenos psicológicos e sociais que geram as preferências estão fora do escopo de análise do economista (leia-se, da análise marginalista). Ele adiciona ainda que, devido à complexidade dos fenômenos sociais que cercam o consumo conspícuo, este economista deve abstrair parte destes e se concentrar exclusivamente no efeito do consumo conspícuo sobre a curva de demanda.

Outra crítica que pode ser feita quanto ao afastamento da interpretação marginalista do consumo conspícuo em relação à proposta original é a pressuposição acerca da homogeneidade dos produtos. Para Veblen (1899), é de suma importância considerar que as mercadorias possuem características distintas, e que a evolução das instituições determina as mudanças nas preferências dos consumidores. Entretanto, a teoria marginalista abstrai os componentes culturais e institucionais de sua abordagem sobre o consumo conspícuo e adota como premissa a homogeneidade dos bens. Weber (2011, p. 19) expõe este distanciamento da seguinte forma: “In our equilibrium-based aggregations in the modern language of economics we have lost Veblen’s ‘starting-point’ and his explanation of evolutionary change”.

Esta abstração - explícita ou implicitamente - de componentes sociológicos, antropológicos e institucionais do consumo objetivou, portanto, adaptar o conceito à modelagem marginalista neoclássica. Este esvaziamento conceitual é característico do individualismo metodológico que fundamenta o comportamento do tomador de decisão concebido por esta Escola. Ao contrário, Veblen entende que todo o consumo é interpessoal16. Em sintonia com o pensamento institucionalista, Hamilton (1973) afirma que, se essa “soberania” do consumidor de fato existiu, ela foi erodida pelo trabalho sistemático da publicidade. Pois, segundo o autor “all goods not only are status symbols but also are instruments to achieve some end in view” (Hamilton, 1973, p. 203-204).

Anne Mayhew (2002) leva adiante o argumento Vebleniano acerca da motivação do consumo ao afirmar que “todo o consumo é conspícuo”, ou seja, possui um componente social e cultural. A autora expressa sua perplexidade pelo fato da ciência econômica tradicional ter abstraído seu componente social e antropológico em favor de seu enquadramento em modelos matemáticos como um fim em si mesmo. Em suas palavras (2002, p. 45): “It is not too difficult to see what would be sacrificed if the anthropological view of consumption were accepted; it is harder to understand how economists have suppressed the evidence in favor of this view”. Ademais, Mayhew (2002, p. 54) exprime também sua divergência com relação às abstrações elaboradas por Leibenstein (1950) para descrever a teoria do consumo de Veblen. Conforme citação abaixo, a autora considera “difícil” entender as restrições de sua interpretação neoclássica da TCO e aponta (corretamente, a nosso ver) a razão para tanto, qual seja, a falta de leitura da obra.

It should be noted that Leibenstein also offered a very narrow interpretation of what Veblen said, by describing the ‘Veblen effect’ as the result of a larger quantity of demand at higher prices, a smaller quantity at lower prices, with the ‘snob’ and ‘bandwagon’ effects attributed to others. It is difficult to understand how this narrow interpretation of Veblen’s argument can be reached if the whole of The Theory of the Leisure Class is read.

De fato, o objetivo de Leibenstein e de seus adeptos mais recentes tem sido a mera incorporação de conceitos adaptando-os a funções-objetivo estocásticas maximizáveis. Isso não requer a leitura atenta e criteriosa dos textos originais, e nem preservar a coerência com a proposta teórica ou metodológica do autor institucionalista. Trata-se de elaborar uma operação de redução com vistas à sua adaptação aos requisitos de cálculo de agentes que fazem escolhas ótimas intertemporais. Isso porque o princípio da otimização tem papel fundamental como expressão de racionalidade, tanto individual quanto social. Além disso, tal procedimento confere tratamento científico do tipo hard core da ciência econômica, considerado por isso, aquele que é adequado para conferir cientificidade à teoria.

Na esteira desta discussão sobre neoclassização do consumo conspícuo de Veblen, Todorova (2013, p. 1193) enfatiza o argumento de Mayhew quando afirma:

No consumption is outside a social context, and all goods and services have ceremonial attributes. In that context, Ann Mayhew’s statement that ‘all consumption is conspicuous’ is correct, since consumption patterns involve ceremonial attributes that are means to invidious distinction.

Portanto, esta abstração dos componentes sociais da teoria do consumo de Veblen é mais uma crítica à neoclassização elaborada pela Síntese Neoclássica da TCO. Mason (2000) atribui isso ao esforço empenhado pelos economistas mainstream entre as décadas de 1920 e 1940 em construir uma “ciência social exata” embasada exclusivamente em dados estatísticos (Mason, 2000). Esta “cruzada” utilizou amplamente a construção de modelos que não comportavam uma teoria do processo de decisão na qual fossem integrados instintos, hábitos e instituições. Ademais, pregava que tais componentes poderiam ser abstraídos da análise econômica sem prejuízo para o poder de explicação da teoria. Embora a partir de 1950 tenha havido diversas incursões da teoria marginalista acerca da interpessoalidade do consumo sob a forma de modelos matemáticos, estas ainda se valem de abstrações que prejudicam a compreensão do processo de tomada de decisões habitual e não teleológico do agente econômico, tal qual vislumbrado por Veblen.

Ainda com relação às limitações e inconsistências que surgem ao tratar o consumo conspícuo sem considerar a importância do componente social e cultural, Todorova (2013, p. 1999) aponta mais alguns aspectos importantes da proposta Vebleniana. Segundo ela, o debate institucionalista sobre consumo envolve rotinas e a formação de hábitos, portanto está necessariamente articulado com a estrutura social. Além disso, ele não deve ser conceituado independentemente da distribuição e da estrutura de classes da economia. Assim, em suas palavras:

The concept of conspicuous consumption has been so readily uprooted from analysis of capitalism through the method of stripping it from its routine nature. Describing conspicuous consumption as an exceptional behavior and as part of discretionary spending ofuscates its stabilizing place in the capitalist economy. Examining routines necessarily involves discussion of habit formation, which prompts the articulation of a specific social structure. On the other hand, conceptualizing of conspicuous consumption independently of distribution and the class structure of the economy is enabled by its definition as an exceptional behavior.

Até este momento, procurou-se demonstrar as inconsistências e limitações da interpretação marginalista do consumo conspícuo à luz da proposta original elaborada por Veblen na TCO. Como dito acima, uma das motivações desta pesquisa foi o reconhecimento de um movimento intelectual similar ocorrido na segunda metade dos anos 1930 no âmbito da então incipiente abordagem macroeconômica elaborada por Keynes após a publicação da Teoria Geral (TG). Precisamente, em abril de 1937, John Hicks publica na revista Econometrica seu famoso artigo Mr. Keynes and the Classics: A Suggested Interpretation. Nele, o autor elabora um modelo de equilíbrio geral Walrasiano (conhecido como modelo IS/LM) utilizando conceitos desenvolvidos por Keynes na TG, que também viesou a proposta original do autor.

O texto de Hicks (1937) provocou o mesmo efeito em termos da interpretação neoclássica das ideias de Keynes da TG que o paper de Leibenstein (1950) acarretou na neoclassização do consumo conspícuo de Veblen da TCO. Hicks propôs uma solução matemática (portanto lógica) a partir de um sistema de equações simultâneas para entender a complexidade da construção teórica de Keynes. Apesar de sacrificar a diversidade analítica de Keynes, ele uniformizou metodologicamente a teoria do autor através de uma (supostamente) necessária complicação formal, dando-lhe status científico considerado aceitável para muitos acadêmicos da época. A elegância e simetria dos conceitos, a clareza da demonstração lógico-dedutiva, e seu rigor matemático captou a mente de elevado número de economistas daquela geração. A este respeito, é representativa a frase de Robert Clower (um dos alunos de Hicks) mencionada por Weintraub afirmando que: “No living scholar has done more than John Hicks to shape contemporary modes of economic analysis” (Weintraub, 1978, p. 120).

Mais tarde, o modelo IS/LM tornou-se a base do método analítico de diversas pesquisas que tiveram o mesmo objetivo de Hicks, qual seja, enquadrar os conceitos Keynesianos dentro dos axiomas da abordagem neoclássica. Emerge então uma interpretação propondo que a teoria Keynesiana como um caso particular do modelo geral neoclássico. Seus principais expoentes são Hansen (1938), Modigliani (1944), Samuelson (1947), Patinkin (1965), Friedman (1970), Gordon (1974), Tobin (1980), só para mencionar os mais conhecidos. Assim, a partir dos anos 1960, surge uma nova Escola chamada de “Síntese Neoclássica”, título que representa bem o tipo de entendimento que foi dado ao pensamento heterodoxo de Keynes. Esta abordagem reduziu a TG a uma economia estacionária de equilíbrio estacionário, atemporal, onde a moeda é neutra no curto e longo prazo, tudo isso em franca contradição com a proposta original de Keynes e da Revolução Keynesiana. Uma vez que a “Síntese” foi uma tentativa de adaptar as principais contribuições do autor inglês dentro do aparato analítico convencional, este movimento ficou conhecido também como a neoclassização da TG de Keynes.

Assim como a Síntese procurou inserir fundamentos da macroeconomia de Keynes nos cânones do mainstream, similarmente, elementos teóricos essenciais subjacentes à teoria do consumo conspícuo tem sido objeto de neoclassização desde o artigo seminal de Leibenstein (1950) até anos recentes. Por isso, propõe-se que este movimento intelectual seja chamado de Síntese Neoclássica da TCO.

A Síntese Neoclássica da TCO também gerou uma perspectiva reducionista sobre a natureza do comportamento humano tal como proposto pela interpretação evolucionária de Veblen. Poder-se-ia argumentar que trata-se apenas de um conceito inserido em uma obra particular, e que portanto, seria um exagero afirmar que a neoclassização deste “caso particular” seja de fato relevante e objeto de pesquisa. Tal argumento não se sustenta uma vez que se contra argumenta - como procurou-se fazer ao longo deste artigo - que a teoria do consumo de Veblen envolve a construção ontológica que fundamenta a abordagem evolucionária do autor. Como afirma Cavalieri (2009, p. 249): “Se Marx e os clássicos se debruçaram sobre a produção, e os neoclássicos foram os teóricos da esfera das trocas, Veblen pôs o consumo no front do seu pensar econômico.” Portanto, sua teoria do consumo está no centro de uma série de debates sobre a conduta humana que o distingue teórica e epistemologicamente da teoria convencional. Logo, a neoclassização deste princípio afeta mais do que um conceito particular disposto em um livro.

Ainda na década de 1970, começou a surgir, parafraseando Possas em sentido inverso, uma “enxurrada” de críticas à Síntese Neoclássica da TG elaboradas por autores Pós-Keynesianos de diversas gerações (por exemplo Pasinetti, 1974; Chick 1977, 1983, 1992; Weintraub, 1978; Davidson, 1991, 1994; Vercelli, 1991; Carvalho, 1992; Kriesler; Nevile, 2001; Lavoie, 2006, só para mencionar os mais conhecidos, mas a lista é muito mais extensa). Esta mesma “cheia da heterodoxia”, contudo, não ocorreu na literatura institucionalista até o momento, uma vez que críticas à neoclassização da TCO por parte de autores institucionalistas têm sido escassas e acanhadas17. Além das que foram apresentadas nesta seção, identificou-se que existem outras encontradas na literatura Pós-Keynesiana que podem ser evocadas por autores institucionalistas. Aquelas elaboradas pelos scholars mencionados acima, concentram-se no núcleo do pensamento macroeconômico de Keynes. Estas não serão evocadas aqui. Não obstante, a desaprovação da Síntese proposta por Minsky pode sim ser invocada como mais uma crítica institucionalista à neoclassização da TCO.

Segundo ele, a utilização do “método tipicamente neoclássico” é mais ilusório do que proveitoso para a interpretação do mundo real. Isso porque o mainstream que emerge com bastante vigor no pós-guerra se especializou em elaborar elegantes provas formais da validade de seus axiomas ainda que sob pressupostos altamente restritivos a respeito de sua relevância analítica. Este tipo de objeção é a mesma de um autor institucionalista frente à neoclassização da TCO. Ou seja, a mera assimilação de conceitos e a obtenção de elegantes provas formais sob a alegação de produção de avanços científicos gera resultados altamente restritivos, de tal forma que a relevância da teoria é questionada. Um pesquisador que conhece a estrutura causal na qual Veblen assentou sua teoria, apontaria esta mesma dicotomia entre relevância e elegância expressa por Minsky (1986, p. 5). Em suas palavras:

The existing standard body of economic theory - the so-called neoclassical synthesis, which takes on both a monetarist and an establishment Keynesian garb - may be an elegant logical structure, but it fails to explain how a financial crisis can emerge out of the normal functioning of the economy and why the economy of one period may be susceptible to crisis while that of another is not.

A discussão feita acima nos leva a salientar que o objetivo deste artigo não é demonizar a matemática e a econometria como métodos de investigação aplicáveis à ciência econômica. Isso seria, na verdade, enveredar para um outro extremo tão limitador e simplificador quanto o que se está criticando. Economistas heterodoxos usam a matemática e a econometria como instrumentos para obtenção e avaliação de resultados. Contudo, o fazem a partir de princípios teóricos constituídos sob bases epistemológicas próprias, distintas do mainstream. Um dos exemplos mais conhecidos a este respeito é a obra de Michal Kalecki. Sua trajetória intelectual demonstra claramente como um pesquisador não convencional se utiliza de modelos matemáticos para esquadrinhar questões complexas da ciência econômica sem utilizar o nível de abstração e os princípios prognosticados pela ortodoxia. Trabalhando como um tapeceiro, foi um dos primeiros autores não neoclássicos a elaborar modelos matemáticos e utilizar dados estatísticos para discutir fenômenos importantes como ciclos econômicos, pleno emprego, distribuição de renda, estruturas de mercado, desenvolvimento econômico, etc. Kalecki é dos autores heterodoxos mais influentes da do século XX. Foi ele mesmo influenciado por pensadores tão diversos quanto Karl Marx, John M. Keynes, Joan Robinson, Knut Wicksell, Rosa Luxemburgo e Joseph Schumpeter (Toporowski, 2013). Não obstante, construiu uma abordagem teórica própria que inspira as pesquisas de autores heterodoxos até hoje. A este respeito, o estudo de sua principal obra, publicada em 1954, revela de forma precisa sua interpretação acerca da natureza da atividade econômica. Neste livro, utilizou amplamente a matemática como instrumento de análise. Não obstante, já no título (Teoria da Dinâmica Econômica) ele revela a proposta Kaleckiana de tratar a economia como uma ciência não convencional.

Desde então, inúmeros autores heterodoxos (inspirados por Kalecki ou não) têm utilizado a matemática e a econometria como instrumento, não como princípio para construção teórica, obtendo com isso resultados auspiciosos em suas pesquisas (vide por exemplo, Hodgson; Knudsen, 2004, bem como Possas, 1984; Busato; Possas, 2016, só para mencionar dois autores citados neste artigo, mas a lista é bastante extensa e inclui autores Pós Keynesianos brasileiros e estrangeiros). À luz deste debate, reitera-se que o problema identificado neste artigo é a mera absorção de conceitos envelopados em modelos que procuram solução ótima (no sentido paretiano) pode até ser resultado de pesquisa científica do tipo hard science mas, ao contrário, acabam restringindo o vigor original da teoria institucional de Veblen.

Esta discussão acaba trazendo à tona o antigo (e interminável) debate sobre realismo na ciência econômica. Autores heterodoxos consideram que o excesso de abstração (“agentes representativos”, “concorrência perfeita”, “equilíbrio competitivo”, “maximização intertemporal”, “estacionariedade”, “utilidade não-aditiva”, etc.) que os modelos convencionais estabelecem, não têm nenhuma (ou muito pouca) aderência com a natureza do comportamento dos agentes no “mundo real”. Logo, são irrealistas. Estes acadêmicos defendem que tal nível de abstração gera uma (também excessiva) complicação formal dos modelos e sacrifica o entendimento da complexidade do objeto “real”.

Por outro lado, autores ortodoxos não têm dúvida de que é este tipo de tratamento que determina o caráter científico da ciência econômica, e, exatamente por este motivo, é necessário mais - e não menos - formalização. É o que se depreende de Lucas (1981) quando ele afirma que uma teoria é um conjunto explícito de instruções para construir um sistema que deve ser análogo ao da mecânica. Logo, a Economia não requer um conjunto de assertivas sobre o comportamento de agentes atravessados por imperfeições cognitivas que podem gerar decisões sub-ótimas, nem tampouco demanda aderência ao que se chama de “mundo real”. Está fora de os objetivos deste artigo tratar em detalhes sobre este assunto. O que se procurou demonstrar é que a teoria da economia política antropológico-evolucionária de Veblen propõe que o entendimento da atividade econômica depende de relações de causa e efeito em sequência cumulativa. Por conseguinte, é incompatível com a analogia mecânica da abordagem convencional.

Considerações finais

Conforme preconizado por Veblen na TCO, o comportamento dos indivíduos que compõem a classe ociosa transformou-se ao longo da História, porém, seus hábitos de vida e de pensamento se disseminaram, sendo o consumo conspícuo o principal deles. Este continua a permear a economia nas mais diversas formas: carros, imóveis, jóias, vestuário, celebrações, etc. Este é um ponto de grande interesse tanto para a ciência econômica quanto para áreas afins como o marketing e a administração.

Foi discutida também a interpretação marginalista do consumo conspícuo. De maneira geral, a teoria do consumo marginalista é caracterizada por modelos de maximização de utilidade a partir de preferências exógenas, enquanto a teoria de consumo do autor institucionalista equivale a uma análise evolucionária onde as preferências são formadas (de maneira endógena), de forma intersubjetiva dentro de um contexto de mudança social. Sendo assim, elas evoluem (mudam) com a sociedade. Na esteira deste debate, foi demonstrado que a partir dos anos 1950, a teoria do consumo conspícuo de Veblen foi incorporada à abordagem microeconômica marginalista gerando resultados contrastantes com sua proposta original.

O estudo apresentado neste artigo buscou evidenciar que a abordagem marginalista se afastou em alguns pontos chaves, principalmente em relação à abstração de componentes institucionais, sociológicos e psicológicos. Desta maneira, a análise acima demonstrou que, assim como na neoclassização da teoria Keynesiana, a Síntese Neoclássica Vebleniana da TCO foi mais enganadora do que útil para a interpretação do mundo real no que se refere à discussão sobre o consumo conspícuo. Representou, outrossim, um retrocesso, pois considerar que os determinantes do consumo podem ser captados exclusivamente a partir de modelos baseados na teoria da utilidade marginal, configura uma volta à epistemologia hedonista. E este é exatamente o motivo pelo qual Veblen (1898a [2017]) considerou a economia como uma ciência não evolucionária.

Referências bibliográficas


# Paulo Prado (1869-1943)

Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira

João Carlos Brum Torres, A Terra é redonda (expandir)

Prefácio da nova edição do livro de Paulo Prado

O retrato que Paulo da Silva Prado nos deixou incluiu-se imediata e pioneiramente na lista das principais obras empenhadas em identificar os elementos determinantes da identidade do Brasil. Essa lista é longa e heterogênea. Os nascidos no século XIX compõem a primeira geração dos renomados intérpretes que se dedicaram a essa tarefa, grupo no qual Paulo Prado está ao lado de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna. Não foi do mesmo modo que cada um deles abordou a questão da identidade brasileira, assim como também seguiram por caminhos próprios aqueles que, nas gerações seguintes, voltaram, direta ou indiretamente, ao mesmo tema, como Gilberto Freire, Vianna Moog, Caio Prado Júnior, José Honório Rodrigues, Nélson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Raimundo Faoro, Roberto da Matta e José Murilo de Carvalho.

No quadro desses esforços para ir além da superfície formada pela série incontável e aberta dos acontecimentos que compõem a história de um país, no trabalho reflexivo para revelar o que, latente e indistintamente, estrutura-lhe a longa duração, para valer-me da expressão consagrada de Braudel, Paulo Prado distinguiu-se pelo imprevisto, pela originalidade de, no esforço para entender a origem última de nossas deficiências identitárias, voltar-se para o terreno pouco explorado das peculiares disposições afetivas e comportamentais do povo brasileiro. Distribuições que, alega ele, se repetiriam tipicamente na pluralidade regional e étnica de nossa gente e que foram o que levou esse nosso Brasil à breca, ou a pior destino, para falar mais finamente. Mas não foi só isso o que o livro fez e por isso convém que antes de apresentá-lo, digamos uma palavra sobre o muito mais que nele está envolvido, a começar pela notável trajetória pessoal de seu autor e sobre o contexto em que foi elaborado: o Brasil do final do primeiro quartel do século XX.

Em 1928, quando o Retrato teve sua primeira edição, Paulo Prado tinha 59 anos. Encontrava-se, então, em sua mais completa maturidade, carregando não só os dotes de herdeiro de uma das mais tradicionais, abonadas e influentes famílias de São Paulo e do Brasil, a começar por seu pai, o Conselheiro Antônio da Silva Prado ‒ deputado, senador e ministro do Império, abolicionista, intendente e prefeito de São Paulo por doze anos –, mas agregando a isso tanto o duradouro refinamento e a cultura dos sete anos de sua juventude em Paris (1890-1897), quanto os já trinta e um anos de uma exitosa vida empresarial, que incluía a produção e a exportação de café, investimentos em infraestrutura viária, na indústria e mesmo em serviços financeiros, dos quais a imensa fortuna foi uma decorrência natural.

No entanto, esses antecedentes, aos quais conviria ainda agregar o papel modernizador de toda a família Prado nas instituições políticas, no urbanismo e no desenvolvimento cultural de São Paulo, não explicam a escrita do Retrato do Brasil, pois vale aqui, mutatis mutandi, o dito de Sartre: Valéry é certamente um pequeno burguês, mas nem todo pequeno burguês é Valéry. Quer dizer: ser bem nascido, educado, elegante, lido, rico e cosmopolita não dá suficientemente conta do que reservou a Paulo Prado inclusão necessária no rol dos mais reconhecidos intérpretes da civilização brasileira, não obstante seu livro seja, como ele mesmo reconhece, um livro de impressões, ainda que caucionadas por conhecimento historiográfico largo e relevante. Para entender melhor a justificativa do incontornável destaque dado a esse ousado e extravagante ensaio, é preciso examinar o modo inesperado e radicalmente crítico como a história do Brasil foi vista, experimentada   e pensada por seu autor no complexo e conturbado ambiente em que se encontrava o país ao término das três primeiras décadas do século XX. Para tanto, ler o livro é indispensável, cabendo a esta apresentação tão só algumas antecipações de seu conteúdo, e alguma indicação sobre o modo de abordá-lo.

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Abre o Ensaio sobre a tristeza brasileira a frase: Numa terra radiosa vive um povo triste. Fica claro, assim, porque foi dito acima que Paulo Prado distinguiu-se por prestar atenção a certas disposições afetivas e comportamentais de nosso povo. É que, para ser mais explícito, a diferença do que fazem os demais intérpretes da nacionalidade, Paulo Prado não vai seguir os modos mais usuais de inspeção de nossa história. Sua atenção não privilegiará os estudos da economia, das instituições, nem se ocupará do levantamento de figuras típicas da sociedade brasileira, como o fazendeiro, o sertanejo, o caipira, o gaúcho. Tampouco lhe importará descrever, reconstituir   minuciosamente formações sociológicas e de antropologia cultural bem especificadas, como farão, posteriormente, Gilberto Freire ao falar da casa grande da senzala, ou, numa outra chave, do estamento,à maneira de Faoro. E alheia a sua preocupação foi também o esforço para mostrar que em nossos hinos, bandeiras, monumentos, feriados comemorativos de eventos institucionais, como a independência ou a proclamação da república, encontra-se o lugar nos qual, nós, nós os brasileiros, apreendemos e subjetivamente fixamos o que, histórica e socialmente, constitui nossa identidade, como José Murilo de Carvalho, muito mais recentemente, veio a fazer.

Em vista de tantas exclusões, perguntarão justificadamente os leitores: mas então, o que é mesmo que fez esse Paulo Prado? Bem, se formos ao índice do livro, o que lemos ali é que, se quisermos entender o que somos, precisamos prestar atenção à paixões, como a Luxuria e a Cobiça, e a certas disposições emocionais, como a Tristeza e o Romantismo, conjunto este que nos constituiria a figura, a triste figura, é bem o caso de dizer, e que é espelhada nos nomes dados aos capítulos que organizam o livro. O partido hermenêutico é, portanto, que, se nos quisermos verdadeiramente compreender, é a certos traços dominantes do caráter nacional, do caráter do povo brasileiro, que devemos atentar. Tais traços não são tomados por Paulo Prado como propriedades inatas, mas como o resultado da inter-relação das diferenciadas características histórico-culturais das populações que convivem ao longo do tempo no mesmo território, com as condições prevalentes no ambiente natural em que se encontram e do contexto institucional das distintas épocas em que viviam e se desenvolveram. De onde decorre que o livro seja, senão historiográfico no sentido mais estrito do termo, de algum modo histórico, esforço de penetração na selva escura da história do Brasil, como se lê no prefácio de Paulística etc.[i], outra das obras de Paulo Prado.

Como dito acima, nos limites desta apresentação vão apenas algumas indicações de como se desdobra esse ensaio de caracterologia sócio-histórica, cabendo advertir, porém, que o privilégio dado pelo resumo à lição principal de cada capítulo, deixa de lado o que há de sedutor e brilhante no livro, a prosa elegante e limpa, a vivacidade dos quadros em que nos vemos retratados, o que há de persuasivo na seleção de testemunhos e fontes em que estão baseados e a corajosa ousadia de apresentar sem rebuços teses de agudo polemismo, construídas como uma espécie de longa epítrope, essa figura de retórica por meio da qual fazemos da insistência sobre um quadro horrível estímulo e razão para que nos disponhamos e esforcemos a mudá-lo.

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Abre o ensaio, A luxuria, capitulo dedicado à apresentação do vício que, segundo o Ensaio, desde o descobrimento, viria a constituir um traço essencial e constante da vida social brasileira. A base para justificação da tese encontra-se em uma erudita, cuidada, fina, mas provavelmente não suficientemente crítica, seleção de relatos e depoimentos de viajantes, religiosos, comerciantes, homens de governo que atestariam a predominância nos primeiros tempos da ocupação do território de costumes sexuais absolutamente dissolutos. Consequência, mais sugerida do que enunciada explicitamente no texto, é que, embora esse desregramento extremo possa ter sido de algum modo modulado depois do momento inaugural, a luxúria permaneceria como uma marca inapagável do caráter brasileiro.

A análise de Paulo Prado destaca três condicionantes para essa liberalidade sexual extremada e perversa, típica das primeiras etapas da vida colonial. Em primeiro lugar, a naturalidade e a liberdade cultural com que a população indígena encarava e tratava o sexo, combinada, como diz o texto, com “a lascívia do branco solto no paraíso da terra estranha[ii], fatores estes ‒ introduzidos sem traço de hesitações, pudores e cuidados que em nossos dias se imporiam – que, diz-nos ainda o texto, a passividade infantil da negra africana acoraçoou. No primeiro meio século da ocupação colonial, a ausência absoluta de mulheres brancas ‒ quer dizer cristãs, pelo menos externamente submetidas as restrições da moralidade católica ‒ foi outro dos condicionantes desse desregramento geral; depois, pelo menos até o início dos século XVII, a escassez delas continuou a cumprir esse mesmo papel indutor. Em terceiro lugar, teria empurrado nessa mesma direção o perfil social, psicológico e cultural dos que formaram as primeiras levas de povoadores: “a escuma turva das velhas civilizações”, os “corsários, flibusteiros, caçulas das velhas famílias nobres, jogadores arruinados, padres revoltados ou remissos, pobres diabos (…), vagabundos dos portos do Mediterrâneo, anarquistas”, quer dizer: os aventureiros sem pátria e sem raízes, ávidos de gozo e vida livre, como dirá adiante o texto, para os quais as restrições morais dos costumes das terras de origem já pouco valiam e a nada serviam.  

A cobiça dá seguimento a apresentação da segunda das paixões que, nascidas no Brasil colônia, persistiriam como traços constitutivos da identidade brasileira. Neste caso a origem da deformação encontrar-se-ia no generalizado desejo bruto, invariável e praticamente exclusivo de ouro, prata e pedras preciosas e no esforço arriscado e obsessivo para encontrá-los por parte daqueles que , primeiramente, vieram a ocupar este pedaço da terra verde recém-descoberta que, muito depois, viria a ser o Brasil. Quase dois séculos adiante, nos é dito que esse mesmo desejo de riqueza material alcançou seu paroxismo e, então, finalmente, uma recompensa à altura, pois, na virada do século XVII para o XVIII, foram descobertas as minas no rio Doce e na região de Ouro Preto. O desarranjo social então provocado pelos deslocamentos populacionais e por seus efeitos sociais e psicológicos foi a   nossa versão dos quadros típicos das corridas ao ouro. Em vista disso, e também do desestímulo ao desenvolvimento produzido pela centralização burocrática e coibitiva das iniciativas do povo da colônia impostas pelo governo de Portugal, Paulo Prado viu-se levado a declarar: “Para o Brasil, esse século XVIII foi também o século do seu martírio”. No entanto, como fizera em estudos anteriores, ele não deixa de enfatizar que no desenfreio das ambições cobiçosas e em meio ao atraso, ao desânimo, à pobreza regressiva e desamparada da maioria do povo, caberia reconhecer a figura admirável dos bandeirantes, especialmente os de São Paulo,[iii] que animados    pela coragem, pela obstinação, pela resistência e pelo espírito de empresa, ao mergulharem nas lonjuras e recônditos da terra ainda inexplorada, ao mesmo tempo em que preavam índios, vieram a conquistá-la e a dar origem aos espalhados núcleos de povoação miscigenada que viriam a tornar-se a terra e o povo do Brasil. Povo este no qual os aspectos positivos da ação e do perfil bandeirante ficariam também marcados, ainda que em ponto menor, restrita e subjacentemente,[iv] no caráter de nosso país.

A Tristeza não começa por repetição da frase que abrira o livro: Numa terra radiosa vive um povo triste. Inicia é com um contraste, evocando o desembarque dos peregrinos ingleses em Massachusetts em 22 de dezembro de 1620, cuja austeridade, resiliência ao frio intenso e perigoso, trabalho organizado, senso de autonomia individual e, ao mesmo tempo, espírito comunitário é então contrastado com o modo como “na costa atlântica do continente do sul” ocorreu a chegada dos novos ocupantes. Nestes já faltavam as qualidades “do português heroico do século XV”, moralmente desfigurados e diminuídos que estavam pelo próprio sucesso do domínio imperial, que lhes formara e consolidara o ânimo de pura exploração e a degeneração de costumes que se associa a quem vive da riqueza alheia. Ou para dizê-lo nas palavras do próprio autor: “Por esse povo já gafado do germe de decadência começou a ser colonizado o Brasil.

A tristeza, que o ensaio apresenta como sendo o estado de alma mais característico de nosso povo, designação síntese de sua identidade, é um capítulo menos simples do que se poderia pensar a partir dessa remissão inicial a uma semente ruim. Articula, na verdade, duas ordens de explicação. A primeira, toma a larga prevalência social da tristeza como consequência combinada dos abusos venéreos ‒ sob a suposição da veracidade do dito latino Triste est omne animal post coitum ‒ com as inevitáveis decepções da cobiça desmedida, consequência natural da alta frequência da “inutilidade do esforço e (do) ressaibo da desilusão”. A segunda das explicações da tristeza brasileira, Paulo Prado a encontra também combinada: por um lado como resultado de uma desafeição original pela terra por parte dos portugueses natos e de mazombos, ambos tendo como anseio dominante o de quanto antes voltar à pátria d’além mar; por outro lado presente no próprio caráter “do mestiço”, que, diz-nos o texto, “já acostumado à contingência do sertão, do perigo, do clima limitava o esforço à ganância de enriquecimento fácil, ou à poligamia desenfreada”.

O levantamento da distribuição desse quadro anímico pelas regiões ‒ por Pernambuco, pela Bahia, pelo Rio de Janeiro e mesmo por São Paulo ‒ varia ênfases e distingue as descrições com atenção especial às questões raciais, então muito presentes nas discussões histórico-sociológicas, em registro, porém em tudo diverso de seus renascimento na agenda identitária dos dias atuais. O que naquele então interessava da variação racial não era a denúncia de abusos e da violação de direitos, como hoje vemos, mas simplesmente a avaliação dos bons e maus efeitos do processo de miscigenação sobre o estado geral do país. Mais especificamente, a preocupação principal desse trabalho era reconstituir modo e proporção em que se combinavam em cada lugar, brancos, pretos, mamelucos e mulatos, a análise cuidando, sobretudo, de inventariar os maus resultados provocados no perfil dos brasileiros formados no cadinho étnico em que se fundiu o nosso povo. Na desolação do quadro assim apresentado, Paulo Prado concede apenas que, “disseminadas pelos sertões, de norte a sul”ainda persistiam “as virtudes ancestrais: simplicidade lenta na coragem, resignação na humildade, homens sóbrios e desinteressados, doçura das mulheres.” A conclusão geral será, contudo, que no “ao iniciar-se século de sua Independência” a Colônia “era um corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se apenas pelos laços tênues da língua e do culto,”

O romantismo, o mais curto dos capítulos, fecha o corpo do livro. O ensaio combina ali duas críticas: a da retórica política de origem rousseauniana, origem dos excessos democráticos e da submissão do realismo a ideais retoricamente bem apresentados e o análogo amor às miragens do romantismo, combinadas estas com a melancólico sentimento de que a verdadeira vida é ausente, cujo maléfico efeito é o de conduzir não só aos devaneios, mas a dissipação da vida e ao pessimismo. Essa segunda linha é acentuada nas observações conclusivas, nas quais o fato de que nossos principais poetas românticos morreram moços, é tomado como representação da astenia da raça, debilidade atribuída a obsessão com a morte e, novamente aqui, a um erotismo alucinante. O fecho sendo então que “no Brasil, do desvario de nossos poetas e da grandiloquência dos oradores, restou-nos o desequilíbrio que separa o lirismo romântico da positividade da vida moderna e das forças vivas e inteligentes que constituem a realidade social.

Cabe, por certo, um balanço crítico à vista de tão carregada crítica de nossa história e de nossa gente, desse pessimismo pesado, fortalecido por um diagnóstico consoante o qual nossas deformações, insuficiências e prejuízos não são acidentais, mas essenciais, constitutivos porque enraizados na mistura de linhagens de um povo decadente, em cuja composição étnica as relações inter-raciais são vistas como frequentemente juntando o pior dos troncos miscigenados, e, ademais, depois da Independência, subjetivamente desencaminhado por um constructo ideológico de ideais sem outra densidade que a da retórica romântica. No entanto não cabe fazê-lo sem levar em conta o Post-Scriptum, parte na qual o livro reflete, ainda que muito parcialmente, sobre si e sobre sua circunstância, sobre sua posição ante o tempo em que se inscreve

A autorreflexão do Post-Scriptum começa com uma questão de método, declarando que o Retrato do Brasil foi composto como um quadro impressionista, livre da obsessão com datas, com citações e autos que nada provam, além de “não incidir na prosa tabelioa dos simples arroladores de fatos”, como anota com justiça, não o próprio Paulo Prado, mas Agripino Grieco, um de seus primeiros resenhadores. Mas a impressão de modéstia suscitada pelo reconhecimento dessa limitação de enfoque é logo corrigida pela indicação do que caberia colocar no lugar dela, “o que os alemães chamariam a história pragmática do Brasil”, cuja execução implicaria, contudo,   exatamente o que o ensaio, ainda que de modo impressionista, procura fazer: o estudo das três raças – o colonizador português, as populações indígenas e o negro africano – que produziram “o novo tipo étnico que será o habitante do Brasil”. Reconhecendo, mas deixando em segundo plano o estudo das desigualdades socioeconômicas e culturais associadas à escravização de indígenas e negros, Paulo Prado faz a pergunta que os capítulos anteriores já haviam respondido: “que influência pode ter no futuro essa mistura de raças?”. Sua resposta repetirá que consequências disso teriam sido o “mais anárquico e desordenado individualismo” e a “indolência e passividade das populações”, ainda que, neste último caso, essas características tenham facilitado”a preservação da unidade política”, feito produzido, também paradoxalmente, pelos “vícios e defeitos da burocracia estatal portuguesa.[v]

Para encaminhar a conclusão do livro, o Post-ScrIptum permite-se, porém, mudar de registro e lançar o olhar sobre o tempo em que é escrito, sobre o estado do Brasil naquela terceira década do século XX. A descrição do que, então, Paulo Prado enxerga continua acerbamente crítica. Começa com a observação de que “dos agrupamentos humanos de mediana importância, o nosso país é talvez o mais atrasado (…). Não progride: vive e cresce, como cresce e vive uma criança doente.” Nossa população, distribuída no território em grupos humanos incertos, vivendo à solta na terra comum, sobretudo no litoral ‒ em sinal claro da desorganização da ocupação territorial e do mau aproveitamento dos recursos da terra – continua a ter semi-ignorado o interior do país, que permanece entregue à indolência, às doenças, às crendices e submetido à tradição do   mandonismo local. Por sua vez, o que há de mais desenvolvido no Brasil, as “manchas de civilização material nos planaltos da serra do Mar, da Mantiqueira e nos campos do sul”, são vistas como frágeis e dependentes, pois exploradas pelo capital estrangeiro, debilitadas também pela inércia da administração pública, cujo foco principal é a extensão e a eficácia da cobrança de impostos. Somado a isso, diz-nos ainda o texto, o que se vê de vivo na ordem privada continua debilitado e contra impelido pela regra geral de priorização e preferência dadas às importações e à correlata imitação do estrangeiro, cujas consequências macroeconômicas são o endividamento em moedas fortes e as repetidas crises cambiais. Finalizando esse quadro infeliz, diz-nos ainda o retrato, há uma hipertrofia da atenção à esfera politica como se a ela se reduzissem os enormes e desatendidos problemas do país. “Para tão grandes males” conclui, então, o Post-Scriptum e com ele o livro, só duas soluções poderão evitar o desmembramento do Brasil: a guerra ou a revolução, de modo que, lê-se na última linha,    só resta como pensamento de reconforto, “a confiança no futuro, que não pode ser pior do que o passado”.

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Diante desse Retrato do Brasil, cuja escrita foi por todos logo reconhecida como extraordinariamente sóbria, elegante e envolvente, mas cujo retratado nos é apresentado com uma figura monstruosamente deformada e feia, cabe ver como ele foi recebido.

A verdade é que a repercussão imediata do livro foi enorme e a recepção crítica grande, rica, diversa e polêmica. Em algumas vozes contundentemente negativa, em outras, entusiasmadas com o estilo e admiradas com o que de verdade viam no ensaio e também em acordo com seu propósito e oportunidade. No entanto, em todas as resenhas e exames do livro, não faltaram, além da admiração pelo texto, os apontamentos de parcialidades, omissões, anacronismo do enfoque metodológico e mesmo equívocos de fundo com relação ao modo como livro representa a realidade brasileira.

Já em dezembro de 1928, imediatamente após a publicação do livro, Alceu Amoroso Lima, entre nós, o mais importante pensador católico do século XX, à época ainda não convertido, intitulou sua resenha assim: Retrato ou Caricatura?[vi] Sua resposta foi que é próprio dos panfletos, exagerar nas tintas e eliminar todos os entretons, de modo que, a seu juízo, o que Paulo Pardo fizera, fora uma caricatura, construída, embora, com o espírito de um patriotismo sadio e, por isso, merecedora de atenção e admiração, ainda que crítica. Para quem se aproximava então do catolicismo, a condenação dos efeitos perniciosos da luxúria, tão enfatizados no ensaio, com certeza estava entre os pontos mais importantes do livro. Dos modernistas de 22, Oswald de Andrade, embora ressalte que o livro teria acordado muita gente ao gritar que o Brasil existia, e a despeito de que também louve-o por ter trazido à opinião publica brasileira o sinal de que havia uma revolução mundial em andamento, não hesita em acusá-lo de julgar a luxúria com a moral dos conventos inacianos, nem em afirmar que quem conhecesse o autor veria no livro uma traição a si mesmo.[vii] Oswaldo Costa na revista de Oswald de Andrade, a Antropofagia, radicaliza o ponto ao dizer que, “na época de Freud”, Paulo Prado se fantasia de visitador do Santo Ofício, toma a palmatória, abre o catecismo e prega moral ao brasileiro da fuzarca, insistindo em meter na cabeça dele o desespero do europeu podre de civilização.[viii] Mário de Andrade é mais sinuoso, seu artigo tem por título Inteligência Fazendeira, ignora o conteúdo do retrato. e diz que seu mérito é ter anunciado a chuva que viria, quer dizer, a grande crise dos anos 30.[ix] Ainda em 1928, Agripino Grieco na mais elegante das resenhas e, ao mesmo tempo, levando a sério o conteúdo do livro, admira “o civilizado, o fino epicurista das letras que é seu autor”, assim como “a distinção, a polidez da frase”, e,  atribuindo ao ensaio o caráter de obra de arte, não lhe reconhece força demonstrativa. Este teria o estatuto de uma hipótese inverossímil, pois o parecer de Agripino é que “somos azedos não por motivo racial, mas social e econômico, por sentirmos fracos, não só na cidade, onde não conseguimos fazer face à invasão estrangeira, aos capitais monopolistas (…), mas também no interior, onde sofremos por fazer parte do mais desprotegido dos proletariados, o proletariado rural (…).[x]

      Mais tarde, a parte de muitas outras manifestações sobre o Retrato do Brasil, viriam a ele os historiadores. Em 1949 Werneck Sodré publica uma circunstanciada avaliação do livro, louva-lhe o profundo conhecimento de nossa história, o tom acusatório do estado lamentável e inaceitável em que a seu tempo fora levado o país, elogia também sua sensibilidade em antecipar a grande crise de 1929, mas insiste em que a luxúria, a cobiça e o romantismo não foram causa, mas sim efeito da estrutura econômica e social do país. Wilson Martins, em 1969, em sua História da Literatura Brasileira, atribui ao livro grande valor, considerando que embora se deva considerá-lo como uma obra de arte, das quais “não cabe discordar, mas tão só aceitar ou rejeitar”, credita-lhe não só a honra de ter aberto “a estrada real para os estudos brasileiros”, mas a de ter criado “em alto estilo, o ensaísmo propriamente moderno.[xi] Em 1978, Francisco Iglésias, historiador profissional, aponta o caráter não científico da obra, o uso pouco crítico das fontes, temerariamente arriscando-se na generalização de evidências tiradas dos processos da Inquisição nos quais o foco da atenção justamente incluía privilegiadamente casos de luxúria e cobiça. Censura-lhe, além disso, o psicologismo, mas não deixa de reconhecer que o Retrato do Brasil é “livro harmonioso, admiravelmente escrito, um dos momentos altos na bibliografia brasileira.[xii] Nesse mesmo ano em que Iglésias escreveu, Fernando Henrique Cardoso, que, por certo, não é exatamente historiador, publicou o seu Fotógrafo Amador, uma página na revista Senhor Vogue.[xiii] Ali, depois de notar que Gilberto Freire, ao culturalizar as análises sobre a constituição da identidade brasileira, rompera “com o que havia de preconceito sobre as ‘raças inferiores‘”e de observar que não obstante fosse o Retrato “a consagração do subjetivismo romântico” Fernando Henrique insinua que, nesta medida, dever-se-ia tomá-lo como uma versão desastrada da “transfiguração do feio em belo” do orgulho do que, embora defeituoso, fosse nosso, traço maior da Semana de 1922, cujo emblema éMacunaíma. Ao final do século XX, em 1997, Fernando A. Novais, ao ensejo da nona edição do livro, em uma coluna na Folha de São Paulo, o exalta como ‘um momento privilegiado dessa retomada de consciência de nós mesmos (…)”, preocupação esta que constituiria justamente o traço dominante da cultura brasileira a partir do fim da década de 20 e cujo principal mérito foi o de abrir-nos para a visão crítica de nós próprios.[xiv] Por fim, quase agora, em 2022, em “A ideologia modernista – a Semana de 22 e sua consagração[xv], Luis Augusto Fischer reabre o processo de avaliação crítica do Retrato do Brasil e lhe faz a menos condescendente, na verdade mais impiedosa e radical das acusações: “Paulo Prado se esconde atrás de citações de viajantes para reproduzir, neste ponto, os seguintes horrores, que são racistas mas são, talvez pior ainda, do tipo que culpa o oprimido pela opressão, a estuprada pelo estupro, o escravizado pela escravidão.

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       Agora, praticamente um século depois, à luz de tantas e qualificadas avaliações anteriores, o que ainda se poderá e o que caberá dizer sobre o Ensaio sobre a tristeza brasileira?

       Para dar resposta a essa indagação, o melhor talvez seja começar com outra pergunta: será que esse diagnóstico de que somos um povo triste tem alguma plausibilidade, será que,    quando olhamos para o nosso país ao já nos aproximarmos do final deste primeiro quartel do século XXI, nos vemos tristes?

       Tristes, tristes no sentido próprio e exato do termo, não me parece que sejamos. Mas não creio despropositado dizer que estamos machucados, frustrados, confusos, divididos e bastante desiludidos com nós mesmos. Certamente não cumprimos o vaticínio feito por Dom Pedro I no alvor da nossa Independência: não, não nos tornamos o “assombro do mundo novo e velho”. Longe disso, como se vê nos dados sobre a emigração, no âmbito da qual é crescente a participação de nossos jovens mais promissores. Nossa sociedade continua ainda a disputar o campeonato das mais desiguais do mundo, estado visível na paisagem urbana de nossas cidades onde multiplicam-se os que vivem do lixo, os moradores de rua, os drogados e onde os bairros de classe média e alta são circundados por um favelamento enorme, por essas grandes comunidades, como hoje se diz, no qual o povo honrado e trabalhador, ausente o Estado, é submetido à autoridade clandestina e perversa dos capitães do tráfico de drogas e por milícias, quase tão perniciosas quanto o próprio tráfico. Nossa economia, a despeito do extraordinário sucesso do agronegócio, desindustrializando-se a olhos vistos, mostra-se também absolutamente incapaz de integrar-se com alguma autonomia aos centros de inovação tecnológica do mundo. E a política, essa que Paulo Prado queixava-se de parecer ser a única preocupação social tomada como relevante no país, continua mais ou menos assim. Para que assim não fosse, precisaríamos ter e ver as forças da ordem pública somadas às da esfera privada, comprometidas ambas com a solidariedade social e articuladamente empenhadas na construção de um país à altura do que o mais rico e desenvolvido século que a história humana conheceu faculta.

       Por isso, um diagnóstico crítico parcial e cruel como o de Paulo Prado continua a provocar e a desafiar, embora não porque ele dê conta do estado em que hoje se encontra nosso país, tampouco porque seu diagnóstico das causas de nossas insuficiências e penas dê uma visão equilibrada e justa de nosso país, mas porque ele nos chama para olhar o panorama que vemos hoje com a mesma disposição crítica com que ele se voltou para nosso passado. Falta-nos sim quem tenha a verve, a finura de espírito para mostrar como se refletem em nossas paixões, disposições de ânimo e consciência reflexiva, os males estruturais de nosso país. Essa escrita, o retrato do Brasil de 2023, continua por fazer.

       Oxalá se e quando essa nova crítica venha à luz, seja ela atenta também às qualidades e virtualidades positivas de nosso povo, que assim como pode ser triste, pode também ser alegre, e com a mesma alternância, vicioso e virtuoso, desalentado e esperançoso. Oxalá venha ela acompanhada também de uma convocação à convergência, à disposição de abrir mão de privilégios indevidos, à paciência sem a qual a perseverança no caminho é impossível e irrealizável a aspiração que, a despeito das raivas e ódios do tempo, in pectore todos temos: a de fazer com que este Brasil, infelizmente rachado por diferenças político-ideológicas, perdido e debilitado por feridas econômicas, sociais e culturais que tão logo pensadas se reabrem, se reencontre e com isso ganhe a força necessária para verdadeiramente saná-las. Talvez então, mesmo se não nos tornarmos o assombro do mundo novo e velho que nos previa Dom Pedro, não tenhamos mais que remoer e envergonhar com as mazelas que, mesmo que exagerada e enviesadamente descritas, como fez Paulo Prado, ainda hoje nos desfiguram e humilham.

*João Carlos Brum Torres é professor aposentado de filosofia na UFRGS. Autor, entre outros livros, de Transcendentalismo e dialética (L&PM). [https://amzn.to/47RXe61]

Bibliografia

Paulo Prado. Retrato do Brasil: Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira. L&PM, 176 págs. [https://amzn.to/4bggEnX]

Notas


[i]   V. Paulo Prado, Paulística, etc., Companhia das Letras, Sâo Paulo, 2004, p. 55.

[ii]  Lascívia, diz o texto, por tudo favorecida: «   os impulsos da raça, a molícia do ambiente físico, a contínua primavera, a ligeireza do vestuário, a cumplicidade do deserto, e, sobretudo, a admiração fácil e admirativa da mulher indígena, mais sensual do que o homem como em todos os povos primitivos e que, em seus amores dava preferência ao europeu (….   »

[iii] No artigo Bandeira, Paulo Prado escreve: «   Para essa luta sobre-humana, as circunstâncias do meio, da raça, e da educação tinha preparado e afeiçoado admiravelmente o ‘o herói providencial’ no tipo do bandeirante de São Paulo. (… (T)odos esses fatores conjugados criaram uma admirável exemplar humano, belo como um animal castiço, e que só puderam realizar nessa perfeição física os homens da Renascença italiana, quando César Bórgia seduzia o gênio de Maquiavel.   » In Paulística etc. 4ª edição, organizada por Calos Augusto Calis, Companhia da Letras, São Paulo, 2004, p. 147.

[iv] Mas nunca completamente desaparecida, como atestado, segundo Paulo Prado, no renascimento econômico dos dias de hoje, o dia dos tempos em que escrevia, em 1925, conforme dito em seu prefacia à primeira edição de Paulística, etc. Cf., ob. cit., p. 59.

[v]  Neste ponto convém notar que muito embora Paulo Prado tenha como um ponto importante do ensaio a questão do caráter étnico do povo brasileiro, ele não a encara a partir das teorias racistas. A propósito, no Post-Scritum, escreve que “A questão da desigualdade das raças, que foi o cavalo de batalha de Gobineau (… é questão que a ciência vai resolvendo no sentido negativo. Todas as raças parecem essencialmente iguais em capacidade mental e adaptação à civilização” Mas inquieta-se com a mestiçagem ao dizer que embora“o mestiço brasileiro”tenha “fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral”, por outro lado observa que “as populações oferecem tal fraqueza físca, organismos tão indefesos contra a doença e os vícios, que é uma interrogação natural indagar-se se este estado de cousas não provém do intensamento cruzamento das raças e sub-raças.”Sobre este último ponto deixa de lado os estudos de saúde pública, sobre as condições sanitárias e de saúde das populações brasileiras desenvolvidos por Roquete Pinto, Osvaldo Cruz, Belisário Pena, Artur Neiva, Miguel Pereira. Confira-se para reconstituição destas questões, Thomas Skidmore, Preto no Branco –Raça e Nacionalidade no pensamento brasileiro. Paz e Terra, 1976, especialmente o capítulo 6.

[vi] V. Retrato ou Caricatura, in Paulo Prado, Retrato do Brasil –Ensaio sobre a tristeza brasileira. 10ª edição, organizada por Carlos Augusto Calil, Companhia das Letras, 2012, p. 152-157. A maioria das remissões feitas às resenhas e comentários ao Retrato do Brasil feitas adiante tomarão como base esta edição de C. A. Calil, que deve ser considerada como uma edição crítica e de referência.

[vii] V. Retoque ao retrato do Brasil, in, id., p. 169-171.

[viii]   V. Moquém, também publicado na edição Carlos Augusto Calil, p. 174-176.

[ix] V. Inteligência fazendeira. In, id. p. 172-173.

[x]  V. Da Paulística ao Retrato do Brasil. In, id, p. 158-164.

[xi] V. 1928: Retrato do Brasil, in, id. p. 202-210.

[xii] V. Retrato do Brasil, 1928-1978. In, id. p. 211-222.

[xiii]   O texto foi recuperado em Fernando Henrique Cardoso, Pensadores que inventaram o Brasil, Companhia das Letras, 2013. Devo ao amigo Lucas Taufer o oportuno alerta para não deixar de incluir a Fernando Henrique nesta lista de comentadores do Retrato do Brasil.

[xiv]  V. Raízes da Tristeza, In, id. p. 229-233.

[xv] V. Luis Augusto Fischer,  A ideologia modernista  a Semana de 22 e sua consagração, Todavia, São Paulo, 2022.

Herbert Marcuse: a emancipação humana

Anderson Alves Esteves, Outras Palavras (expandir)

Herbert Marcuse (1898-1979)

O projeto emancipatório pensado por Marcuse significa a superação do princípio de realidade vigente, o princípio de desempenho, pelo de realidade que pacifique a existência, o ethos estético

I – Introdução

Herbert Marcuse, como filósofo preocupado com a práxis, teve a emancipação humana como um de seus grandes objetos/objetivos e, de maneira autoral, renovou os estudos sobre ela ao se recusar a, apenas, replicar os postulados do Idealismo Alemão e do marxismo ortodoxo. O fascismo, o nazismo, o capitalismo de estado, a derrota da Revolução Alemã, o stalinismo, o advento da sociedade de massas, a opulência da sociedade industrial avançada, suas novas formas de controle social e a estrutura psíquica dos átomos sociais exigiram uma profunda análise da situação histórica e não revolucionária para se arvorar a explicitação de possíveis e novas possibilidades de emancipação.

Assim, as torções conceituais empreendidas pelo filósofo frankfurtiano deram origem a uma Teoria Crítica que, de maneira vivaz e calibrada com questões conjunturais e canônicas, observou diferenças materiais e ideológicas entre as fases liberal e monopolista do capitalismo, caracterizou as novas formas de controle social a operarem nas sociedades industriais avançadas e formulou conceitos que inovaram os estudos sobre possibilidades de emancipação, sem desprezar grupos que não eram, necessariamente, pertencentes ao proletariado tradicional, mas que exerceram formas originais de ações políticas e que foram a base social para uma Nova Esquerda realizar a Grande Recusa à sociedade estabelecida.

Esta expunha suas contradições ao se mostrar, de um lado, madura e com potencial para superar seus problemas, de outro, impeditiva da efetivação da emancipação humana ao manter o princípio de desempenho, a mais-repressão e uma série de dessublimações repressivas. Além da política, a arte também expressava a tensão entre controle social e emancipação: com compromissos afirmativos e, ao mesmo tempo, denunciando a realidade estabelecida, a obra de arte tanto promove a catarse dentro dos marcos da atual civilização como reinventa novas regras e situações que, ficcionalmente, realizam-se para além do existente e contribuem, assim, para desmistificá-lo. A negação, estudada por um Autor tão bem versado na dialética hegeliana, mostrava-se em múltiplas facetas – do político, do estético… – a indicarem possibilidades de superação da sociedade vigente e do ardil que esta se esmera a fim de se prolongar, transparecia as contradições entre aparência e essência; estes e outros motivos – negação, razão, emancipação, revolução, história e efetivação das potencialidades humanas –  foram explorados no livro de Marcuse, quando ele já era membro do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, sobre Hegel, Razão e revolução (1941).

Pulsavam, na Nova Esquerda, novas razão e sensibilidade a engajarem-se na edificação de um princípio de realidade a superar tamanhas contradições, retirando a luta de classes da latência e mediando a obsolescência do mundo em vigência com a sociedade a ser construída, a saber, aquela que foi denominada por Marcuse como civilização não repressiva e libidinal, socialismo integral e ethos estético. A possibilidade de efetivação de tal perspectiva denota a articulação entre teoria e práxis e majora o alcance da felicidade e da realização das necessidades de acordo com o que, historicamente, pode-se alcançar.

II – Dificuldades para a emancipação

Engendrado quando a burguesia alemã, ao mesmo tempo em que projetava uma ordem social compassada aos próprios interesses e que promovia uma inflexão estratégica e tática, uma vez que não gozava de força material para empreender o que ingleses e franceses da mesma classe social já haviam conseguido, o projeto do Idealismo Alemão foi tingido tanto de anseios de transformação social como de manutenção do status quo.

De um lado, mediante o relevo dado ao papel do Eu e da razão autônoma e crítica, o movimento filosófico se caracterizou, tal como em Kant, por um Esclarecimento a propagar a razão de modo a construir sujeitos autônomos com potência para edificar, mediante o alcance de consensos, a república noumênica, regulada pela razão e por leis jurídicas a promoverem a ordem também racional. De sua parte, Hegel, com o mesmo objetivo, narrou a história do espírito até o momento em que este se consolidara de maneira mais crítica para ultrapassar o estabelecido e, pela via da valorização do negativo, alcançar a verdade universal – da certeza sensível à consciência-de-si a razão foi engrandecida e se tornou mais abrangente ao libertar-se do sensível. Para os dois filósofos, a interioridade foi o refúgio da liberdade e da felicidade pretendidas, mas não efetivadas materialmente. 

De outro, elementos autoritários mostravam-se constituintes da razão arvorada no capitalismo liberal à medida que indivíduos foram tomados em igualdade formal, mas em desigualdade concreta, a exemplo do pendor kantiano à subserviência às autoridades vigentes, da disposição hegeliana em situar a monarquia  como o fim da história, da submissão dos indivíduos aos processos controlados pelo alto e com toda a lentidão paulatina usada pelo Estado como controle para, dessa forma, perenizar o que frustrava o próprio projeto do Idealismo Alemão, a saber: a irracionalidade grassada dos conflitos entre indivíduos e Estado, das classes sociais em luta, da dissolução das relações sociais a partir da concorrência infrene, das crises econômicas periódicas, da proletarização e da submissão à cegueira do mercado, das guerras entre as burguesias de diferentes nações em concorrência, da colonização, da concentração e da monopolização de riquezas, do Estado reduzido a palco de interesses privados, da formação de ideologias vincadas de irracionalismo.         

Em seguida, sob o capitalismo monopolista, além da razão autônoma e crítica não ter se efetivado e, em contrapartida, ter cedido espaço para a heteronomia constitutiva a uma massa administrada, o controle social foi intumescido pelo esvaziamento das mediações institucionais erigidas durante o capitalismo concorrencial: Friedrich Pollock e Franz Neumann, a despeito de diferenças de diagnósticos, apontaram que as relações entre economia e política aumentaram, de um lado, a segurança aos monopólios à medida que golpearam e desmantelaram a oposição à ordem, suspendendo as conquistas democráticas dos períodos anteriores, e, de outro, diminuíram os riscos dos investimentos ao organizarem a produção e a distribuição de mercadorias.

Para Marcuse, as implicações para o proletariado foram consideráveis. Marx citara, desde a “Introdução” de a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, e argumentara de modo mais aprofundado e à luz da (crítica da) Economia Política e da teoria feuerbachiana, em os Manuscritos econômico-filosóficos, que o proletariado era a negação do capitalismo e o portador da emancipação humana em virtude de suas condições sociais e materiais; os que vivem do trabalho, e não o Estado como pensado por Hegel, foram diagnosticados como o elemento com interesse universal e a transformar a realidade, tanto em termos de organização societária como antropológica, uma vez que o programa comunista contemplava a superação do trabalho estranhado e da propriedade privada, ambos perniciosos tanto à sociedade, ao serem esteios para uma gigantesca constelação de problemas sociais, quanto à vida humana, por mutilarem a realização das potencialidades individuais. Marcuse, ao se debruçar sobre a classe social em pauta, reunindo um instrumental teórico que contemplava trabalhos do Instituto de Pesquisa Social e pesquisas sociológicas norte-americanas, diagnosticara que o proletariado não mais se opunha, no século XX, à ordem estabelecida como os fundadores do Materialismo Histórico haviam observado na década de 1840. Pesava, no capitalismo monopolista vivido por Herbert Marcuse, além das formas canônicas de dominação, uma constelação de novas formas de controle social e a integração à sociedade estabelecida mediante o consumo de falsas necessidades que dificultavam a percepção da alienação à medida que ela se tornara mais objetiva, velada, palatável e com potência de represar a luta de classes na situação de latência; com efeito, esperar que a razão autônoma ou crítica se realizasse e se universalizasse ou que o proletariado campeasse a revolução comunista e a disseminasse pelo mundo, não parecia encontrar suporte na realidade contrarrevolucionária que efetivara o fascismo, o nazismo e a contenção keynesiana dos movimentos emancipatórios.

O Autor do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt diagnosticou novas formas de controle social que denotavam não apenas aumento quantitativo das maneiras de dominação decorrentes da era liberal, temerários de uma crise final e derradeira, mas contornos qualitativos que garantiam a sobrevida do modo de produção em vigência durante sua fase monopolista, à medida que ofereceram subjacência a  uma administração social de maneira racional, higiênica, eficaz e mais agradável, integrando os setores dominados aos dominantes em uma sociedade unidimensional mediante recursos materialmente ideológicos que também dificultavam a percepção da alienação. O Homem unidimensional, publicação de 1964, selava este diagnóstico e caracterizava o fechamento da possibilidade de emancipação nas sociedades industriais avançadas; em grande medida, o trabalho aprofundou temas de ensaios escritos nas décadas anteriores e que já haviam indicado a correlação de fenômenos corrosivos à razão crítica, à individualidade e à existência de uma oposição à ordem, tanto em sociedades governadas por fascistas e nazistas como nas autodeclaradas democráticas.

Dentre as novas formas de controle social, Marcuse desenvolve pesquisas profícuas (desde a década de 1930) sobre a tecnologia que, para ele, contém um a priori cujo apanágio é a circunscrição de pessoas e coisas como objetos de controle, estabelece nexos entre poder político e produção de mercadorias à medida que o trabalhador é dominado pelo maquinário que o circunda, administrado racionalmente para empreender uma dominação magistral que, em lugar de brutalizar, convoca-o ao pertencimento de uma suposta comunidade tecnológica, poupando-lhe energia física e inclinando-o a orientar-se pela imanência das coisas – tais considerações, já presentes na obra do Autor, em 1941, anteciparam aquilo que seus colegas de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, denominaram de razão instrumental, em 1944. A produção e o açulamento de falsas necessidades entre os membros da sociedade industrial avançada, mediante a distribuição em massa de artigos esquematicamente fabricados para diferentes grupos, a fim de que, concomitantemente, fosse possível garantir alguma gratificação e programar/manipular comportamentos que realizassem os interesses dos grandes conglomerados monopolistas como se fossem os das próprias pessoas, conquistando-as materialmente ao status quo. As peças da indústria cultural, ao circularem como mercadoria, abstém-se de se caracterizar como transcendentes e opostas à ordem constituída para, ao contrário, veiculá-la mediante integração, mobilização, domesticação e administração das consciências ao cimentarem os vínculos societários pela estratégia da diversão e do consumo e sem que a dominação seja superada. As novas estrutura psíquica e sexualidade dos membros da sociedade industrial avançada, marcadas pela opulência, reduziram a divisão tripartite da psique, tal como descrita por Freud, em duas, uma vez que o ego fora encolhido a partir de um processo de socialização a diminuir a autoridade paterna e a majorar a importância das agências extrafamiliares, por uma repressão suplementar (“mais-repressão”, como Marcuse expôs em Eros e civilização) que orientava as pessoas a agirem no sentido dos interesses dos grupos que dominavam a produção e a distribuição de mercadorias, pela gratificação através da liberação da sexualidade genitalizada e que liberava o restante do corpo para a esfera do trabalho. A política própria às sociedades industriais avançadas incluía os partidos autodeclarados de oposição como instituições integradas e integradoras da ordem estabelecida, contribuintes com a unidimensionalidade. O universo da locução adquiriu operacionalidade e funcionalidade mediante unificação de termos antagônicos, hifenização, abreviação de sentenças, eliminação de conteúdos críticos dos substantivos, adjetivação predominantemente positiva, repetição hipnótica, mitigação da tensão entre o aparente e o real; consequentemente, auxiliou a veiculação da ordem estabelecida.

Com efeito, tal vida administrada sob o capitalismo monopolista do século XX, nas sociedades industriais avançadas, expressava o nexo entre as dominações objetiva e subjetiva: a luta de classes foi posta em latência e a emancipação humana retirada do horizonte à medida que as novas formas de controle social integraram o proletariado à ordem estabelecida/ unidimensional e caracterizavam-se por dessublimações repressivas ao proporcionar/aparentar gratificações ao mesmo tempo em que se reproduzia a dominação. Ao proletariado do século XX não mais se aplicava o imperativo de ser a classe que, por não ter nada a perder, restava o mundo a ganhar: ao obter imóveis, eletrodomésticos, automóveis, peças de vestuário e consumir os mesmos itens da indústria cultural que a burguesia também adquiria, ele havia se mimetizado a ela. A era em que se combinavam estado de bem-estar social e estado beligerante ofertava, mediante a acumulação de feição keynesiana e fordista, condições de veiculação do status quo à medida que se ofertavam alguns confortos materiais sob uma vida administrada.   

Sob esta conjuntura e a fim de pesquisar as possibilidades de reabertura da emancipação, Marcuse mobilizou um dos principais traços do Materialismo Histórico e da Teoria Crítica, a saber, o recurso à História, relacionando-a às questões epocais que demandavam, obviamente, novos conceitos e não a mera repetição fetichizada do instrumental teórico edificado nos séculos XIX e início do XX.

III – Possibilidades para a emancipação

Uma vez a História e a práxis dispostas como esteios certificadores da contínua revitalização conceitual, Marcuse observou, a partir da “Conclusão” de O homem unidimensional (1964), que a emancipação poderia ser levada a cabo por aqueles que sentiam as frustrações, os descontentamentos e as agressões empreendidas pela sociedade industrial avançada: no âmago dela, existiam outsiders que contestavam o status quo e que possibilitariam retirar a luta de classes da latência. Tais dissidentes foram pesquisados pelo Autor frankfurtiano em trabalhos posteriores ao livro supracitado, dentre eles, o Ensaio sobre a libertação (1968) e Contrarrevolução e revolta (1972). De modo geral, intelectuais (escritores, técnicos, especialistas e engenheiros – todos com capacidade de desmistificarem as várias formas da ideologia e da manipulação, além de desempenharem o importante papel da educação política, adquiriram educação que os permitiam notar que as forças produtivas poderiam se desenvolver mais e serem melhor distribuídas, sob outro enquadramento societário), estudantes (que estabelecem nexos entre as pautas específicas dos campi e as gerais da sociedade para mostrarem que a reforma educacional será efetivada se a social também for), grupos étnicos (geralmente, nos EUA, compostos de habitantes das áreas de risco de grandes cidades e que contemplam a população negra, a vítima mais frequente da repressão oficial, e que estão naturalmente inclinados a rebeliões que podem, a partir da facilidade geográfica, espargirem-se rapidamente), movimentos de libertação do Terceiro Mundo (que para além das óbvias ações voltadas à libertação e ao desenvolvimento autônomo dos países da periferia do capitalismo, também catalisavam revoltas nas sociedades industriais avançadas à medida que ocorriam movimentos de solidariedade em conjunto com estudantes, intelectuais e pacifistas; ademais, caso uma revolução prosperasse nos países centrais, poderia existir um efeito imediato na periferia em virtude do grau de dependência que as burguesias locais tinham em relação às do centro), pacifistas, feministas (de enorme importância catalisadora por relacionarem-se à denúncia da agressividade que caracteriza o princípio de desempenho, a civilização patriarcal e a sociedade de classes, e por proporem outro princípio de realidade, com Eros desentrelaçado da agressividade, com a reabilitação dos sentidos e da vida em si mesma – em outros termos, trata-se de um movimento que recusava a sociedade estabelecida nos seus âmbitos infra e superestruturais para, desse modo, libertar mulheres e homens), ecologistas (a exemplo do movimento feminista, também se voltavam contra a agressividade e as dimensões infra e superestruturais do status quo, sobretudo às vinculadas ao meio ambiente, vitimado e explorado perdulariamente em virtude do progresso quantitativo, da preponderância de Thanatos sobre Eros e o mantenimento de gratificações socialmente permitidas e agressivas – o movimento ecologista era expoente da insatisfação consciente e inconsciente com a produtividade destrutiva da sociedade vigente e mostrava-se com força para reorientar o progresso com o predomínio de Eros sobre Thanatos, para pacificar a existência exterior e a interior, as instituições e a psique), desempregados e alguns setores privilegiados que perderam poder diante de um capitalismo veementemente monopolizado, que os submetiam a extenuantes jornadas de trabalho, que os manipulavam e que estendera tentacularmente seus domínios a vários âmbitos da vida, convertendo todos em seus dependentes. Em conjunto, os grupos supracitados encontravam motivos (não apenas econômicos) para se revoltar contra a ordem estabelecida e para vislumbrar novos modos de vida a superarem as questões materiais e imateriais que não se resolviam nos marcos da sociedade vigente e sua universalização da forma mercadoria.

O diagnóstico de Marcuse, em 1972, apontava para o capital como aquilo que dominava todos os âmbitos da vida e que, concomitantemente, arvorava a contrarrevolução (preventiva, em tempos de latência da luta de classes), de um lado, e uma gigantesca massa por ele dominada a se revoltar, de outro. Como expoentes da situação conjuntural, os outsiders reinauguraram a tradição de greves não autorizadas pelas burocracias sindicais; a ocupação de fábricas, universidades e escolas; o absenteísmo; as sabotagens; as marchas e os protestos públicos; o rechaço ao ascetismo… Outrora descrita como unidimensional, a situação política da sociedade industrial avançada estava, dessa vez, vincada pela ambiguidade, uma vez que, de modo imanente, o capitalismo monopolista erigia grupos de pessoas com potência para corroê-lo. O lugar da negação à sociedade – objeto de pesquisa tradicional em Hegel e em Marx – pululava em vários pontos e grupos que poderiam catalisar o proletariado para o seu reengajamento na mudança social qualitativa. A oposição ao status quo se construía com base em múltiplas formas de luta contra a repressão e esta não se limitava às questões materiais e econômicas (a despeito de uma grande parcela do proletariado consumir artigos e se mimetizar ao capitalismo, não escapava de outras formas de repressão): os lugares, os agentes e as formas de luta política estudados por Marcuse revelavam sua preocupação em desenvolver o tema da revolução e não de declará-la arquivada. O marxismo heterodoxo do Autor, ao contrário do que se supõe uma leitura apressada, não substituiu ou anulou o proletariado como classe revolucionária, ao contrário, manteve-o como o elemento indispensável e a ser catalisado; ademais, se o proletariado ganhara a companhia de outros grupos, a força social para a transformação social se alargara. A empresa teórica e prática mostrava-se tão importante quanto difícil: como se desenvolve a subjetividade revolucionária sob uma conjuntura contrarrevolucionária?  

Os outsiders e suas novas formas de luta política davam estofo social – mais abrangente que o proletariado tradicional – à Grande Recusa e à edificação de uma Nova Esquerda, heterodoxa, livre da camisa de força leninista e sua rígida organização partidária, revitalizadora da forma conselho e da democracia direta, capilarizada e aglutinadora de uma série de demandas, não apartada de reivindicações da classe média, que acusava o todo da sociedade e que levantava bandeiras que transcendiam a mera demanda por planificação econômica. Tratava-se, na supracitada Grande Recusa, entre as décadas de 1960 e 1970, de enfrentar as múltiplas formas de repressão, de rechaçar a sociedade estabelecida como um todo, de pautar a transvaloração dos valores, de reivindicar a libertação dos sentidos, da libido, de demandar a formação de uma consciência que escapasse dos limites da política profissional, da linguagem orwelliana e que fosse descolonizada da série de perversões impostas pelas novas formas de controle social, de concatenar as demandas subjetivas às objetivas, a psicologia à política, o particular ao universal, de não separar teoria e prática – a fim de suprassumir a organização societária que veiculava o império do capital monopolista, os novos grupos expressavam suas rebeldias e esperavam catalisar o proletariado para o retorno à luta de classes e, consequentemente, dar encaminhamento à mudança social qualitativa. De acordo com o que Marcuse argumentou em Não bastar destruir – sobre a estratégia da esquerda, a emergência da Nova Esquerda, a “única esperança” (Loureiro, 1999, p. 85) naquele momento, era expoente da crise pela qual passavam as sociedades industriais avançadas e que não podia ser superada sem a supressão do capitalismo monopolista.

Expressiva da dialética entre indivíduo e sociedade, em lugar da subsunção de um(a) por outro(a), a Nova Esquerda constituía-se de ativistas com uma nova sensibilidade forjada pelas transformações imanentes à produção social do século XX, dentro das sociedades industriais avançadas: a opulência delas relacionava-se à economia libidinal que, ontogênica e filogeneticamente, alterava a hipótese descrita na primeira metade daquele século, por Freud. Escritos de Marcuse da década de 1940 e, notadamente, da década seguinte, como Eros e civilização (1955)e outros trabalhos que aproveitavam e empreendiam uma releitura da obra do psicanalista vienense, analisaram fenômenos a exemplo dos da perda da força da família como agência monopolizadora da socialização primária, da identidade das pessoas (desde a infância) com as instituições do capitalismo monopolista, da disponibilização em massa de mercadorias que facilitou a diminuição da importância do pai primevo (repressão) e o aumento da do consumo (permissividade), da escolarização, da indústria cultural como cimento dos vínculos societários e o intumescimento da infantilização, das associações,  de clubes, de grupos de jovens etc. – todos colaboravam para bloquear a formação de indivíduos (com ego autônomo, crítico e com o psiquismo dividido em três partes) à medida que convocavam pessoas com ego não formado, ou em erosão, para a sociedade estabelecida. Trata-se da transubstanciação do indivíduo em átomo social, da sublimação em dessublimação repressiva, da perspectiva da emancipação humana em perenidade da repressão (higiênica e palatável).  

A despeito de tal enquadramento psicossocial, os ativistas da Nova Esquerda expressavam a possibilidade da efetivação da emancipação humana: a opulência da sociedade industrial avançada tornava, a partir do contraste com o que ela facilitava perceber, insuportáveis o ascetismo, a frustração e a continuação da repressão às pulsões que ainda se faziam presentes na enorme parcela da população – dos estratos mais vulneráveis à classe média. Na perspectiva marcusiana, alcançava-se, historicamente, a conjuntura na qual a existência da civilização não mais demandava, obrigatoriamente, repressão: o amadurecimento, que se expressava em fenômenos como os da automação a ofertar uma produtividade sem igual, poderia inaugurar uma era na qual se reerotizaria pessoas e instituições, uma vez que as sublimações haviam sido colocadas em obsolescência e vislumbraria a hipótese de efetivação de uma civilização libidinal, na qual Eros não precisaria de tamanha sublimação, sem que fosse necessário reprimir aquilo que foi, até o momento, postergado, colocado no fundo da cena social, proibido ou hierarquicamente submetido como inferior nas esferas da fantasia, da memória, da imaginação, da sensualidade, do jogo, da receptividade, da contemplação, do repouso, do sonho. Se, a partir da práxis, a Nova Esquerda apresentasse e efetivasse a inversão do progresso quantitativo em qualitativo, edificasse outras instituições, outras racionalidade, moral e sexualidade, a civilização libidinal poderia se materializar como expressão da pulsão de vida que já não estava mais agrilhoada pelas pulsões de morte dentre aqueles que estavam engajados nos movimentos supracitados. Em outros termos, uma nova sensibilidade estaria mediando um projeto a superar a sociedade vigente e a construir um novo princípio de realidade. A partir dessa argumentação, George Katsiaficas citou o “efeito Eros” (2021, p. 84) em levantes que continham o poder de aglutinar e espargir, internacionalmente, movimentos catalisadores da Grande Recusa: aquilo que Marcuse pensou sobre o Maio de 1968, continuaria válido para explicar o que ocorre com o Occupy, a Primavera Árabe, o Black Lives Matter e outras revoltas e diversas formas de luta, de outrora e de hoje.

Pensando-se a obra de Marcuse sob um arco mais amplo, aquela crítica à razão hegeliana, que aos poucos se efetivaria na história, foi apontada como idealista e insuficiente para a edificação da emancipação. Com o Materialismo Histórico, o Autor mobilizou a práxis proletária como mediação material ao racional e o universal para a realização do projeto. Contudo, a integração do proletariado, no centro do capitalismo, movimentou a reflexão sobre a possibilidade da emancipação à pesquisa sobre agentes desse programa e, à medida que a concomitância entre opulência e repressão marcou a conjuntura das sociedades do século XX, materialmente, ofereceu-se a oportunidade do florescimento de novas razão, sensibilidade, agentes e projeto emancipatório – uma razão libidinal, voltada à gratificação, à efetivação das potencialidades humanas historicamente realizáveis, mas bloqueadas pela sociedade vigente, pulsa nos outsiders e pode catalisar o proletariado tradicional para a reinauguração da luta pela sua própria emancipação. Neste sentido, Eros e civilização foi a base para a crítica minuciosa da sociedade industrial avançada, realizada em O homem unidimensional, e para a exploração daquelas frestas deixadas pela civilização repressiva e que permitem a efetivação da utopia concreta, tal como se argumentou em Ensaio sobre a libertação e em Contrarrevolução e revolta. O livro de 1955 foi, outrossim, a continuidade da pesquisa acerca da negação: ao mesmo tempo em que respeitou os cânones hegeliano e marxiano, renovou-os à luz dos novos saberes psicanalíticos.

Os portadores da nova sensibilidade eram vistos por Marcuse como precursores da nova sociedade: constituídos da pulsão de vida desagrilhoada da de morte, demandavam meios ambiente e social livres de maneira que a política não se apartasse da moral, estariam socializados com um a priori vincado pela contenção da agressividade e majoração da liberdade e da solidariedade que, espiritual e somaticamente, não tolerariam a dessublimação repressiva da sociedade industrial avançada, seu princípio de desempenho e sua mais-repressão. Assim, a nova sensibilidade que destravaria a luta de classes, o a priori que exige o embelezamento das relações sociais e do meio ambiente, também possui nexos com a estética: imaginação, fantasia, poesia, sensibilidade e jogo também seriam força produtiva; razão, ciência, trabalho e esprit de sérieux não se divorciariam do belo e do bem-estar. Floresce, concomitantemente, um novo homem (novas faculdades cognitivas e sensoriais, não opostas – nova antropologia) e um novo princípio de realidade (nova sociedade): o ethos estético seria a superação do princípio de desempenho e possibilitaria mais e melhores gratificações, pacificação da existência. Presente e futuro se articulam na práxis dos outsiders e expressam a possibilidade dos reinos da liberdade e da necessidade se entrelaçarem, uma vez que engajamento e nova sensibilidade ocorrem ainda sob o princípio de desempenho, mas que se antagonizam a ele e prenunciam uma nova formação social, o ethos estético, como uma utopia concreta. Em lugar, portanto, da canônica tese de oposição entre os reinos da necessidade e da liberdade, tal como exposta em A Ideologia alemã, de Marx e Engels, a articulação marcusiana entre os reinos elenca, ainda sob a civilização repressiva, os elementos que dela nascem e antecipam sua superação. Historicamente, estão dadas as condições (técnicas, grupos ativistas que reivindicam outra ordem social e que não se divorciam da nova sensibilidade, de efetivação de uma utopia concreta) que podem encetar o novo princípio de realidade não mais reduzido ao progresso quantitativo que submete o homem a instituições e à economia psíquica mutiladoras.

A liberdade pulsa entre os ativistas da Nova Esquerda e, para o sucesso da efetivação do projeto emancipatório, eles precisam somar forças com todos aqueles que foram dominados pelo capitalismo monopolista e que se encontram frustrados, dos trabalhadores especializados aos estratos mais subjacentes. Tratava-se de unir razão e sensibilidade no engajamento e na educação políticas, de unir os vários grupos em uma Frente Única a catalisar os protestos e alçá-los ao nível da transformação social, de campear a longa marcha mediante as instituições no sentido do acúmulo de força, de erigir conselhos não discriminadores das ações espontâneas: a conjuntura da época de Contrarrevolução e revolta demandava aglutinar grupos que iam além do proletariado tradicional para vencer a reveiculação da carência e arvorar a superação do princípio de realidade estabelecido, eivando a civilização libidinal com novas necessidades (dentre elas, a solidariedade, o respeito ao indivíduo, a satisfação erótica e estética, a dimensão da arte não reduzida à esfera da imaginação e dos museus e elevada à força produtiva ao mesmo tempo em que preserva sua autonomia, a igualdade de gênero, a intolerância ao racismo e ao desagravo às esferas dos direitos, o respeito ao meio ambiente…) impossíveis de serem gratificadas sob a sociedade vigente. Como parte desse projeto de destravamento da luta de classes e de edificação do ethos estético como o novo princípio de realidade, Marcuse não aparta arte e racionalidade técnica e pensa-as entrelaçadas e comprometidas com a pacificação da existência – derrotar a escassez, lançando mão das forças produtivas já construídas, derrete a legitimação da mais-repressão e da miríade de dessublimações repressivas vigentes. Assim, a vida torna-se obra de arte a partir da metamorfose das metas e do tipo do progresso a ser erigido, do não divórcio entre razão e sentidos e da nova economia libidinal a se formar.

Percebe-se, portanto, que a sociedade como obra de arte, a civilização libidinal, é a utopia concreta – expressão que Marcuse toma emprestada de Ernst Bloch – que efetiva uma redução estética: a beleza, para se materializar, demanda superação do status quo por este ser o obstáculo maior à liberdade, à emancipação e ao belo, uma vez que prioriza a reprodução de capital e a agressão aos meios ambiente e social. Ademais, desde os gregos, arte e causa final não são necessariamente conflitantes; a Antiguidade experimentou algo que valia tanto para a arte como para a técnica, enquanto causa final e, na Modernidade, se resolvidas suas contradições, poder-se-ia, além de reentrelaçar tais domínios, também reagrupar razão, sensação, imaginação e fantasia para convergirem e caminharem em direção à pacificação da existência. Arte e técnica de tal forma concatenadas e reprogramadas, denotam possibilidades embelezadoras da existência e do mundo, elevam a dimensão estética para além dos museus e da promesse de bonheur, prenunciam e subjazem a hipótese de uma civilização não repressiva (o próprio pensamento de Marcuse pode ser considerado tal prenúncio, bem como as ações e o ideário da Nova Esquerda) e vincada de apanágios diferentes dos positivados sob o capitalismo monopolista, mantém a imagem da liberdade em pauta e afronta o princípio de realidade que a impede, contribuindo para pavimentar a efetivação de algumas verdades: reconstrução do maquinário para que ele deixe de operar instrumentalmente; redução do trabalho social necessário em compasso com o amadurecimento das forças produtivas; desagrilhoamento da ciência e do conhecimento em relação às irracionalidades e interesses particulares; razão caracterizada por Marcuse como pós-tecnológica e não mais voltada à repressão; emergência de novas necessidades impossíveis de serem gratificadas na sociedade estabelecida; estrutura psíquica re-erotizada; fim do império de Thanatos sobre Eros; formação de subjetividades não mais marcadas pela autorrepressão, a renúncia e o tabu; não rebaixamento dos sentidos em relação à razão; não menosprezo pela moral em ações políticas.

Considerada a característica histórica das faculdades humanas, o socialismo integral de Herbert Marcuse coloca em relevo as necessidades e satisfações compassadas ao ethos estético que, constituindo-se como um a priori da nova sociedade, não opõe a vida material e a intelectiva, não rebaixa instrumentalmente os meios ambiente e social e que, em sentido oposto, embeleza e pacifica a existência, conforme exposto em Contrarrevolução e revolta. A interessante mobilização e interpretação do Marx da década de 1840, de Kant, de Hegel, de Schiller, de Nietzsche e de Freud ultrapassou a tradicional oposição ocidental entre razão, sentidos e imaginação para indicar a possibilidade de uma razão que se sensibiliza e de sentidos que não se limitam ao âmbito da recepção; o mesmo ocorre para reconectar liberdade e necessidade, particular e geral, homem e natureza, meio e fim, análise e fantasia, arte e política – os âmbitos ético, estético e político não mais estão compartimentados para, assim, enveredarem pela união entre Prometeu e Orfeu, trabalho e canto, tal como Marcuse expôs em Eros e civilização.

Ethos estético, socialismo integral, civilização não repressiva e libidinal são, portanto, e ao mesmo tempo, a beleza alcançando o estatuto de força produtiva e a racionalidade emancipando-se de sua dimensão tecnológica e instrumental: com o princípio de desempenho e mais-repressão superados pela práxis, a civilização atinge a característica de não repressiva, adquire a Forma, como Marcuse destaca no Ensaio sobre a libertação, de uma organização societária voltada à pacificação da existência – a racionalidade caracteriza-se como pós-tecnológica e o belo se efetiva para além das páginas dos livros ou, em outros termos, a realidade materializa-se como obra de arte à medida que a existência se pacifica e orienta-se segundo um fim em si mesmo e sem se rebaixar a meio para outrem.

Contudo, o engajamento artístico na edificação desse projeto, não palmilha no sentido da colonização da arte pela política, mas no da permanência do hiato entre os dois âmbitos: a harmonia, o ritmo, o contraste, a proporção, a simetria, a métrica etc. constroem uma ordem própria, uma forma estética (ästhetischen Form), como Marcuse argumenta em o Ensaio sobre a libertação, que não se move meramente pela imanência do conteúdo e que presta contas apenas com as regras do próprio construto estético (alienação artística); ao contrário, ela transforma o que está dado, negando-o e penetrando-o com dimensões descartadas pelo princípio de realidade estabelecido, introduzindo a imaginação no mundo objetal, inventando outro com o recurso ficcional e denunciando as contradições e mistificações da sociedade estabelecida. Em outros termos, a arte mantém-se alienada em relação à práxis e somente continua denunciando a realidade se não for subsumida por ela, pela infraestrutura, pelas classes sociais, por este ou aquele estilo considerado mais engajado e revolucionário que outros; dessa forma, não perde a radicalidade e a tensão constituintes ao construto estético, continua valorizando a liberdade, a consciência, as novas sensibilidade e a economia libidinal com a preponderância de Eros, enfraquecendo as raízes do capitalismo nos indivíduos a partir dos recursos da memória, da imaginação, da fantasia e de uma nova cognição. A perspectiva marcusiana de preservar a autonomia da arte não trata, porém, de opor forma e conteúdo: a arte é parte da realidade e a sua forma se torna conteúdo, concomitantemente, ela está na realidade e a transcende imaginariamente, resguardando a possibilidade do ethos estético – alcança-se uma mimese crítica que remonta estilisticamente a matéria com o poder de desmistificar o dado, partindo-se dele e o reordenando. Não envereda, outrossim, pela qualificação como essencialmente afirmativa ou subversiva, mas por colocar em relevo, dialética e ambiguamente, os compromissos da arte com a ordem (expostos desde a década de 1930, em O caráter afirmativo da cultura) e com a crítica à ordem estabelecida à medida que explicita suas contradições: a catarse promovida pela obra de arte tanto dá ensejo à fruição no mundo estabelecido como o desmistifica e o denuncia como detrator das potencialidades individuais e sociais. Eis uma concepção, portanto, dialética, que lida com a afirmação e a negação, que marca a beleza tanto vinculada com a reconciliação como com a dissidência em relação ao status quo, a exemplo dos casos de Shakespeare, Baudelaire e Flaubert.

IV – Considerações finais

O projeto emancipatório pensado por Marcuse significa a superação do princípio de realidade vigente, o princípio de desempenho, pelo princípio de realidade que pacifique a existência, o ethos estético. O vigor da argumentação do Autor não está, apenas, na categorização da possível passagem entre tais princípios de realidade, não somente em mostrar as diferenças entre repressão e mais-repressão, entre sublimação e dessublimação repressiva, entre razão tecnológica/instrumental e razão pós-tecnológica, entre falsas necessidades e demanda por novas necessidades, entre indústria cultural e arte, entre velha e Nova Esquerda; em verdade, a riqueza com que executa o espírito e o método da Teoria Crítica e do Materialismo Histórico, muitas vezes para mostrar a petrificação do próprio marxismo em sua vertente ortodoxa, oferece a abertura e a necessidade de [re]fazer a teoria e manter sua relação com a práxis perenemente, a fim de vencer a crise da sociedade estabelecida e do pensamento dela expoente.

Tais preocupações ocuparam a produção marcusiana desde o seu início: por um curto período, antes de sua entrada do Instituto de Pesquisa Social, Marcuse procurou nexos entre Marx e Heidegger para, assim, evitar a hierarquização da sociedade e do indivíduo, do objeto e do subjetivo; contudo, a vereda foi interrompida em virtude do Autor notar que a historicidade do ser, na perspectiva heideggeriana, volta-se ao passado em lugar de ao futuro, pela redução fenomenológica nivelar tudo – consciência, fatos, percepção, fantasia – a um mesmo plano e configurar-se como destituída de crítica e por Marcuse ter recebido muito bem os Manuscritos econômico-filosóficos, de Marx, que permitiam tratar das questões ontológicas e individuais de acordo com documentos do próprio marxismo e sem cair no objetivismo dos partidos oficiais. As pistas deixadas por Nietzsche e, principalmente, o aprofundamento posterior da questão indivíduo-sociedade, à luz da Psicanálise freudiana, permitiram a Marcuse a autoria de uma perspectiva que amalgamava história, práxis, razão e sensibilidade para se pensar como as potencialidades de gratificação e de avanço das faculdades humanas poderiam se efetivar, bem como a demanda de transformação das organizações societárias em vigência. Marcuse incorporou, à tradição da pesquisa de elementos negativos que nascem na e da sociedade positivada, novas formas de revoltas contra a repressão; estas (além da imaginação e da fantasia), efetivadas pelos diferentes outsiders, desvelavam o retorno do reprimido e a oportunidade da superação dos problemas em vigência. 

Imaginava-se, entre o final do século XIX e o início do século XX, que o capitalismo alcançaria sua crise derradeira e entraria em colapso, hipótese refutada pela continuidade do modo de produção e de estratégias que garantiram sua sobrevida (imperialismo, várias formas de autoritarismos, capitalismo de estado etc.); contudo, em lugar de reproduzir os conceitos e de petrificá-los, colocando o próprio pensamento em crise, Marcuse oxigenou e reconstruiu a teoria, usando o espírito do Materialismo Histórico contra sua própria ossificação, contra o dogmatismo dos partidos que se declaravam marxistas: o Autor rompeu as fronteiras teóricas limitadoras do pensamento e abriu o diálogo crítico do Materialismo Histórico com a fenomenologia, a Psicanálise, a Antropologia, a Sociologia, a Linguística (mas não à guisa de um materialismo interdisciplinar e enciclopédico, uma vez que denunciou a dimensão instrumental e tecnológica das disciplinas e do conhecimento), as produções filosóficas de Kant, Hegel, Schiller, Nietzsche, não se entregou ao determinismo econômico e científico, nunca negligenciou a importância do indivíduo nem apartou a produção teórica da práxis. O Autor desenvolveu a tradição de pesquisa acerca da emancipação e nos convida a atualizá-la à medida que o espírito do Materialismo Histórico, da Teoria Crítica, além da própria realidade, estão abertos ao debate.

Não se pode pensar, por exemplo, que as condições para a emancipação são hoje, sob o neoliberalismo, idênticas aos do período em que preponderavam políticas keynesianas: qual é estatuto dos trabalhadores precarizados, dos trabalhadores superexplorados da periferia do capitalismo como agentes da transformação social qualitativa, dos movimentos das populações atingidas pelo austericídio nos países em que o estado de bem-estar foi desmontado, do movimento LGBTQIAPN+, das lutas antirracistas, das novas ondas do movimento feminista e suas formas de contribuição para a emancipação, de movimentos que demandam mais qualidade de vida em termos sociais e ambientais, a exemplo de pessoas que se organizam por estarem atingidas por barragens e de cicloativistas que sofrem com a violência viária das grandes cidades? Como concatenar as pautas específicas das demandas atuais à emancipação humana e como evitar que grupos tradicionalmente excluídos, ao alcançarem inserção nas instituições sociais, sejam alvos da dessublimação repressiva?

* Anderson Alves Esteves é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), doutor em Filosofia pela PUC-SP e membro dos grupos de pesquisa GPFPC (PUC-SP/CNPq) e GPEPS (IFSP/CNPq).

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O valor de volta à política

Renato Janine Ribeiro em apresentação do livro de sua autoria lançado pela Editora Unifesp

“A política voltará a ter futuro” é um título-aposta, que preciso justificar. Hoje vivemos o descrédito dos políticos e da própria política. É um fenômeno mundial. Se deixarmos de lado o papa Francisco, o Dalai Lama e a chanceler alemã Angela Merkel, que líderes democráticos temos no mundo, no começo de 2021? E notem que os dois primeiros são do campo espiritual: no plano da política propriamente dita, que por definição é leiga, restou apenas a dirigente da Alemanha, que aliás quando sair este livro já deverá ter deixado o poder, como anunciou. Restam governantes medianos, médios ou medíocres, na melhor das hipóteses; a maior parte é realmente ruim. É verdade que Rússia e China, dois países ex-comunistas que não são democracias, têm governantes acima da média; mas isso apenas prova que hoje faltam lideres às democracias.

(continue a leitura)

Já o descontentamento com a política pode se dever a muitas causas – até mesmo ao fato de que o mundo se democratizou. O descontentamento seria – paradoxalmente – fruto de um relativo sucesso? Como talvez meia humanidade hoje disponha de liberdade pessoal e política, já não a empolgaria lutar por mais, nem para si mesma, nem para os outros seres humanos a quem faltam essas liberdades.

A democracia, realizando-se – mas de forma banal, nada utópica – nos teria colocado frente a nossa própria banalidade: teríamos líderes medíocres, porque o eleitorado se reconhece neles. A frase célebre de Umberto Eco, segundo a qual a internet deu voz aos imbecis, implicaria que esses imbecis não queiram mais eleger pessoas que admirem, em quem se possam inspirar – mas sim os clones deles, imbecis. A mediocridade hoje é vista como sinal de autenticidade. Comparem, na França, Sarkozy e Hollande, em nosso século, a de Gaulle e Mitterrand, poucas décadas antes: um abismo separa os dois chefes de Estado que tinham noção da grandeza de seu país e os presidentes mais recentes (e que não foram os piores chefes de Estado de nosso século, notem bem).

Ou o descontentamento com a política pode decorrer, trivialmente, da crise econômica de 2008, que demorou a repercutir no Brasil mas, destruindo riquezas mundo afora, gerou uma queda generalizada do nível de vida. Nesta hipótese, a vida política se torna efeito da vida econômica. A confiança num líder derivaria do crédito com o qual ele irriga a economia, facilitando a compra de bens de consumo (o que desenvolvo num artigo deste livro). Já faz tempo se afirma um declínio do homem contemporâneo, que estaria indo de cidadão a consumidor. Parece que, finalmente, em nossos dias, a cidadania foi substituída pelo consumo – ou, pelo menos, se viu fortemente subordinada a ele. Se nosso nível de vida não subir o tempo todo, nos decepcionamos. Parece ser esse o principal critério para as pessoas decidirem o voto.

Não se trata de pessoas indignadas com a perda de seu nível de vida: elas se revoltam porque se frustrou seu desejo de terem sempre mais. Vivem na comparação: embora no Brasil os anos Lula tenham melhorado a vida dos miseráveis e pobres sem prejudicar os mais abastados, estes se sentiram diminuídos, muitas vezes, ao se compararem àqueles. Viveram uma perda de status, mas só por comparação. (Rousseau considerava isso o pior traço da vida em sociedade: o ser humano deixa de ser “homem da natureza”, o que traduzo simplificadamente como “ele mesmo”, do modo que nasceu, e passa a ser “homem do homem”, isto é, alguém incapaz de saber quem é e que só consegue se enxergar emprestando o olhar alheio).

Assim, estes anos se tornaram maus para a política. Ainda mais se eu tiver razão na hipótese que levantei, em meu livro A boa política, de que hoje política se torna sinônimo de democracia, isto é: em vez de política se referir a poder, e de o substantivo “poder” se dividir em democrático, ditatorial, despótico autoritário, totalitário, em suma, em várias espécies, somente haverá política (o regime no qual a força é substituída pela palavra, pela persuasão) em nossos dias quando houver democracia. Quer dizer: estes últimos anos também foram negativos para a democracia.

Por quê?

Há duas respostas possíveis.

1.

A primeira, sugeri acima, é que se teria chegado a certa satisfação com o que se obteve. Com metade da população mundial protegida da fome, da miséria, da opressão deslavada, o que essa maioria há de querer ainda? O pensamento liberal e o capitalismo – que sabe que não pode fornecer o melhor dos mundos imagináveis – promoveram uma desqualificação em regra da utopia. Ela passou a ser entendida como algo impossível, ou pior, negativo: porque, lutando por um homem melhor, se entraria no mundo da ditadura, do totalitarismo, da mentira.

Ora, se é inútil melhorar a sociedade, o que podemos esperar – além do consumo? Viveríamos numa “democracia resignada”. A cada tentativa de ir além, ouvimos a mesma resposta: é impossível. Muitos argumentos foram construídos para justificar tal mediocrização da política. Alega-se que o ser humano é egoísta e que o comunismo, querendo criar um “homem novo”, acabou produzindo contrafações, mentiras. Melhor, então, termos um homem egocêntrico, mas que respeite as leis e maximize seus ganhos, do que um homem que se diz melhor, mas, na prática, é pior. Nós nos deteríamos num saudável, ainda que enfadonho, meio termo. (E insistamos no enfadonho…).

Mas o erro dessa perspectiva é que só faz sentido se for contraposta a uma miragem, a um espantalho. Ela precisa desesperadamente do comunismo como contraponto. Daí que hoje, quando nada resta do comunismo no poder ou mesmo como alternativa de poder, haja quem denuncie como “comunismo” o que é simples social-democracia ou, mesmo, liberalismo. É o que faz a extrema-direita no Brasil, nos Estados Unidos, nos países em que chegou ao governo ou se tornou alternativa de poder, como na própria França, onde há um receio de que, por insistência, algum Le Pen acabe chegando à presidência… Daí que a própria ecologia, ou os movimentos por uma vida mais saudável mental e fisicamente, sejam desqualificados como totalitários, o que é puro absurdo.

Esse erro de concepção é, porém, muito eficaz, ao abortar voos maiores, ao manter a humanidade numa vida mesquinha, do ponto de vista espiritual e moral. Resumindo, o capitalismo triunfou ao custo de reduzir, o máximo que pôde, o alcance da democracia.

2.

A segunda resposta é que estejamos vivendo uma reação. Muitos estudiosos da sociedade já usaram a metáfora do coração, que alterna sístole e diástole. A um período de fechamento, segue-se um de abertura, e assim sucessivamente. Ocorre que se abriu muito o leque de liberdades. Houve quem se chocasse com isso. Com efeito, as mulheres se tornarem iguais em direito aos homens, os negros aos brancos, as diversas orientações sexuais serem aceitas, imigrantes se destacarem nas sociedades para onde foram – tudo isso aconteceu rapidamente.

Pensemos no casal: poucas décadas atrás, o homem era o chefe da família. Bastava ele se casar para ser investido numa série de poderes, entre eles o de definir o domicílio familiar (portanto, se quisesse mudar de casa ou mesmo cidade, poderia impor a mudança à esposa), para não falar numa quantidade de privilégios mesquinhos – como, por exemplo, a mulher só poder abrir conta bancária ou tirar passaporte com a permissão dele. O fim dessa prepotência é recente, e sucedeu praticamente de uma geração para outra. Então, um homem cujo pai mandava na mãe se casa hoje com uma mulher com quem precisa repartir todas as decisões, sem haver uma instância final que resolva todas as pendências.

Por milhares de anos, em todas as estruturas de poder, em caso de impasse, sabia-se quem decidia. Hoje, no casal, não há mais isso – ou há cada vez menos. E em outras relações de poder, como com os filhos, a mesma tendência se observa. Antes, o laço se mantinha a todo custo, porque um mandava. Hoje, não há mais esse Um que manda – não nas relações de amor, pelo menos. O impacto social dessa mudança é enorme. A quantos maridos seus pais não disseram, essas últimas décadas, que tinham de mandar na mulher, eventualmente até usando da força bruta? Só que isso, além de não funcionar mais, virou crime.

A reação então é exatamente isso: uma resposta reacionária. Diante do avanço da liberdade das mulheres, acumulou-se um rancor cada vez menos surdo dos que se sentiram diminuídos. Temos machos diminuídos, brancos diminuídos, ricos diminuídos (esses, nem tanto…), nativos “da gema” (como dizíamos das pessoas cujas famílias viviam havia muito tempo na mesma cidade ou Estado) ou “quatrocentões” (como se dizia dos paulistas cujas famílias imigraram há mais tempo para o Brasil) diminuídos. Confusamente, essas diminuições, essas humilhações com frequência mais imaginadas do que reais, se somaram. E, vindo uma crise econômica que debilitou o governo petista, o qual ficou diretamente associado a essas mudanças, e também o partido que antes governou o Brasil, o PSDB, que igualmente defendeu os direitos humanos, ambos foram assimilados como “imorais” e até mesmo “comunistas”, e o ódio envolveu a todos na mesma lama.

Se esta segunda resposta valer, estaremos diante de um período transitório de reação, como o que se chamou Restauração e dominou a Europa depois da derrota de Napoleão em 1814-15, mas depois ruiu. Em 1830, na França, o regime conservador foi substituído por uma monarquia burguesa, constitucional.[i] Em 1848, as revoluções que se alastraram pela Europa foram esmagadas na maior parte, mas mudaram decisivamente a forma de ver a política. No final do século XIX, restrições ao poder dos reis já valiam em muitos países. Espero, evidentemente, que não demoremos tanto tempo!

3.

Não demoraremos, pela simples razão de que o tempo se acelerou. O que tardava décadas hoje dura anos. Anos passam em meses ou semanas.

O que fazer? Depende do peso de cada uma das duas respostas que sugeri acima, mas as ações desejáveis convergem em ambos os casos. Se prevalecer a segunda possibilidade, isto é, se estivermos vivendo uma reação dos que neste mundo novo se sentem como peixes fora d’água, a retomada da onda democrática será questão de tempo. Lembro o plebiscito britânico sobre o Brexit: a saída do Reino Unido triunfou, mas graças aos mais velhos, mais interioranos, menos estudados.

O resultado de sua decisão é provavelmente irreversível – pelo menos por muito tempo – mas a verdade é que, se o plebiscito tivesse lugar dez anos depois, o eleitorado decidiria de outro modo. Como a igualdade tem crescido nos últimos tempos, dentro de alguns anos a reação reacionária (um pleonasmo proposital, para deixar claro de que se trata) se terá esgotado. Aqueles que escolheram o retrocesso perderão a parada. Terão causado sofrimento, às vezes agudo, mas não têm futuro.

E se valer mais a primeira resposta, isto é, o apelo democrático se tiver esgotado? Essa hipótese é mais grave. Mas sustento que, se ele se exauriu, foi porque se viu reduzido a um apelo medíocre, limitado, enfraquecido. Para a democracia vencer, ela abriu mão de muitas de suas potencialidades. Para ir direto ao ponto: a democracia parou na porta da empresa. Houve democratização na política, sim; no casal; até mesmo no amor e na família. Mas, lá onde o capital manda mesmo, democracia não houve. É o que temos de conquistar agora. Por um lado, manter a defesa e expansão da democracia no amor (que despertou os demônios da reação), por outro, assegurar que ali onde a maior parte das pessoas passa a maior parte de seu tempo – o local de trabalho – também aumente a liberdade.

Não será fácil.

“A política anda a passo rápido e, por isso mesmo, se a filosofia política quiser continuar discutindo apenas os grandes conceitos, terá dificuldade em apreender o que de fato acontece, o vivido imediato. Ou seja: temos que rever nossos grandes conceitos, acrescentar-lhes outros, aceitar o inesperado.

Mas tem que ficar claríssimo que para a democracia é essencial ela expandir-se. A democracia não é um regime do qual se possa dizer paramos aqui. Proclamamos a independência (no Brasil) ou ela e a República (nos Estados Unidos) e agora mantemos a escravidão. Fazemos democracia, mas só para os ricos, só para os brancos. Não, não: ela contagia. Stendhal percebeu isso muito bem, numa passagem que já citei em outro artigo – e a fantástica convergência conosco é que ele falava de um fenômeno brasileiro, a revolução de 1817 em Pernambuco: “A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, não se fez nada”. [ii]

4.

Os artigos aqui reunidos foram inspirados por um forte otimismo: o Brasil tinha consolidado a democracia e daí em diante apenas a fortaleceria. Hoje, vivemos um retrocesso que não consiste apenas na vitória do antipetismo, mas na da antipolítica, que levou PT e PSDB de roldão. A política foi substituída pelo ódio, e não apenas no Brasil.

Mas a política há de voltar. Ela tem futuro, melhor dizendo: o futuro depende dela. Por política, já afirmei que entendo a política democrática. Política não é mais uma palavra genérica que cobre todos os tipos de poder, inclusive os despóticos. Política não se refere mais a qualquer poder, mas à pólis, à organização de base em que os cidadãos decidem, em que o demos se faz ouvir. As crônicas que aqui reúno eram otimistas. Um moderado otimismo continua fazendo sentido. Isso depende muito de nós.

Comparo o período atual ao posterior à crise de 1929: também uma devastação econômica, à qual se seguem custos sociais elevados e o fortalecimento da extrema-direita. Contudo, hoje dispomos de (i) numerosos movimentos e organizações comprometidos com a melhora do mundo, (ii) um conhecimento sem precedentes dos problemas e de suas soluções. Assim, a grande questão agora é unir as forças favoráveis à democratização, não só da política como das relações macro e microssociais, bem como à sobrevivência de nossa espécie num planeta cuja natureza tem que ser respeitada. Eis nossa tarefa.   

5.

Este livro faz parte de uma espécie de tetralogia: quatro obras que têm em comum, embora em formatos bem distintos, o empenho em aplicar a filosofia política e outros conhecimentos das ciências humanas, em especial a história, à política tal como se faz; aplicar a teoria à prática, em especial à brasileira, que vezes sem conta é tratada, em nossa academia, mesmo  nas áreas de Humanidades e Ciências Humanas, como pouco digna da alta teoria; e, não menos importante, mudar a teoria a partir do confronto com o mundo político e social. Isso porque geralmente a filosofia política lida com altos conceitos, como soberania, representação, democracia, mas se ocupa pouco do frágil e tenso cotidiano da política, que é onde – numa sociedade democrática contemporânea – as coisas se jogam.

Houve uma mudança na temporalidade da política, que nem sempre a filosofia (política) levou na devida conta. Nos regimes não democráticos, o tempo fluía vagaroso. Um faraó, um rei podiam governar décadas. O poder não mudava muito de natureza ao longo de séculos. Hoje, a cada poucos anos há eleições – e não digo que elas sejam a causa da aceleração da política, podem ser sua consequência: a vida aumentou, muito, sua velocidade.

As instituições antigas, quando o poder descia em vez de subir, quando vinha dos Céus em vez de ascender do povo, eram mais sólidas. Já as nossas devem à vontade popular a pouca solidez que têm, mas enfrentam os sobressaltos da economia e a inconstância de seus elementos, que podem em poucos anos desfazer o que parecia consagrado. (Assim foi que o Brasil, em que a democracia parecia consolidada, veio dar no que deu).

A política anda a passo rápido e, por isso mesmo, se a filosofia política quiser continuar discutindo apenas os grandes conceitos, terá dificuldade em apreender o que de fato acontece, o vivido imediato. Ou seja: temos que rever nossos grandes conceitos, acrescentar-lhes outros, aceitar o inesperado.

Artigos escritos ao longo de quatro anos, toda semana, para um jornal sério me permitiram utilizar os conceitos que aprendi, somados a meu conhecimento histórico, para procurar entender o que estava acontecendo. Minha perspectiva não era a do cientista político nem a do economista, que geralmente são quem comenta a atualidade do poder no primeiro caderno dos jornais; não era do economista, por razões óbvias; a diferença com o cientista político pode ser mais difícil de estabelecer. Mas ela tem a ver com a relação com os conceitos e a temporalidade, como afirmei acima. E é claro que o teste dos conceitos na realidade levou-me a contestá-los, até mesmo modificá-los.

6.

Esta obra talvez devesse ter sido a primeira a sair da tetralogia mencionada, mas não é o caso. Ao longo de quatro anos, entre maio de 2011 e março de 2015, publiquei com absoluta liberdade uma coluna no Valor Econômico,em que discuti a política brasileira. Eram tempos de esperança, que coincidiram com o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff (no livro ora uso a forma presidente, ora presidenta; ambas existem em português; a segunda é abonada por Carlos Drummond de Andrade, o que me basta em termos de qualidade).

Escrever toda semana foi uma espécie de teste, de experiência para ver como os conceitos com que trabalhei a vida toda, na filosofia política e na ética, bem como no conhecimento de história que elas me obrigaram (com enorme prazer) a adquirir, funcionavam na prática. Não há frase do senso comum que eu deteste tanto quanto a teoria na prática é outra. Ela apenas significa que a teoria em questão é ruim. Tem que ser trocada. A prática é a grande fonte para as teorias, é o terreno também onde testá-las.

Aqueles também foram, para mim, anos de formação. Procurando entender o que acontecia na política brasileira por um viés que não é o do jornalista, nem o do cientista político, espero ter aprendido alguma coisa. Uma qualidade do intelectual, que me parece imprescindível, é estar sempre em formação: nunca parar de aprender, nunca parar de se surpreender.

A Boa Política, dos quatro livros o primeiro a aparecer (em 2017), inclui artigos anteriores a minha experiência de colunista, mas também a leva em conta. O objetivo principal dessa obra foi ver o que, em nossa cultura, brasileira e/ou latino-americana, destoa do mainstream do Atlântico Norte. Defendo há tempos a tese de que as teorias políticas hoje dominantes foram gestadas e aplicadas no território que coincide com a antiga OTAN, isto é, os dois países anglo-saxônicos da América do Norte (acho estranho que se inclua nesse subcontinente o México) e as nações da Europa Ocidental.

Lá nasceu, lá cresceu, lá prospera a democracia moderna ou contemporânea. Fora desse espaço podem estar a “maior democracia do mundo”, como é praxe designar a Índia, ou o Japão, potência econômica, bem como vários países da América Latina, mas todos nós temos diferenças específicas que não são devidamente consideradas na alta teoria democrática.

Pensando sobretudo no Brasil e por extensão na América Latina, tenho insistido no elemento afetivo, que é parte essencial de como vemos a política, seja sob a forma de um afeto autoritário (o nome de outro livro meu, em que testei esta questão usando, sobretudo, o corpus da televisão) ou de um afeto democrático, cuja construção pode ser a principal contribuição de nossa parte do mundo para a reflexão e a prática da democracia. Eu me explico: democracia e república, dois componentes essenciais do que chamo “a boa política”, são tratados de forma muito racional no pensamento do Atlântico Norte. Conseguir uma política democrática e republicana decorreria de um grande esforço por superar as tendências egocêntricas e particularistas, que seriam, pensam muitos, mais “naturais” ao ser humano.

A boa política seria uma construção laboriosa e racional. Já, quando a política se assenta nos afetos, ela tenderia a ser facciosa, parcial. O que sustento é que a democracia somente será forte se for capaz de democratizar os afetos: se ela se inscrever nos sentimentos, nas emoções. O que, por sua vez, dá sentido à educação (e a sua irmã, a cultura): são elas que podem gravar no mundo afetivo valores como a igualdade, a solidariedade, a decência. Ter sido ministro da Educação do Brasil, em 2015, obviamente me ajudou a pensar este ponto.

Tal ideia vem junto com a de que a democracia é um regime não só político, mas de convivência humana. Se na modernidade ela dizia respeito essencialmente ao Estado, aos poucos foi-se tornando cada vez mais pertinente à sociedade, isto é, às relações tanto micro quanto macrossociais. Tem que haver democracia no casal, na família, na amizade, assim como na empresa, no lazer – em toda a parte. E evidentemente tal necessidade colide com a realidade do capitalismo, que precisa, pelo menos, ser compensada por exigências sociais e legais que introduzam a democracia nas relações de trabalho.

A Pátria Educadora em Colapso (2018) é uma narrativa e análise do período de seis meses em que fui ministro da Educação, no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Eu já tivera uma experiência de gestão como diretor de Avaliação da CAPES, entre 2004 e 2008, mas isso não se compara à direção de um ministério importante: minha diretoria nos anos 2000 tinha um orçamento livre de 1 milhão de reais, em 2015 o MEC movimentava 140 bilhões… O importante, nesta posição, foi ver a política de um ângulo que o pensador independente dificilmente imagina. Aliás, sempre sustentei que uma das ideias mais fortes de Marx – e isso independe de você ser socialista ou não – consiste em enxergar os fenômenos políticos, sociais e econômicos do ponto de vista do poder.

É isso o que faz o marxismo ser diferente de um movimento reivindicatório, que pede (ou mesmo exige, isso não faz diferença) que o detentor do poder ceda ou faça alguma coisa: a questão marxista é tomar o poder e, a partir daí, fazer as mudanças que pretende. Não é se manter na posição pedinte, subalterna ou mesmo rebelde. É inverter radicalmente as relações de poder. Não digo que ser ministro seja propriamente ter poder; como desenvolvo no livro citado, não tínhamos dinheiro; isso enfraqueceu demais o governo Dilma e é a principal razão para ela ter sido destituída. Mas penso que a experiência do poder, forte ou fraca, faz falta a muita gente que pretende pensar a política ou a sociedade.

Assim, A boa política é a obra teórica, um livro de filosofia política, em que me empenhei em pensar a melhor política de nosso tempo e dos vindouros, utilizando em parte os clássicos da filosofia, em parte o que eu chamaria um estilo filosófico de lidar com a política. Tem em comum com este livro o otimismo, a convicção de que a democratização do mundo, inclusive do mundo da vida, das relações pessoais, é um caminho sem volta.

A Pátria Educadora em Colapso é um relato de minha experiência como ministro, bem podendo ser o anúncio da má política, ou de como a terra prometida se converteu em Armageddon. Ou, por outra: se A Boa Política é um livro de teoria descrevendo e talvez prescrevendo a prática, o presente livro é um esforço cotidiano, ao longo de quatro anos, para entender a política vivida, imediata à luz da filosofia. A Pátria Educadora em Colapso é o relato da queda de um anjo, este anjo sendo a democracia.

Ao mesmo tempo que terminava este livro, concluí uma obra mais  curta, sobre Maquiavel, a democracia e o Brasil; ela converge com as outras três: nela discuto como Maquiavel, falando dos príncipes novos, pode servir para pensar a democracia, na qual por definição todo governante é novo, devendo seu cargo à eleição; e também uso seus conceitos de virtù e fortuna, para pensar a ação política, exemplificando com os presidentes brasileiros de 1985 em diante.

7.

Estes artigos foram escritos num período otimista, em que os problemas, como os apontados nos protestos de 2013, pareciam ter solução – talvez difícil, exigente, mas já despontando no horizonte. Depois, tudo mudou. Mas penso que estas colunas continuam valendo: selecionei aqui apenas aquelas que a meu ver têm futuro. Retirei todas as que diziam respeito ao cotidiano da política e cuja publicação obedeceria mais a um critério de registro do que de atualidade. Com isso, pude manter atual este livro, que em vez de se reduzir a uma memória, um documento histórico, pode ajudar a inspirar o futuro.

São Paulo, janeiro de 2021.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade). https://amzn.to/3L9TFiK

Referência

Renato Janine Ribeiro. O valor volta à política – discutindo a política a partir da filosofia e da história. São Paulo, Editora Unifesp \ Edições SESC, 2023. 312 págs. [https://amzn.to/48XlUe8]

Notas

[i] Embora a Carta outorgada em 1814 por Luís XVIII previsse um Parlamento, a legislação posterior e a prática dos governos desse rei e de seu irmão e sucessor, Carlos X, foi autoritária. Somente com Luís Felipe, a partir de 1830, se pode falar em monarquia constitucional, comparável à britânica.

[ii] Como o texto é notável, traduzo-o por inteiro:

A admirável insurreição do Br[asil], talvez a maior coisa que pudesse acontecer, me dá as ideias seguintes:

A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, não se fez nada.

O único remédio contra a liberdade são as concessões. Mas é preciso empregar o remédio a tempo: vejam Luís XVIII.

Não há lordes, nem brumas, no Brasil.

Stendhal, “Débris du manuscrit”, referentes a Rome, Naples et Florence en 1817, in Stendhal, Voyages en Italie, ed. Pléiade, Paris: Gallimard, 1973, p. 175.

Neoliberalismo e mercado místico: o "despertar" mobiliza o discurso autoempreendedor

Paula Telles de Menezes Faro e Bruna Luiza de Camillo Allegretti, Revista Lumina, UFJF

O artigo investiga as aproximações entre o discurso da espiritualidade mística, centrado no significante “despertar”, e o discurso neoliberal, que tece a imagem do “empreendedor de si”. Partindo das críticas ao neoliberalismo de Safatle (2019; 2021), Brown (2019), Dardot e Laval (2016) e Fontenelle (2005; 2017; 2021), e dos estudos de Arjana (2020) sobre o mercado místico, trabalhamos com a hipótese de que o movimento de desenvolvimento pessoal e de investimento em um “capital espiritual” faz parte da racionalidade do “eu empresa” e de sua lógica de autorregulação e autoaperfeiçoamento.
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Consequência da perda de perspectiva e da insegurança social gerados pelo próprio sistema capitalista, o misticismo moderno, ao buscar uma saída ao sofrimento, acaba por reforçar sua lógica, alimentando o consumo de produtos, de serviços, de um estilo vida e uma identidade espiritualizados. Como metodologia de análise, além da revisão bibliográfica citada, utilizaremos a Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (2015). Como caso concreto, analisaremos como o “Despertar” aparece no discurso vinculado a Sri Prem Baba, guru brasileiro que ficou conhecido por seu método de autoconhecimento chamado de “o caminho do coração” e que foi alvo, em 2018, de denúncias de assédio sexual, abuso de poder e enriquecimento às custas das doações de praticantes.


Introdução

Com marco em 1947, na Sociedade Mont Pèrelin – reunião de filósofos, políticos e economistas que cunhou sua nomeação –, o neoliberalismo surgiu, nos termos foucaultianos, como uma dramática “reprogramação do liberalismo” (BROWN, 2019). Mais do que um modelo econômico, pode ser compreendido como um projeto político-moral “que visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do poder político democrático” (BROWN, 2019, p. 23). Para tanto – e esse é um ponto fundamental para compreendê-lo –, firma-se também como uma racionalidade, que tem como principal característica a concorrência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação (DARDOT; LAVAL, 2016). Assim, é possível entender o neoliberalismo como a razão do capitalismo contemporâneo (BROWN, 2019).

A ideia de uma racionalidade política, explicam Dardot e Laval (2016), que serve de base para a forma como os autores enxergam o projeto neoliberal, vem das pesquisas de Foucault sobre governamentalidade, ou seja, sobre os “tipos de racionalidade que são empregados nos procedimentos pelos quais se dirige [...] a conduta dos homens” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17). Nesse caso, podemos compreender “governo” não como instituição, mas como atividade de governar, como a forma pela qual os homens (que fazem ou não parte de um governo no sentido institucional) dirigem a conduta de outros homens. Governar, nesse sentido, não tem necessariamente relação com um ato disciplinar – e isso fica claro especialmente no neoliberalismo e com o surgimento do chamado 3º espírito do capitalismo.

Diante das “críticas estéticas” que se desenrolaram no fim dos anos 1960 e começo da década de 1970, reivindicando mais liberdade e autonomia (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2020), em oposição ao modelo rígido do capitalismo fordista e da empresa hierarquizada, o novo liberalismo se recriou assimilando a demanda de flexibilidade e de horizontalidade, passando da primazia da corporação tradicional burocrática para a da “empresa de si”, do autoempreendedorismo, no qual os sujeitos internalizam o modelo da empresa como forma de conduzir as diversas áreas da vida.

O “autogoverno”, analisado por Foucault, fica em evidência nessa forma de relação consigo mesmo, em que as “técnicas de si” se unem às técnicas de dominação (DARDOT; LAVAL, 2016). Trata-se de um tipo de governo, explicam os autores, que requer a liberdade, já que governa por meio dela, agindo “ativamente no espaço de liberdade dado aos indivíduos para que estes venham a conformar-se por si mesmos a certas normas” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 19).

Nesse sentido, Safatle (2019) reflete como o neoliberalismo, enquanto regime de gestão social e produção de formas de vida, foi implementado com base em uma psicologia do indivíduo neoliberal, com sua estrutura de afetos e sua economia libidinal. Fazendo um breve levantamento histórico, o autor explica que, diante do desmantelamento do estado de bem-estar social, com regimes de trabalho maiores e garantias salariais cada vez menores, tornava-se difícil para a sociedade capitalista manter sua coesão social e a adesão psicológica dos indivíduos com base no modelo protestante em que ócio e prazer são desvirtuosos e o trabalho é moralmente benéfico ao ser humano.

Não só a crítica estética pressionava em sentido oposto, como mencionado anteriormente, mas a própria insegurança social despertava insatisfação com essa lógica, já que o trabalho não era mais garantidor de uma vida digna. A ascensão da sociedade de consumo, com crescimento exponencial da circulação de novos e variados bens, também requeria a superação do “trabalhar e poupar”, com uma forma de lidar com as pulsões em que o desejo de comprar fosse permitido e incentivado. Uma lógica de satisfação parcial, mas nunca plena, das pulsões era necessária para manter a engrenagem capitalista em funcionamento (FONTENELLE, 2017).

Assim, as dinâmicas repressivas, explica Safatle (2019), deram lugar ao “ideal empresarial de si”, em que as próprias motivações para o agir – na vida, não só no trabalho –, que poderiam ser direcionadas a atividades improdutivas do ponto de vista do capital (como a arte ou a mobilização política), são assimiladas por esse novo papel socioeconômico e por uma nova forma de gerir conflitos psíquicos.

Safatle (2019) esclarece que essa mudança no discurso capitalista teve início com a humanização do modelo empresarial, em que as próprias corporações criaram uma “zona intermediária entre técnicas de gestão e regimes de intervenção terapêutica, com um vocabulário entre a administração e a psicologia” (SAFATLE, 2019, p. 109). O autor explica como termos, tanto morais quanto psicológicos, passam a “colonizar” as múltiplas esferas da vida por meio do discurso econômico (SAFATLE, 2021). O sujeito empreendedor de si passa a se observar e a se autorregular, buscando não só sua melhor performance profissional, mas “sua melhor versão”, termo comum no universo do desenvolvimento pessoal. A intensificação do desempenho e da performance se transformou em modo subjetivo de gozo.

Para isso, explica Safatle (2021), foi necessário internalizar um trabalho de constante vigilância e controle, com autoavaliação de si baseada em critérios do mundo da administração de empresas. Os conflitos são traduzidos em termos de custos e benefícios, com a “destituição completa da gramática do conflito e da contradição objetiva” (SAFATLE, 2021, p. 25). Para isso, esclarece o autor, tratava-se de “levar sujeitos a não se verem mais como portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como operadores de performance, otimizadores de marcadores não problematizados” (SAFATLE, 2021, p. 25).

Assim, as ações seguem a “lógica de investimento e retorno de capitais” e os afetos são “objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de ‘inteligência emocional’ e a otimização de suas competências afetivas” (SAFATLE, 2019, p. 109). Nesse sentido, a própria noção de desenvolvimento espiritual, que não tem necessariamente relação com religiões institucionalizadas, pode ser entendida como investimento em um “capital espiritual”.

Já do ponto vista do consumo, Fontenelle e Pozzebon (2021) vão refletir sobre a emergência do cidadão como consumidor no atual momento da sociedade capitalista, uma espécie de substituição da cidadania como era originalmente compreendida (como um conjunto de direitos, responsabilidades e formas de participação social) por uma na qual o ato de consumir e a relação de consumo são protagonistas. Fazendo um retrospecto dos estudos a esse respeito e indicando a lacuna que ainda há nas perspectivas críticas, as autoras relembram as primeiras abordagens que pensavam o consumidor e suas escolhas de consumo ou as críticas a práticas abusivas de mercado. Tratava-se de pensar o cidadão-consumidor ou o consumidor-cidadão. A nomenclatura não é só uma escolha: pensar o cidadão que consome ou o consumidor que também é cidadão não problematiza o contexto atual no qual o cidadão se relaciona com o estado e o domínio público a partir da perspectiva privada do consumo – por isso, as autoras defendem o uso de “cidadão como consumidor” (FONTENELLE; POZZEBON, 2021).

Dentre as implicações políticas e sociais dessa configuração, as autoras questionam as limitações em termos de mudanças em prol de um bem-estar coletivo quando o ativismo dos indivíduos se estabelece em torno do consumo. A ideia de consumir produtos mais naturais ou cruelty free, por exemplo, que se tornou tendência bastante midiatizada, pode ser questionada sob essa perspectiva. Esse é um movimento que permeia o mercado místico e que corrobora com a manutenção de uma cultura do consumo – ainda que este se dê em outros termos. Como as democracias ocidentais foram redefinidas pela lógica neoliberal, explicam Fontenelle e Pozzebon (2021), e como o consumidor é a forma neoliberal de cidadania, espécie de “forma ideal” desse sistema, o indivíduo passa a buscar no mercado a solução dos seus problemas. Veremos como isso ocorre no mercado místico, em que certos tipos de produtos e serviços, além de um certo estilo de vida, é consumido muitas vezes para suprir um lugar de insegurança, solidão ou sofrimento – causado pela própria hegemonia do capitalismo.

É importante lembrar, ainda, que a liberdade em termos liberais, ou seja, a liberdade de consumir e a autonomia nas formas de trabalho, incorporação da crítica estética pelo neoliberalismo, que agora exibe sua flexibilidade, não chega aos mais pobres. Fontenelle e Pozzebon (2021) comparam esse cidadão como consumidor ao membro de um clube. Nem todos os indivíduos têm a mesma voz: aqueles que podem escolher e pagar têm determinado acesso, enquanto muitos seguem com acesso restrito – e com a primazia do privado e a precarização do público, muitas vezes sem nenhum acesso. Além da privação a serviços básicos, quem não pode pagar só se sente cidadão quando consegue consumir, já que o Estado se relaciona com os indivíduos pela via do consumo.

Assim, perpetua-se a lógica neoliberal. Podemos acrescentar a isso o fato de que a suposta autonomia é questionável: quando um serviço de carro por aplicativo, por exemplo, exibe a possibilidade de seus “colaboradores” fazerem o próprio horário, mas paga a eles uma quantia ínfima, sem nenhum direito a descanso, férias ou cobertura a acidentes e imprevistos, a necessidade de trabalhar longas jornadas para receber um salário que supra as demandas básicas tomam o lugar da possibilidade de escolha do tempo de trabalho.

Além da questão do consumo, Fontenelle (2005) investiga também o que chama de “trabalho da ilusão” no capitalismo contemporâneo. Buscando entender a subjetividade que corresponde à “sociedade das imagens”, a autora explora como hoje estamos numa espécie de primazia da imagem, em que esta não tem necessariamente relação com um produto, como podemos ver no consumo de imagens em redes sociais como o Instagram. A força da imagem, explica a autora, passa a ser uma força produtora de valor.

Partindo do conceito marxista de “fetichismo da mercadoria”, Fontenelle (2005) pensa o “fetichismo da imagem” como um recrudescimento do primeiro, já que é uma espécie de fetiche sem a mercadoria. Esse processo estaria relacionado também à atual “economia do acesso”, em que a propriedade é substituída pelo acesso e o que se vende é a experiência, mais do que um produto. A autora explica que esse consumo da experiência já se desenvolve há um tempo, mas, hoje, o que se vê é a hegemonia da experiência por si só. Assim, “já não é mais necessário ater-se à propriedade dos bens que se queira gozar. Basta acessá-los e pagar por isso o preço do serviço” (FONTENELLE, 2005, p. 6).

Podemos encontrar alguns exemplos em serviços de carros por assinatura, que oferecem a possibilidade de ter um carro zero todo ano, ou nas plataformas de streaming. Já não é necessário ter a posse do carro ou baixar/comprar um filme, basta pagar uma mensalidade para usufruir desses produtos. A relação entre economia do acesso, valor da experiência e fetichismo da imagem, desenvolvida pela autora, nos leva à questão da ilusão. Ocorre que a nova configuração sociocultural pela imagem gera uma exposição absoluta da ilusão e a produção de valor é manejada na organização social de ilusão, que se torna um modo social de produzir.

Partindo do pensamento de Freud, Fontenelle (2005) elabora: o sujeito sabe que consome ilusões, mas age como se não soubesse, tornando-se parte de uma economia do acesso cuja hegemonia é o consumo da experiência, ou seja a:

[...] busca por experiências psicoespirituais e pela ressensibilização do corpo (pela via sensorial), seja em que campo mercadológico for. Portanto, seja mediante o acesso (sem que ocorra a propriedade do serviço), ou através da compra de alguma mercadoria, o que está em jogo é o “valor da experiência”, especialmente atrelada a uma experiência psicoespiritual ou sensorial. (FONTENELLE, 2005, p. 9)

Do ponto de vista da psicanálise, é possível compreender essa busca como um movimento de reencontro com desejos e pulsões intrínsecas ao sujeito, que passam pela conexão com o corpo e que requerem o contato com ambuiguidades e zonas de indeterminação, nos termos de Safatle (2019). Ocorre que a apropriação da experiência do corpo pelo neoliberalismo, direcionada a mercados como o místico, que veremos a seguir, obedece aos preceitos identitários e ao consumo de um estilo de vida, o do “Despertar”, por exemplo.

Mercado místico

Sophia Rose Arjana, em Buying Buddha, Selling Rumi – Orientalism and the mystical market place, define e investiga o que chama de “mercado místico”, pensando nos discursos orientalistas e capitalistas que recriam um oriente imaginado e exotizado a partir da descontextualização de práticas e elementos provenientes de culturas e religiões como o islamismo, o budismo e o hinduísmo. Para ela, convivemos hoje com uma espiritualidade mística, definida como a procura por sentido na modernidade fora da religião institucionalizada, que envolve também a busca de benefícios para a saúde física, emocional e psicológica do indivíduo através do uso de práticas religiosas (ARJANA, 2020).         

A autora entende essa espiritualidade como fruto de relações coloniais, explícita nessa relação com o oriente pautada na experiência ocidental (especialmente estadunidense e europeia), e como uma pretensa resposta ao que chama de “problemas da modernidade”, como a falta de sentido, de uma certa “magia” que mobilize o agir – sendo muitos deles frutos do sistema capitalista. O discurso orientalista é formado pelos poderes político, intelectual, cultural e moral, constituindo-se como um conhecimento ontologicamente inalterável que opera sobre e torna-se o objeto mesmo (SAID, 2018). O conhecimento é administrado pela sociedade, diz Said (2018, p. 79), “é regulado primeiro pelos interesses locais de um especialista, mais tarde pelos interesses gerais de um sistema social de autoridade”.

As próprias representações visuais na mídia contemporânea, explica Arjana (2020), reforçam a base orientalista da imaginação ocidental. Junto à argumentação de Said (2018), a autora nos lembra como, nesse processo, o Oriente fictício se torna o verdadeiro Oriente na mente do colonizador. Arjana (2020) chama de muddled orientalism o discurso que permeia essa abordagem, que não só é orientalista, conforme definição de Said (2018), mas também envolve um mix de elementos, apresentando-se no mercado por meio das chamadas “práticas holísticas”, do turismo místico, da venda de produtos ou serviços relacionados à yoga, à ayurveda, ao fitness espiritualizado, entre outros. Trata-se, ainda, de um imaginário orientalista reforçado pela mídia contemporânea, por celebridades e influenciadores digitais.

Assim, explica Arjana (2020), o processo de colonização do qual parte o misticismo moderno caracteriza-se por uma mistura de imagens, termos e coisas de um oriente imaginado; além de partir de um “colonialismo cultural”, definido como a captura da cultura, da religião ou tradição do outro sem que se faça referência a ela, se participe ou se identifique com ela. As consequências dessa apropriação podem ser violentas tantos às pessoas que participam quanto às próprias religiões, como é possível ver em escândalos sexuais envolvendo gurus como Prem Baba – fatos que envolvem, ainda, um orientalismo generificado, em que há forte identificação da autoridade religiosa com a masculinidade e em que a relação de poder se dá com base no recorte de gênero.

Junto a isso, conceitos do hinduísmo, budismo e islamismo, como dharma, karma e moksha são simplificados, descontextualizados e apropriados equivocadamente, sujeitando essas religiões a regimes de poder.

No mercado místico, esse imaginário e seus símbolos religiosos tornam-se ferramentas para vender produtos, que apresentam ao consumidor a promessa de respostas para os sofrimentos da vida e os problemas da modernidade. É possível relacionar esse ponto ao que Safatle (2021) entende como a gestão do sofrimento psíquico própria do neoliberalismo, que muitas vezes inclui medicalização e uma negação dos conflitos intrínsecos ao indivíduo, mas que pode incluir também o apelo a uma solução transcendental. Para o autor, a racionalidade neoliberal requer um modo específico de lidar com o sofrimento e o mal-estar. A gestão da vida no modelo da empresa, com suas decisões, riscos, custos e benefícios, estabelece uma vida psíquica no interior do liberalismo, que nos termos de Butler (2017) poderíamos entender como “a vida psíquica do poder”, incluindo premissas sobre o sofrimento psíquico e indicações de tratamento. Por isso, é preciso considerar o

[...] neoliberalismo não apenas como uma teoria sobre o funcionamento da economia, desenvolvida entre 1930 e 1970, por Von Mises, Hayek, Friedman e Becker, mas também como uma forma de vida definida por uma política para a nomeação do mal-estar e por uma estratégia específica de intervenção com relação ao estatuto social do sofrimento. Essa forma de vida articula moral e psicologia, economia e direito, política e educação, religião e teologia política, propondo um tipo de individualização baseado no modelo da empresa. (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 11)

A saída mística, com comoditização do imaginário budista, islâmico e hindu pelo misticismo moderno, está diretamente conectada com as ideias de saúde e bem-estar da cultura ocidental. Por isso, práticas corporais ligada à filosofia oriental, como o yoga e o tai chi chuan, tornam-se, no ocidente, ginástica, exercício para fortalecimento muscular ou para o equilíbrio físico e psíquico. Essas experiências satisfazem, ainda, a necessidade de as pessoas escaparem do estresse da vida moderna através da vivência e dos sentidos, algo já apontado na tendência às experiências psicoespirituais detectada por Fontenelle (2005).

Junto às experiências, ou à chamada “economia do acesso”, vinculam-se produtos e imagens, como também destaca a autora ao analisar o fetichismo da imagem. No caso do mercado místico, explica Arjana (2020), Buda, Flor de Lótus, Rumi ou Shiva tornam-se significantes flutuantes, que contribuem, ainda, ao turismo místico, a programas fitness, filmes e histórias em que o oriente existe como um lugar exótico. Essa estética, mistura de imaginários de lugar nenhum, serve à mercantilização das religiões orientais, que são rearticuladas e vendidas como verdades, tornando-se capitais. Para o indivíduo que consome, vão compor seu “capital espiritual”.

Arjana (2020) explica que exemplos como os festivais Hanuman e Burning Man, bastante conhecidos nos EUA, explicitam a forma como o misticismo moderno se insere no mercado, oferecendo a seus participantes um local onde possam se transformar a partir da experiência do “Despertar”, seja através de práticas como o yoga, do ayuverda ou da música, nutrindo-se da conexão de uma comunidade colaborativa. “Despertar” é um significante-chave nesse discurso e costuma ser usado como uma espécie de “momento de virada” na evolução pessoal e espiritual, o momento em que se admite e se investe no capital espiritual.

A “jornada do despertar”, nesse sentido, é um caminho de evolução não muito diferente daquele que prega o discurso do sucesso financeiro e profissional: um caminho ascendente, de autoaprimoramento. Da mesma forma, explica Arjana (2020), palavras como espiritualidade, espírito e espiritualismo são códigos para o misticismo, em uma abordagem ampla e “holística” que vai além da religiosidade e é sustentada pela força criativa do orientalismo.

Assim, o misticismo moderno, sob a influência do capitalismo, é um projeto que inclui o autoaperfeiçoamento e a pretensão a novas identidades, fazendo da comodificação do corpo um elemento fundamental dessas práticas (ARJANA, 2020). Une-se a isso a cultura midiatizada das celebridades e do fitness, especialmente nas redes sociais digitais, em que praticantes ou até coachs do desenvolvimento pessoal tornam-se influenciadores digitais. A mistura de indústria terapêutica e negócio de religiões, explica Arjana (2020), oferece aos consumidores um estilo de vida místico, pautado em uma estética oriental.

Diante dessa reflexão, o problema, para Arjana (2020), não é a constatação da perda da magia que um dia habitou o mundo e que move as pessoas, nem a busca pelo deslumbramento que ainda é proporcionado pelo oriente – isso é dado. A questão seria explicitar como a força do orientalismo, um legado histórico ainda presente, se manifesta e está sujeita ao poder hegemônico do capitalismo.

Prem Baba e o “Despertar”

Escolhemos Sri Prem Baba para ilustrar a reflexão teórica proposta por se tratar de um guru brasileiro cuja trajetória foi exposta midiaticamente graças a diversas acusações de abuso sexual e abuso de poder. O líder, cujo nome de batismo é Janderson Fernandes de Oliveira, começou sua trajetória em 1999 [2], ocasião em que havia deixado a faculdade de Psicologia e dedicava-se a uma clínica de terapias alternativas, como massoterapia e acupuntura. Após passar um período na Índia aprendendo com um guru da linhagem hinduísta Saccha, voltou como Sri Prem Baba (“Prem”, em sânscrito, seria “amor divino”, e “Baba”, “pai”).

Com sua ascensão enquanto guru, especialmente por sua proximidade com celebridades como Bruna Lombardi e Reynaldo Gianechini, Prem Baba criou grandes espaços para retiros no Brasil, um deles em Alto Paraíso de Goiás, local bastante conhecido pelo turismo místico, e outro em Nazaré Paulista. Awaken love, ou Despertar do Amor, foi o nome dado à sua marca. Como mostra reportagem da Época de 2018, momento em que os escândalos sexuais vieram à tona, o patrimônio de Janderson Oliveira, em pouco mais de duas décadas, passou a englobar uma rede complexa de empresas, dentro e fora do país, sendo, à época, proprietário ou sócio de oito empresas no Brasil e de uma empresa de turismo na Índia. Hoje, ao buscar por Awaken love, não é mais possível encontrar as empresas do guru. Possivelmente, seu branding foi redesenhado após a exposição midiática negativa para tentar reverter a crise.

Atualmente, Prem Baba possui 180 mil seguidores no Instagram e se identifica como: “Mestre espiritual, escritor best-seller e professor na @djaago Academia do Despertar” [3]. Como consta na descrição, hoje o guru está vinculado explicitamente apenas à Djagô, que se apresenta como “portal de conhecimento construído a partir da metodologia de autotransformação criada por Sri Prem Baba” [4]. O método do líder, de acordo com a reportagem, mistura “psicologia, experiências da ayahuasca na linha cristã do santo-daime, práticas de ioga e lições de mestres orientais” (DAL PIVA, 2018, On-line).

Examinaremos como o significante “despertar” aparece na comunicação de Prem Baba e suas empresas e como se estabelece a relação entre o significante e o imaginário de autoaprimoramento. Localizamos a palavra, de início, na apresentação do site, como assinatura e slogan da empresa: “Djagô Academia do Despertar – Comprometa-se com o seu despertar”. A escolha do termo “academia” pode ser entendida como uma tentativa de validação desse discurso pelo conhecimento científico ocidental, bem como uma busca por desassociar a sua figura deste misticismo que ficou marcado pelas acusações.

Da mesma forma, sua imagem passou de um guru indiano de bata, barba e cabelos longos, para a de um professor de aspecto minimalista que nos lembra Steve Jobs ou um empreendedor alternativo de start-ups. A ideia de comprometer-se com o próprio despertar remete à lógica de autorresponsabilização do indivíduo sob a hegemonia neoliberal, em que a cura para o sofrimento deve ser encarada como uma questão individual, para a qual o mercado místico oferece soluções, como os cursos, palestras e retiros de Prem Baba. Por uma assinatura que custa, atualmente, R$ 197 reais por mês, é possível ter acesso a todo o conteúdo do guru. Dentre o que consta no site como “o que você vai receber?” (ao assinar), lê-se ainda: “experiência de conexão sistêmica com ensinamentos profundos e desmistificados que promovem a autotransformação e autonomia no processo de expansão da consciência e despertar” e ainda “chegou a hora de você saber de você”.

Analisando mais a fundo os termos, dentro do paralelo teórico traçado anteriormente, enquanto “experiência” e “conexão” se relacionam com a busca pelas experiências psicoespirituais e de comunidade, conforme apontado por Fontenelle (2005), a ideia de “autotransformação” e “autonomia” faz coro com a lógica neoliberal de autoaperfeiçoamento em prol de uma evolução pessoal. Nesse caso, a tradicional ideia de “sucesso” é substituída pelo “despertar” e esta passa a funcionar como significante vazio que amarra o discurso.

Laclau e Mouffe (2015) chamam de “ponto nodal” esse conceito que, ao costurar certo discurso, atribui sentido aos outros significantes inclusive retroativamente, sendo uma espécie de cola simbólica da articulação discursiva. Neste caso, o discurso místico-empreendedor de Prem Baba tem, no despertar, a chave de construção simbólica na qual autoaprimoramento e investimento no self espiritualizado, ou seja, acúmulo de capital espiritual, equivale a uma espécie de evolução moral. Nesse sentido, a autonomia ainda responde ao que vimos das críticas estéticas assimiladas pela reprogramação liberal, em que a flexibilidade e a possibilidade de traçar seu próprio caminho aparece como um grande diferencial perante a rigidez dos sistemas anteriores – e, nesse caso, inclusive perante à rigidez das religiões institucionalizadas, como o catolicismo.

Apesar de Prem Baba esclarecer, em seu site pessoal, que “o despertar espiritual não significa isolamento, mas a consciência e a atenção de estar presente em todas as tarefas que realizamos” [5], o guru não opõe “isolamento” a “coletividade” ou “comunidade”, o que poderia levar a uma lógica diferente do individualismo liberal. Assim, o “despertar” fica também a cargo de hábitos individuais: as “atividades que realizamos”, desde que realizadas com “consciência” – significante vazio também bastante presente no discurso da espiritualidade mística, espécie de “ética” de vida que, entretanto, segue no foro privado. Não surpreende que, sob a hegemonia neoliberal, os discursos de grande visibilidade no campo da espiritualidade obedeçam aos mesmos preceitos. Isso porque, como nos lembra Safatle (2021), trata-se de um sistema como efeitos produtivos, tanto de formas de vida quanto da gestão do sofrimento.

A força do neoliberalismo é performativa. Ela não atua meramente como coerção comportamental, ao modo de uma disciplina que regula ideais, identificações e visões de mundo. Ela molda nossos desejos, e, nesse sentido, a performatividade neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação e produção do sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de vida por meio dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios, e não apenas o que eles representam de si próprios. (SAFATLE, 2021, p. 11)

Ao defender que os modelos socioeconômicos são modelos de governo, como já havia antecipado Foucault, Safatle (2021) aponta para as formas de gestão social de subjetividades, que, como dito anteriormente, instauram “modos subjetivos de autorregulação” (SAFATLE, 2021, p. 33). Tal autorregulação, espécie de “subjetividade própria a um esportista preocupado com performances” (SAFATLE, 2021, p. 11), aparece no caminho da evolução espiritual.

Soma-se à dinâmica de autoaprimoramento uma relação guru-discípulo que é ainda mais delicada em um país como o Brasil, cuja tradição colonial e a tendência ao messianismo (cf. DELLA CAVA, 1975) tendem a alçar “mestres” (sempre no masculino) à posição de detentores de verdades absolutas. Assim, apesar de não surpreender, uma questão se mostra problemática: diferentemente do discurso do “sucesso”, que não promete a “cura” do sofrimento nem se autointitula moralmente elevado, o discurso da espiritualidade mística se apresenta como isento de ambição, moralmente virtuoso e estabelece, ainda, uma relação com a crença de seguidores que envolve uma dinâmica de poder – que inclusive explica tantos abusos psicológicos e sexuais.

Considerações Finais

Buscamos, no presente artigo, traçar aproximações entre o neoliberalismo e o chamado “mercado místico”. Com a hipótese de que o movimento de desenvolvimento pessoal e de investimento em um “capital espiritual” faz parte da racionalidade do “eu empresa” e de sua lógica de autorregulação e autoaperfeiçoamento, iniciamos nossa exposição retomando o surgimento do projeto neoliberal, bem como sua atuação enquanto racionalidade, ligada aos estudos de governamentalidade empreendidos por Foucault.

Além de modo de governo, no sentido de condução da ação de outros homens, o neoliberalismo instaura também novos modos de reconhecer e pleitear cidadania com base no consumo e no modelo da empresa e do acesso. Enquanto discurso, articula a racionalidade autoempreendedora como modo de agir no sistema visando sucesso e ascensão no caso do nosso objeto, ascensão espiritual.

Para relacionar os estudos sobre neoliberalismo com a ideia de uma espiritualidade mística, trouxemos a pesquisa de Arjana (2020), que trata do mercado místico enquanto produto e produtor de um orientalismo confuso, que recria um oriente segundo experiências colonizadoras ocidentais e o faz de maneira opaca e “confusa”, em uma espécie de mosaico de elementos e termos descontextualizados, como Buddha, Rhumi, flor de lótus, kharma, dharma e o próprio “despertar”, se pensarmos em nosso objeto. Tais elementos simbólicos, para além de apropriação cultural, tecem uma cadeia significante, reconstruindo um oriente exótico para vender no mercado místico global, que se manifesta com especial relevância no ocidente com a hegemonia capitalista e, podemos dizer, mais ainda na periferia ocidental, em países como Brasil e na América Latina, que, diante de altos níveis de desigualdade e desemparo do Estado, recorrem ao misticismo moderno como o fazem com a religião, à procura de acolhimento, suporte e pertencimento. Com a perda de direitos trabalhistas em prol de uma suposta autonomia de trabalho e com o fim do estado de bem-estar social, o sistema neoliberal deixa a cargo da religiosidade e da família (núcleo privatizado da vida coletiva) a função de amparar o cidadão-consumidor. Escolhemos para ilustrar nossa argumentação o caso de Sri Prem Baba, guru brasileiro que ficou conhecido por seu método de autoconhecimento chamado de “o caminho do coração” e por sua marca Awaken Love, ou Despertar do Amor, em tradução livre, mas que foi alvo de diversas acusações de abuso sexual, de poder e lavagem de dinheiro em 2018, tendo que redesenhar sua marca e sua imagem. Partimos da sua descrição no Instagram e do site de sua nova marca, Djagô Academia de Ensinos, para compreender como o “despertar” aparece como ponto nodal do seu discurso, que se relaciona ao campo discursivo da espiritualidade mística. Tal significante relaciona-se, ainda, com outros como “experiência”, “conexão”, “autotransformação” e “autonomia”, em uma cadeia de sentidos que endossa a hegemonia neoliberal. Enquanto “sucesso” é a meta do eu-empresa liberal, o “despertar” é o ponto de virada do sujeito espiritual, cujo capital deve ser acumulado no sentido da ascensão e iluminação. A perversidade nesse discurso, diferentemente do sucesso material, é a promessa de cura e de um caminho moralmente isento de ambição.

A inversão de sentidos atua no próprio ponto nodal: o despertar transforma, simbolicamente, o que é autoaprimoramento em autoabnegação, criando a ilusão de iluminação espiritual e moral, evoluída dos sentidos “terrenos”, como a própria ambição, no mesmo momento em que traça um caminho de constante investimento em si mesmo. Nesse sentido, sucesso neoliberal e espiritual atuam juntos em prol do consumo de produtos e serviços, de um estilo de vida e de uma identidade espiritualizados.

Notas

[1] Disponível em: <http://bit.ly/3TfFYnp>. Acesso em: 20 jun. 2020.

[2] Disponível em: <https://www.sriprembaba.org/>. Acesso em: 8 dez. 2023.

[3] Disponível em: <https://www.instagram.com/sriprembaba/>. Acesso em: 20 jun. 2022.

[4] Disponível em: <https://djago.com.br/academia-do-despertar/>. Acesso em: 21 jun. 2022.

[5] Disponível em: <https://www.sriprembaba.org/>. Acesso em: 22 jun. 2022.

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# Link para acesso à versão original publicada pela revista Lumina, da Universidade Federal de Juiz de Fora

Como a precarização devastou a democracia

Esta é a introdução do livro A angústia do precariado – Trabalho e solidariedade no capitalismo racial, de Ruy Braga, publicado pela Editora Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras. Clique aqui para expandir a postagem

Washington e Henry Ford são os símbolos da civilização americana.
E, no geral, esse julgamento instintivo está correto.
C. L. R. James, American Civilization
(Cambridge, Blackwell, 1993)

Desde o ataque ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, tornou-se lugar-comum afirmar que as instituições responsáveis pela regulação da democracia liberal encontram-se sitiadas por vândalos movidos a fake news. Ressalvadas as diferenças, a tentativa de golpe de Estado em Brasília provou dois anos depois que a ameaça autoritária não mais se contenta em desmantelar por dentro a ordem democrática liberal. Lá e cá, enquanto o compromisso da esquerda e da centro-esquerda com o socialismo democrático permaneceu silente, a extrema direita seguiu trombeteando seu desejo de abater o regime político liberal a tiros, pouco importando se de colecionador, atirador desportivo ou caçador.

Imediatamente após o fracasso da intentona bolsonarista, as opiniões se alinharam aos campos aglutinados pela polarização política vigente no momento. Enquanto muitos apontaram para o perigo do fascismo, outros tentaram atenuar a ação golpista evocando o sacrossanto direito à liberdade de expressão. Se os distúrbios em Brasília e em Washington não nos lançaram no abismo autoritário, ainda assim parece claro se tratar de dupla historicamente extraordinária, devendo ser tratada com a devida atenção.

Acompanhando Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, diríamos que, quando as instituições da democracia liberal se mostram vulneráveis a ataques externos, é porque elas já sofrem um acelerado desmanche interno1. Outrora protagonistas da cena política, os partidos carecem de poder para implementar programas que respondam às angústias de seus constituintes. Em diferentes sociedades nacionais, é possível perceber que forças progressistas, a fim de ampliar seu contingente eleitoral, têm avançado sistematicamente rumo ao centro, tentando atrair eleitores conservadores, enquanto enfrentam uma extrema direita cada dia mais racista e reacionária, capaz de amealhar inusual apoio nas classes subalternas[2].

O resultado dessa crise de hegemonia[3] pode ser observado por toda a América Latina: a consolidação de uma polarização assimétrica, que opõe um progressismo vacilante a seus determinados inimigos da extrema direita. Trata-se de um quadro bem diferente daquele verificado no passado recente. Entre 1998 e 2016, por exemplo, apesar das amarras neoliberais, um ciclo politicamente progressista favoreceu diferentes governos de centro-esquerda na América do Sul4. Empregando alguma “contabilidade criativa” seria possível incluir até mesmo os governos de Barack Obama nessa “onda rosa”[5].

No entanto, após a eleição de Donald Trump, a restauração conservadora tomou conta da região. Momento culminante da nova vaga, a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 marcou igualmente seu ponto de inflexão. A partir de então, insurgências plebeias na Bolívia, no Chile, na Colômbia, em Honduras e no Peru impulsionaram vitórias eleitorais de forças progressistas no subcontinente, enquanto governos neoliberais fracassados na Argentina e no México ajudaram a revitalizar projetos centro-esquerdistas nesses países[6].

As vitórias de Joe Biden em 2020 e de Lula da Silva em 2022 sugerem que a “normalidade” política parece estar retornando às maiores democracias liberais do continente. No entanto, as estreitíssimas margens de suas respectivas vitórias anunciam que o fantasma da extrema direita seguirá assombrando as Américas por um bom tempo. No Chile, por exemplo, logo após a vitória de Gabriel Boric na eleição presidencial de 2021, a esmagadora derrota da esquerda no plebiscito constitucional em setembro de 2022 e a vitória em maio de 2023 da extrema direita na votação para o novo conselho constitucional evidenciaram um cenário político volátil e sombrio. Os casos equatoriano e peruano avançam na mesma direção.

Onde ainda se encontram mais ou menos ativos, na Argentina, no Brasil, no México e, em menor medida, nos Estados Unidos, os sindicatos pesam cada dia menos nas decisões estratégicas dos partidos políticos. Outrora considerados as principais forças de ligação entre trabalhadores e lideranças políticas, eles enfrentam no mundo todo taxas de densidade declinantes sem aparentemente contar com um plano alternativo ao habitual apoio a políticos menos hostis às pautas corporativistas. Especializado em representar uma classe trabalhadora fordista em vias de desaparecer, o sindicalismo luta para se reinventar. Porém, sem saber exatamente como.

Não por acaso, o declínio trabalhista em escala global foi acompanhado pelo aumento da desigualdade entre as classes sociais, pelo crescimento da alienação política e pelo fortalecimento do chauvinismo. Ainda assim, com as exceções de Adam Przeworski e de Wolfgang Streeck, a esmagadora maioria dos diagnósticos a respeito da atual crise da democracia liberal desconsidera a importância da devastação das organizações de representação e de luta dos trabalhadores na compreensão da ameaça nacionalista autoritária[7].

Priorizando explicações institucionalistas para a escalada autoritária, essas análises desperdiçam a chance de inserir a ameaça da extrema direita no contexto das implicações socialmente devastadoras sobre as classes subalternas da crise da globalização neoliberal. Consequência previsível dos incessantes ataques ao maior responsável pela democratização das sociedades nacionais, isto é, o movimento organizado dos trabalhadores, a atual crise sociorreprodutiva das classes subalternas deveria estar no centro do debate sobre a crise da democracia. Nem de longe esse é o caso.

O duplo twist carpado

Daí a importância de recuperarmos a experiência coletiva do proletariado precarizado. Afinal, confinado nas dobras existentes entre a produção e a reprodução, esse “precariado” corresponde àquela fração da classe trabalhadora cuja observação permite revelar tanto o segredo da exploração econômica quanto a centralidade da expropriação política. Essa posição no interior da estrutura do conflito social capitalista faz com que o processo de reconstrução de suas identidades coletivas se transforme em uma ocasião mais que oportuna para a análise do atual processo de crise de hegemonia em escala global.

Na América Latina, foram os marxistas que insistiram na importância do trabalho precário para a caracterização das particularidades do capitalismo periférico por meio dos conceitos de “subproletariado”, “massa marginal” e “força de trabalho superexplorada”[8]. Revisitar a história dessa tradição foge ao escopo desta apresentação. Velhos amigos têm se dedicado a essa tarefa decisiva de maneira realmente notável[9]. Há mais de uma década, eu mesmo cheguei a esboçar um contraste entre os conceitos de subproletariado e de precariado, e devo dizer que tenho muito mais acordos que desacordos com os usos desses conceitos para a análise da relação “estrutural” entre centro e periferia capitalistas[10].

No entanto, se insisto em utilizar um conceito emprestado da sociologia crítica francesa, ainda que retificado pela teoria marxista da superpopulação relativa de trabalhadores, é devido à vontade de explorar diferentes contribuições do marxismo para uma análise da crise da globalização neoliberal que destaque paralelamente a agência política dos subalternos no Sul e no Norte globais. Aqui está subentendido que décadas de hegemonia neoliberal degradaram as condições sociais de reprodução dos trabalhadores no Norte a ponto de capturá-los numa fratura social equivalente àquela vivenciada pelos trabalhadores do Sul[11].

Em regra, o marxismo latino-americano é associado à ideia da expropriação do Sul pelo Norte. Nesses termos, o Norte seria a região em que predominaria a troca de equivalentes e o Sul o espaço marcado pela pilhagem colonial e pela expropriação neocolonial. Aos nossos olhos, trata-se de uma tese largamente comprovada pela sociologia e pela historiografia econômica marxistas[12]. E mesmo autores decoloniais que contemporaneamente criticam de maneira áspera o marxismo parecem querer reter o núcleo dessa agenda investigativa, movendo-se da ênfase na pilhagem do trabalho e das riquezas naturais à preocupação com a expropriação epistemológica dos povos do Sul pela matriz colonial de poder oriunda do Norte[13].

No entanto, o que aconteceria se o foco na análise da expropriação do Sul fosse deslocado para observar as relações sociais de produção e de reprodução do Norte? Ampliando a ideia da expropriação do Sul, somos capazes de perceber que o regime de acumulação no Norte cria sistematicamente seu próprio “Sul” a fim de transformá-lo em “objeto” de expropriação. Como sugeriu um autêntico representante do marxismo latino-americano, se a expropriação é condição da acumulação econômica, devemos concluir que não pode haver capitalismo sem que populações sejam submetidas à repetição da violência neocolonial[14].

Contra as interpretações predominantes nos anos 1950 que advogavam a existência de uma incompatibilidade entre os setores “moderno” e “atrasado” da estrutura econômica brasileira, Chico de Oliveira vislumbrou uma relação de determinação recíproca no interior de uma totalidade forjada por nossa condição periférica. A necessidade de compreender a particularidade dessa totalidade levou-o a realizar um “duplo twist carpado”. A pirueta em torno de si mesmo aproximou-o das práticas sociais da reprodução. E o duplo mortal subsequente ajustou seu foco para a expropriação política.

Por um lado, ao refletir sobre a reprodução como condição da produção, Chico destacou o papel da pequena agricultura de subsistência como fonte geradora de parte do excedente disponível para o investimento capitalista num autêntico processo de repetição da acumulação primitiva, só que ocorrido entre os anos 1930 e 1960. Em seguida, ele mostrou como a reprodução de condições de vida degradantes nas comunidades onde viviam as famílias trabalhadoras brasileiras servia para comprimir os custos de reprodução da força de trabalho no país, assegurando os lucros repartidos entre capitais nacionais e multinacionais.

Em outras palavras, na semiperiferia do sistema, a persistência do “atraso” rural assegurava o desempenho da produção “moderna”. De acordo com sua conhecida síntese:

A expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo.[15]

Por outro lado, ao avaliar a expropriação como condição da acumulação, Chico argumentou que a continuidade da acumulação supunha a expropriação mais ou menos permanente do fundo público representado pela legislação trabalhista. Esquematicamente, isso significava tanto o contínuo desrespeito à CLT por parte das empresas quanto a manutenção de um imenso contingente de trabalhadores aprisionados na economia informal – portanto, expropriados de seus direitos trabalhistas e previdenciários. Isso explicava não apenas a postura antissindical dos empresários como a violência política com a qual o governo tratava as agitações trabalhistas. Nessas condições, a “luta pelo acesso aos ganhos da produtividade por parte das classes menos privilegiadas transforma-se necessariamente em contestação ao regime, e a luta pela manutenção da perspectiva da acumulação transforma-se necessariamente em repressão”[16].

No Sul, a violência política é ela mesma uma estrutura econômica. A compressão subnormal dos custos de reprodução se soma ao assalto permanente ao fundo público: agricultura da subsistência, desrespeito aos direitos trabalhistas, favelização e informalidade tornam-se os condicionantes de um regime de acumulação incapaz de prescindir da violência política, que, por sua vez, alimenta um estado mais ou menos permanente de inquietação social entre os trabalhadores.

Nesse contexto, os direitos de cidadania convertem-se num campo minado e aqueles “caipiras” recém-chegados do atrasado mundo rural transformam-se na vanguarda política que busca fazer com que a promessa de uma sociedade salarial baseada na igualdade jurídica e no pagamento integral do valor da força de trabalho seja cumprida.

As modernas relações industriais fordistas e periféricas eram inerentemente autoritárias e, portanto, atrasadas. As tradicionais relações de solidariedade rural eram intrinsecamente igualitárias e, em consequência, modernas. Decorre daí que os empresários modernos eram autênticos representantes do atraso e os trabalhadores atrasados encarnavam a mais pura modernidade. Finalmente, o diagnóstico dos impasses do desenvolvimento brasileiro transformou-se em uma análise de como as tensões econômicas entre as classes sociais se transmutavam em um inclemente antagonismo político. No Brasil, o futuro “está marcado pelos signos opostos do apartheid ou da revolução social”[17].

Suspeitamos que, ao combinar a reprodução social como condição da produção capitalista com a expropriação política como condição da exploração econômica, Chico não apenas criou uma chave interpretativa capaz de decifrar os enigmas de uma sociedade capitalista semiperiférica como lançou luz sobre alguns traços constitutivos do capitalismo enquanto tal. Ao fim e ao cabo, o que ele sugeriu é que a sociedade capitalista não pode prescindir de relações de opressão e de exploração que permitam às empresas “driblarem” a troca de equivalentes com os trabalhadores por meio da expropriação das relações sociais tradicionais de solidariedade entre os subalternos e do recurso à pequena produção familiar.

Inspirados por essa problemática, argumentamos que o neoliberalismo triunfante no século XXI precisou reinventar o processo de semiproletarização das classes subalternas como forma de assegurar a continuidade da acumulação capitalista, ainda que à custa da generalização de relações de troca de não equivalentes entre as classes sociais e, consequentemente, do recurso sistemático à violência política mais cruenta orientada contra as comunidades onde vivem e se reproduzem as famílias trabalhadoras[18].

Ao percebermos que o regime de acumulação contemporâneo depende do rebaixamento das condições de reprodução da classe trabalhadora em escala global, nos damos conta de que a expropriação sistemática de um “outro” ainda não mercantilizado integra o coração das relações capitalistas de produção[19]. Este livro é dedicado à agência desse “outro” marcado a ferro e fogo pelos signos opostos do apartheid ou da revolução social, pendulando continuamente entre o “atraso” e o “moderno”, entre a exploração e a expropriação, entre a formalidade e a informalidade, entre a mercantilização e a desmercantilização.

Nossa expectativa é que um conhecimento das condições de reprodução e das formas de mobilização coletiva desse “outro” será capaz de revelar tendências vitais da complexa mistura de lutas sociais que têm conflagrado as sociedades nacionais desde 2008. Para tanto, devemos nos deslocar da transferência do valor para o capital por meio da troca de equivalentes para outro tipo de relação que simplesmente prescinde das sutilezas do contrato de trabalho em favor da violência política desavergonhada.

Ainda assim, a manutenção da diferença entre a exploração econômica e a expropriação política é central para a sociedade capitalista, pois permite classificar quem são os trabalhadores portadores de direitos da cidadania, separando-os dos semicidadãos e dos não cidadãos. Aos últimos, é negada a proteção contra a violência política sistemática. Em geral, os semicidadãos e os não cidadãos são racializados por Estados e mercados, tornando a separação entre exploração e expropriação largamente coincidente com a “globalização da linha de cor global”[20].

Não resta dúvida de que esse processo depende em larga medida do desempenho do modelo de desenvolvimento do capitalismo racial estadunidense:

A opressão racial desempenhou um papel único na formação e no desenvolvimento histórico dos Estados Unidos. Desde que o encontro histórico dos hemisférios e o início da escravização transatlântica foram os atos fundamentais da criação da raça, uma vez que lançaram um processo histórico global e mundial de “constituição de pessoas” que criou o mundo moderno, a raça tornou-se tanto o modelo da diferença quanto da desigualdade. Essa é uma afirmação histórico-mundial, mas, aqui, nós a desenvolvemos apenas no contexto dos Estados Unidos.[21]

A exemplo de outros países com um passado escravista, também na América os regimes racializados de acumulação moldaram a estrutura da distribuição dos recursos atribuídos ou negados aos indivíduos e aos grupos sociais, estabelecendo, assim, as fronteiras que demarcaram sua integração aos direitos da cidadania ou sua exclusão deles. Nesse sentido, a opressão racial se transformou num instrumento da reprodução das desigualdades, em especial das desigualdades entre as classes sociais[22].

O que é o capitalismo racial?

Quer estejamos nos referindo ao escravismo, ao industrialismo, ao fordismo ou ao neoliberalismo, a persistência da opressão racial na história do capitalismo levou diferentes autores marxistas negros, entre os quais Angela Davis, Cedric J. Robinson, C. L. R. James, Cornel West, Eric Williams, Stuart Hall e W. E. B. Du Bois, por exemplo, a argumentarem que não pode haver capitalismo sem racismo23.

Mais recentemente, uma nova geração de marxistas negros formada, entre outros, por Barbara Ransby, Cedric Johnson, Keeanga-Yamahtta Taylor, Michelle Alexander e Ruth Wilson Gilmore, entre outros, procurou atualizar essa tese por meio de uma abordagem interseccional da opressão racial sob o neoliberalismo. O esforço teórico desses autores somou-se à dedicação militante de jovens ativistas antirracistas organizados desde o início dos anos 2010 na plataforma Black Lives Matter (BLM), revitalizando a principal indagação colocada pelo “marxismo negro”, isto é, a tradição radical que assume a centralidade axiológica do conhe- cimento das populações racialmente oprimidas como eixo norteador da análise social: seria o capitalismo necessariamente racista[24]?

Para responder a essa pergunta, devemos evitar a noção de excepcionalismo negro que advoga a existência nas diferentes sociedades nacionais de uma comunidade homogênea que se reproduz de forma separada dos demais grupos sociais subalternos25. Na realidade, afirmar que o capitalismo é inerentemente racista implica compreender o papel que a racialização desigual, porém combinada, dos diferentes grupos sociais subalternos cumpre na acumulação do capital. Para tanto, é preciso partir da relação entre a exploração econômica e a expropriação política na reprodução das relações sociais de produção capitalistas.

Como observou Rosa Luxemburgo, o capitalismo depende da existência de grupos sociais e de riquezas materiais “não capitalistas” a fim de sustentar a acumulação. Debruçando-se sobre os esquemas de reprodução presentes em O capital, a revolucionária polonesa identificou indícios suficientemente consistentes para concluir que, na condição de um sistema evolvente em escala mundial, o capitalismo não seria capaz de assegurar o processo de acumulação de capital sem recorrer a fontes ainda não mercantilizadas de trabalho e de matérias-primas localizadas em territórios ainda não capitalistas[26].

Portanto, se a expropriação política é condição para a exploração econômica, o capitalismo precisa redefinir permanentemente as fronteiras que separam aqueles povos e territórios que estão “dentro” daqueles que estão “fora” do domínio da troca de equivalentes. Aos nossos olhos, a moderna instrumentalização capitalista das formas tradicionais de racialização dos povos atende às exigências da produção política desses grupos “exploráveis” e “expropriáveis” necessários à acumulação. Em outras palavras, estamos integralmente de acordo com a tese segundo a qual “o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das for- mas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. De tal sorte, todas as outras classificações são apenas modos parciais – e, portanto, incompletos – de conceber o racismo”[27].

Além da natureza estrutural do racismo, vale lembrar que classificar indivíduos e grupos sociais como “outros”, com base em critérios étnico-raciais, religiosos, culturais e nacionais, é um fenômeno necessário à criação da própria identidade daqueles que classificam. Ou seja, definir quem somos “nós” depende de inventarmos a relação com os “outros”. Tendo em vista os diferentes interesses dos sujeitos que classificam, é compreensível que essa relação acabe justificando ou desafiando a reprodução de estruturas de desigualdade social e de dominação política já enraizadas na sociedade.

Em suma, quando falamos em racismo não estamos nos referindo simplesmen- te a crenças ou atitudes individuais. Aqui, vale lembrar a teoria do capitalismo racial e colonial desenvolvida por W. E. B. Du Bois segundo a qual a escravidão e o colonialismo foram essenciais para a ascensão do mercado mundial. Antes do capitalismo, argumentou o sociólogo estadunidense, as relações e as estruturas sociais na África seriam fluidas, evoluindo na ausência de uma rígida hierarquia enraizada em opressões raciais. Sem um sistema rígido de classificação dos povos, relações de produção vertebradas pela racialização dos produtores diretos teriam ficado subdesenvolvidas até o século XVII[28].

A ascensão do mercado mundial mudou radicalmente essa situação. A exemplo de Rosa Luxemburgo, Du Bois concluiu que o capitalismo seria desde sua origem um regime racializado de acumulação, ou seja, um sistema incapaz de se reproduzir sem reinventar permanentemente o racismo e o colonialismo. Para ele, não podemos imaginar a origem do capitalismo sem a violência política inerente à opressão racial que moldou o regime de trabalho compulsório nas grandes planta- ções coloniais. Ao lado da relação salarial, a escravidão emergiu como a estrutura fundamental da acumulação capitalista:

A raça negra foi a base sobre a qual o sistema capitalista foi criado, a Revolução Industrial realizada e o colonialismo imperial estabelecido. Se nos limitarmos à América, não podemos esquecer que a América foi construída sobre a África. De mero ponto de parada entre a Europa e a Ásia, a América tornou-se, por meio do trabalho africano, o centro do império do açúcar, do reino do algodão e parte essencial da indústria e do comércio mundial que produziu tanto a Revolução Industrial quanto a dominação capitalista.[29]

Em outras palavras, exploração econômica e expropriação política não devem ser pensadas de forma separada, pois a própria estrutura de classes criada pela sociedade moderna já é originalmente racializada. Ao desafiar as fronteiras raciais entre e intra classes, as diferentes formas de mobilização coletiva dos trabalhadores expropriados pelo colonialismo e pela escravidão teriam se transformado para Du Bois na principal força política por trás das mudanças da sociedade capitalista30. Esta pode ser considerada a premissa de sua conhecida análise a respeito do curso da Guerra Civil nos Estados Unidos. Para ele, a rebelião dos negros escravizados que fugiram em massa das fazendas localizadas no Sul do país, a fim de se juntarem aos exércitos nortistas, foi a razão que explicaria o resultado favorável do conflito para as forças da União:

Não era apenas o desejo de parar o trabalho. Foi uma greve generalizada contra as condições de trabalho. Foi uma greve geral que envolveu no final talvez meio milhão de pessoas. Eles [trabalhadores escravizados] queriam parar a economia do sistema de plantação e, para isso, abandonaram as fazendas. […] Foi o escravo fugitivo que fez os senhores de escravos encararem a alternativa: ou se rendiam ao Norte ou se rendiam aos negros.31

Ao se libertarem por meio de uma “greve geral” contra o regime escravista de acumulação, os trabalhadores negros desafiaram a fronteira racial que os separava dos trabalhadores brancos, impulsionando uma reação até certo ponto imprevista: os trabalhadores brancos do Sul do país alinharam-se às forças da opressão racial. Para Du Bois, a formação de uma subjetividade racista entre os trabalhadores explicaria tanto a relutância dos brancos em apoiar o movimento abolicionista, quanto o colapso do projeto de reconstrução dos Estados Unidos após a Guerra Civil.

Em suma, ao defenderem a fronteira racial que os separava dos negros escravizados, os trabalhadores brancos teriam subjetivado uma disposição social refratária à igualdade com os ex-escravizados, essencializando aquilo que Du Bois chamou de “salário público e psicológico” da branquitude:

Devemos lembrar que o grupo formado por trabalhadores brancos, embora recebesse um salário baixo, era recompensado em parte por uma espécie de salário público e psicológico. Eles receberam a deferência pública e os títulos de cortesia porque eram brancos. […] Por outro lado, o negro estava sujeito ao insulto público; tinha medo das turbas; estava sujeito às zombarias das crianças e aos medos irracionais das mulheres brancas; e foi compelido a se submeter continuamente aos incontáveis emblemas da inferioridade.[32]

Nesse sentido, a essencialização de uma subjetividade racializada entre os brancos pobres teria bloqueado a unidade política com os trabalhadores negros, assegurando, mesmo após o fim da escravidão, que as divisões raciais permanecessem inalteradas. Em suma, o regime racializado de acumulação resultante do fracasso do período da Reconstrução não apenas desestimulou o reconhecimento da existência da opressão racial pelos trabalhadores brancos como impulsionou os trabalhadores negros na direção das mobilizações por justiça racial.

Trata-se de um padrão histórico que perdura até os dias atuais. Trabalhadores negros, latinos e imigrantes sem documentos seguem desproporcionalmente representados na base social expropriada do regime de acumulação, vivendo nos bairros e nas comunidades mais pobres e carentes do país. Além disso, esses trabalhadores são vitimados tanto pela violência interna direcionada às comunidades quanto pelo assédio policial, pela expropriação dos direitos políticos e pelo encarceramento em massa que há décadas alimenta o complexo industrial-prisional estadunidense[33].

No entanto, quando observamos os impactos da crise iniciada em 2008 nas comunidades e nas pequenas cidades rurais onde vive parte significativa da classe trabalhadora “branca”, percebemos como suas condições gerais de reprodução aproximaram-se daquelas historicamente experimentadas pelos grupos racializados de trabalhadores nos Estados Unidos[34]. A combinação entre austericídio fiscal e desindustrialização redundou na diminuição dos empregos protegidos e ao mesmo tempo impulsionou a deterioração de infraestruturas sociais, como escolas, estradas e hospitais, deteriorando progressivamente o modo de vida tradicional dos trabalhadores outrora protegidos pelo pacto fordista.

À medida que a acumulação foi se tornando mais dependente da expropriação política, a precarização varreu o trabalho sindicalizado fazendo com que os salários caíssem abaixo dos valores socialmente necessários à reprodução normal da classe trabalhadora. Nesse sentido, a incorporação de grupos de trabalhadores brancos e nacionais ao precariado reciclou o regime racializado de acumulação capitalista.

Historicamente, é certo que o capitalismo jamais prescindiu de combinar exploração econômica e expropriação política. No entanto, até o final dos anos 1980, a história do capitalismo estadunidense foi marcada por uma fronteira bem definida separando trabalhadores nacionais explorados de grupos racializados expropriados.

Esquematicamente, os trabalhadores brancos, nacionais, masculinos, adultos e sindicalizados, eram submetidos à troca de equivalentes no mercado de trabalho e à exploração econômica nas fábricas. Os trabalhadores negros, latinos, imigrantes sem documentos, informais e as mulheres desorganizadas sindicalmente estavam sujeitos à troca de não equivalentes e às formas violentas de expropriação política. Nos Estados Unidos, o neoliberalismo redefiniu essa fronteira, aproximando os trabalhadores brancos e nacionais das condições de reprodução características dos grupos subalternos racializados.

Na medida em que ocupam os postos de trabalho mais precários e são as principais responsáveis por desempenhar atividades reprodutivas não remuneradas, as mulheres trabalhadoras foram as mais afetadas por esse deslocamento. No entanto, os trabalhadores masculinos também perceberam suas condições de vida e de trabalho se deteriorando, o que, para muitos analistas, favoreceu o agravamento do antagonismo racial, sobretudo no Sul do país[35].

Aqui, vale lembrar que a expulsão de trabalhadores do pacto fordista não estimulou exclusivamente reações racistas ou xenofóbicas. Ela também favoreceu o reconhecimento por grupos de trabalhadores brancos de que seu destino depende em grande medida da superação do regime racializado de acumulação. Assim, uma aliança política entre trabalhadores negros e brancos tornou-se um objetivo mais plausível. Em certa medida, o projeto de autorreforma do sindicalismo estadunidense dos anos 1990 e 2000 condensou alguns dos principais alcances e limites para a construção dessa aliança política.

Conforme veremos adiante, dirigido por sindicalistas brancos e assentado em demandas por justiça social orientadas para mobilizar grupos racializados de trabalhadores, esse projeto chocou-se com a revitalização do poder burocrático que aliena as bases da liderança sindical, não sendo capaz de reverter a tendência de queda da taxa de densidade sindical nos Estados Unidos.

Ainda assim, ao focar seus esforços organizativos em grupos racializados de trabalhadores usualmente responsáveis por atividades subalternas no setor de serviços, o projeto reformista conseguiu aumentar a influência dos sindicalistas sobre os governos do Partido Democrata. Além disso, o reformismo sindical opôs-se à Guerra do Iraque em 2003, foi o principal financiador da candidatura de Barack Obama à presidência em 2009 e apoiou os movimentos Occupy Wall Street, Dream e Black Lives Matter nos anos 2010[36].

Testando a hipótese “thompsoniana”

A reorientação estratégica do sindicalismo em direção aos grupos sociais racializados e a seus movimentos sociais acompanhou a mudança de foco do regime de acumulação estadunidense da exploração econômica para a expropriação política. Essa transição impulsionou a adoção por governos e empresas de políticas antissindicais que progressivamente desgastaram o padrão normal de reprodução da classe trabalhadora, ampliando sua borda precária e afastando um número crescente de trabalhadores do acesso aos direitos e benefícios trabalhistas. Isso acarretou uma série de ajustes na tradicional distribuição fordista dos trabalhadores entre setores explorados e expropriados.

Sob a hegemonia neoliberal, apesar de ser possível observar uma presença mais significativa de cidadãos negros entre os quadros profissionais, a identificação dos trabalhadores negros com o grupo expropriado permaneceu inalterada. No entanto, os trabalhadores brancos, tradicionalmente associados ao grupo explorado, passaram a experimentar um processo de expropriação política que aproximou as condições sociais de reprodução de suas comunidades daquelas verificadas nas comunidades negras.

Após o colapso do fordismo, a reelaboração das identidades coletivas dos grupos sociais subalternos, em especial a possibilidade do surgimento de uma aliança política bem-sucedida entre trabalhadores negros e brancos nos Estados Unidos, insere-se nesse contexto. Por isso, observando o período compreendido entre o início da crise da globalização neoliberal e o fim da pandemia do novo coronavírus, procuramos estudar a formação de dois tipos de comunidade de trabalhadores precários, a agônica e a insurgente, sublinhando a interação entre elas como um momento da eclosão de um potencial novo padrão de agitação trabalhista na América.

Há dez anos, quando comecei a estudar comparativamente a mobilização de trabalhadores precários na África do Sul, no Brasil e em Portugal, percebi que a crise da globalização neoliberal parecia sobrepor características dos dois principais padrões de agitação trabalhista identificados por Beverly J. Silver: as agitações “marxianas”, ou seja, aquelas definidas pela formação de novas classes trabalhadoras a partir de conflitos nos locais de trabalho, estavam se entrelaçando às agitações “polanyianas”, isto é, aquelas impulsionadas pelo desmanche de velhas classes trabalhadoras que reivindicavam proteção social dos governos[37].

A partir daí, aventei a hipótese de que um terceiro padrão poderia estar emergindo dos deslocamentos instigados pela crise da globalização neoliberal. Chamei esse padrão de “thompsoniano” a fim de não destacar nem o “fazer-se” marxiano, nem o “desfazer-se” polanyiano, e sim o “refazer-se” das identidades coletivas dos grupos sociais subalternos no decorrer de uma grande transformação social[38].

Todavia, meus achados de campo limitavam-se exclusivamente a países semiperiféricos. A ideia de analisar as metamorfoses do padrão de agitação trabalhista nos Estados Unidos nasceu do desejo de testar a plausibilidade da hipótese “thompsoniana” em uma escala mais ampla. Para tanto, dividimos o livro em três partes alinhadas grosseiramente aos momentos do “fazer-se”, do “desfazer-se” e, finalmente, do atual “refazer-se” das identidades coletivas dos grupos sociais subalternos capaz de sugerir do papado thompsoniano.

Na primeira parte, elaboramos um balanço da evolução do sindicalismo estadunidense entre os anos 1950 e 2000. De saída, delineamos o nascimento do padrão de agitação trabalhista dominado por uma burocracia sindical masculina, branca, nacional e indiferente às angústias de mulheres e negros. Nossa hipótese é que a partir dos anos 1960 o fordismo como um regime de acumulação racializado foi sabotado “por cima” pelo abandono das gerências do compromisso de distribuição aos trabalhadores dos ganhos de produtividade, além de desafiado “por baixo” por um ciclo de rebelião das bases cujos setores mais insatisfeitos eram justamente formados por mulheres e negros.

O segundo capítulo explorou o destino histórico desse ciclo, destacando o movimento que simultaneamente encarnou seu apogeu e sua derrocada: a greve nacional dos controladores de tráfego aéreo conduzida em 1981 pela Organização Profissional dos Controladores de Tráfego Aéreo (Professional Air Traffic Controllers Organization – Patco). Essa greve unificou governo e empresas no intuito de destruir irreversivelmente o pacto fordista na América, inaugurando um novo modelo de desenvolvimento sobre a erosão do sistema de solidariedades práticas, ou seja, da experiência política e moral coletivamente construída e partilhada pelos trabalhadores, oriunda do fordismo. A partir de então, não apenas os rendimentos do trabalho nos Estados Unidos estagnaram em relação ao aumento dos lucros das empresas como a tendência de aumento da sindicalização foi revertida para não mais se recuperar.

O terceiro capítulo investigou uma das primeiras tentativas do sindicalismo de enfrentar essa grande tendência por meio da organização do precariado racializado do setor de serviços: a campanha nacional liderada pelo Sindicato Internacional dos Empregados do Setor de Serviços (Seiu) conhecida como “Justiça para os Faxineiros e Zeladores”. Trata-se de uma estratégia de organização focada tanto nos locais de trabalho quanto nas comunidades onde vivem os trabalhadores precários, em sua maioria imigrantes sem documentos. Ademais, essa campanha influenciou diretamente o projeto de reforma sindical liderado por John Sweeney quando de sua eleição em 1995 para a presidência da federação AFL-CIO.

No quarto capítulo, avaliamos algumas tensões que levaram ao colapso do projeto de reforma sindical proposto por Sweeney. Para tanto, examinamos as razões do racha liderado por Andy Stern em 2005 na AFL-CIO e a subsequente criação de uma federação concorrente, batizada de Mudar para Vencer (Change to Win – CTW). Além disso, abordamos os alcances e os limites do modelo de organização sindical baseado nas fusões de sindicatos menores em maiores e na busca por recuperação de mercado desenvolvido por Stern no Seiu. Nosso argumento é que esse modelo renovou o velho sindicalismo de negócios estadunidense, porém sem reverter a tendência de queda da taxa de densidade sindical.

No decorrer da primeira parte do livro, destacamos as redefinições das fronteiras raciais impulsionadas pelo aumento da participação de grupos racializados na composição da classe trabalhadora estadunidense. Apontamos como o sindicalismo reagiu a essa mudança, adaptando-se ao aumento da diversidade étnico-racial de suas bases e apoiando-se na auto-organização dos trabalhadores em suas próprias comunidades. Sem dúvida, a aproximação dos setores mais dinâmicos do movimento sindical dos trabalhadores racializados representou um momento-chave da atual reconfiguração das identidades coletivas dos grupos sociais subalternos do país.

No entanto, esse foco nos trabalhadores racializados do setor de serviços vivendo em grandes centros urbanos não foi seguido por investimentos capazes de alavancar a organização sindical nas pequenas cidades rurais onde vivem os trabalhadores brancos da indústria. Objeto de vivos debates desde a eleição de Donald Trump em 2016, esse grupo subalterno foi largamente responsabilizado pela inflexão autoritária que acompanhou a vitória do político republicano. Os quatro capítulos que formam a segunda parte do livro ocuparam-se desse tema, recorrendo a uma pesquisa de campo etnográfica conduzida em pequenas cidades rurais na região central da Pensilvânia.

Na terceira parte do livro, focalizamos o movimento Black Lives Matter (BLM) como expressão de uma onda de protestos que se estendeu por toda a década de 2010, mobilizando grupos sociais subalternos, sobretudo jovens e racializados, em diferentes contextos nacionais. Além de analisar o processo de formação do movimento BLM, contextualizando seu desenvolvimento à luz da frustração das expectativas dos trabalhadores negros com o governo Obama, destacamos o aumento da violência nas comunidades negras decorrente do rebaixamento das condições de subsistência das famílias estimulado pela precarização do trabalho.

Finalmente, testamos nossa hipótese thompsoniana analisando a formação durante a pandemia de um novo sindicalismo de justiça social impulsionado pela luta contra a opressão racial dos trabalhadores “essenciais” e que não puderam se proteger apropriadamente do novo coronavírus. Ao investigarmos as bem-sucedidas campanhas de criação do Sindicato dos Trabalhadores da Amazon (Amazon Labor Union – ALU) e do Sindicato dos Trabalhadores da Starbucks (Starbucks Workers United – SWU), exploramos as diferenças entre o novo e o velho sindicalismo de justiça social surgido nos anos 1980 e 1990.

Além disso, buscamos identificar as conexões entre o movimento BLM e as campanhas de criação desses sindicatos independentes, ressaltando a importância do surgimento de uma nova geração de jovens ativistas sindicais cujas disposições políticas interseccionam identidades raciais e de gênero em torno da luta por justiça social nos locais de trabalho. Finalmente, argumentamos que o atual refazer-se classista impelido pela automobilização dos trabalhadores precários floresceu “de baixo para cima”, estimulado pela onda global de protestos e relativamente indiferente ao sindicalismo estabelecido.

Com isso, não alegamos que as novas organizações sejam hostis ao movimento sindical. Ao contrário, elas têm se mostrado permeáveis à colaboração com os velhos sindicatos, desde que essa aproximação não atrapalhe o poder de decisão das bases. Se esse novo sindicalismo de justiça social irá ou não ajudar a solucionar a histórica crise do trabalho organizado nos Estados Unidos só o tempo dirá. Porém, uma coisa é certa: a atual convergência entre novos e velhos sindicalismos

de justiça social abriu uma janela de oportunidades para a revitalização do movimento trabalhista no país como não acontecia desde o histórico ciclo de rebelião das bases dos anos 1960 e 1970.

E a observação dos tropeços do passado sugere que essa brecha somente será bem aproveitada caso um novo padrão interseccional desde baixo de agitação política se difunda entre os grupos subalternos com a força de um preconceito popular. O livro que se segue pretende contar uma pequena parte da história da formação desse padrão emergente.


Notas

[1] Ver Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Como as democracias morrem (Rio de Janeiro, Zahar, 2018)

[2] Ver Aurelien Mondon e Aaron Winter, Reactionary Democracy: How Racism and the Populist Far Right Became Mainstream (Nova York, Verso, 2020).

[3] Vale observar que utilizamos a noção de crise de hegemonia no sentido gramsciano: por um lado, Gramsci percebeu no afastamento das classes subalternas dos grupos sociais dirigentes após a Primeira Guerra Mundial uma situação na qual podiam emergir “potências obscuras” trazidas à baila por lideranças carismáticas; por outro, essas situações também abriam a possibilidade de uma intervenção ativa das massas na história. Ver Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, v. 3 (trad. Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000).

[4] Ver Fabio Luis Barbosa dos Santos, Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016) (São Paulo, Elefante, 2018).

[5] Ver Nancy Fraser, The Old Is Dying and the New Cannot Be Born (Nova York, Verso, 2019).

[Ed. bras.: O velho está morrendo e o novo não pode nascer (trad. Gabriel Landi Fazzio, São Paulo, Autonomia Literária, 2019).]

[6] Ver Pablo A. Baisotti (org.), Problems and Alternatives in the Modern Americas (Nova York,

Routledge, 2021).

[7] Ver Adam Przeworski, Crises da democracia (trad. Berilo Vargas, Rio de Janeiro, Zahar, 2020); e Wolfgang Streeck, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático (trad. Marian Toldy, Teresa Toldy e Luis Felipe Osório, São Paulo, Boitempo, 2018)

[8] Ver Paul Singer, Dominação e desigualdade (São Paulo, Paz e Terra, 1981); José Luis Nun, Marginalidad y exclusión social (Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2001); e Ruy Mauro Marini, Dialética da dependência (Petrópolis, Vozes, 2000).

[9] Ver Claudio Katz, Dependency Theory after Fifty Years: The Continuing Relevance of Latin American Critical Thought (Leiden, Brill, 2022). [Ed. bras.: A teoria da dependência: 50 anos depois (trad. Maria Almeida, São Paulo, Expressão Popular, 2020).]

[10] Ver Ruy Braga, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (São Paulo, Boitempo, 2012, coleção Mundo do Trabalho).

[11] Ver Paulo Arantes, A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização (São Paulo, Editora 34, 2023).

[12] Ver Andre Gunder Frank, Dependent Accumulation and Underdevelopment (Nova York, Monthly Review, 1979). [Ed. bras.: Acumulação dependente e subdesenvolvimento: repensando a teoria da dependência (trad. Claudio Martins Marcondes, São Paulo, Brasiliense, 1980).]

[13] Ver Walter D. Mignolo, The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options (Durham, Duke University, 2011).

[14] Ver Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/O ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003).

[15] Ibidem, p. 60.

[16] Ibidem, p. 119.

[17] Idem.

[18] As “comunidades onde vivem e se reproduzem as famílias trabalhadoras” correspondem àquelas estruturas de relações interpessoais baseadas no “senso comum”, com especial destaque para a religiosidade popular, que resultam da experiência ideológica e cultural fragmentada dos grupos sociais subalternos. Ver Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, v. 2 (trad. Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001).

[19] Ver Klaus Dörre, Teorema da expropriação capitalista (trad. Cesar Mortari Barreira e Iasmin Goes, São Paulo, Boitempo, 2022, coleção Mundo do Trabalho).

[20] Ver Nancy Fraser, Cannibal Capitalism: How our System Is Devouring Democracy, Care, and the Planet – and What We Can Do about It (Nova York, Verso, 2022).

[21] Michael Omi e Howard Winant, Racial Formation in the United States (Nova York, Routledge,

2015), p. 106.

[22] Ver David Roediger, The Wages of Whiteness: Race and the Making of the American Working Class (Nova York, Verso, 1999).

[23] Ver Cedric J. Robinson, Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition (Chapel Hill, University of North Carolina, 2000). [Ed. bras.: Marxismo negro: a criação da tradição radical negra (trad. Fernanda Silva e Sousa, Caio Netto dos Santos, Margarida Goldsztajn e Daniela Gomes, São Paulo, Perspectiva, 2023).]

[24] Ver Michael Burawoy, “The Making of Black Marxism: The Complementary Perspectives of W. E. B. Du Bois and Frantz Fanon”, em Aldon Morris et al. (orgs.), The Oxford Handbook of W.E.B. Du Bois (Oxford, Oxford University, 2022).

[25] Vale notar que nossa aproximação a esse tema foi originalmente inspirada por Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, que, ao analisar as características do racismo brasileiro, concluiu se tratar de uma estrutura social de produção de hierarquias e de desigualdades sociais que opera articuladamente em três níveis: a crença na ideia de raça, a discriminação pela cor da pele e a reprodução da desigualdade econômica entre brancos e não brancos, especialmente saliente no mercado de trabalho. Ver Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e antirracismo no Brasil (São Paulo, Editora 34, 1999).

[26] Ver Rosa Luxemburgo, A acumulação do capital (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2021).

[27] Silvio Almeida, Racismo estrutural (São Paulo, Pólen, 2019), p. 8.

[28] Ver W. E. B. Du Bois, The World and Africa and Color and Democracy (Oxford, Oxford University, 2007).

[29] Ibidem, p. 144.

[30] Idem.

[31] W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction in America (Oxford, Oxford University, 2014), p. 59-60.

[32] Ibidem, p. 73.

[33] Ver Michelle Alexander, A nova segregação: racismo e encarceramento em massa (trad. Pedro Davoglio, São Paulo, Boitempo, 2018).

[34] Neste livro, utilizamos o adjetivo “branca” que qualifica “classe trabalhadora” entre aspas como forma de questionar seu uso corrente na literatura acadêmica que usualmente patologiza o comportamento dos grupos de trabalhadores majoritariamente brancos, atribuindo-lhes o papel de ameaçar por meio de sua suposta disposição política ressentida e autoritária a democracia liberal estadunidense. Quando necessário, empregamos a noção de “branquitude” para nos referirmos à discriminação positiva dos grupos de trabalhadores majoritariamente brancos em relação aos negros. Ver Helena Hansen, Jules Netherland e David Herzberg, Whiteout: How Racial Capitalism Changed the Color of Opioids in America (Oakland, University of California, 2023).

[35] Ver Arlie Russell Hochschild, Strangers in their Own Land: Anger and Mourning on the American Right (Nova York, New, 2016). [Ed. esp.: Extraños en su propia tierra: réquiem por la derecha estadounidense (Madri, Capitán Swing, 2020).]

[36] Ver Doug Singsen, “Labor Unions Were Occupy Wall Street’s Key, Forgotten, Conflicted Ally”, Jacobin, 18 set. 2021; disponível em: <https://jacobin.com/2021/09/occupy-wall-street-ows-zuccotti-park-nyc-labor-movement-unions-collaboration>; acesso em: 20 jun. 2023; Ana Avendaño e Charlie Fanning, “Dreamers at Work: Immigrants and Unions Are Putting Movement Back into the Labor Movement”, Dissent, 21 set. 2012; disponível em: <https://www.dissentmagazine.org/blog/dreamers-at-work-immigrants-and-unions-are-putting-movement-back-into-the-labor-movement>; acesso em: 20 jun. 2023; e Tim Schermerhorn e Lee Sustar, “The Movement for Black Lives and Labor’s Revival”, Labor Notes, 27 out. 2020; disponível em: <https://labornotes.org/2020/10/movement-black-lives-and-labors-revival>; acesso em: 20 jun. 2023.

[37] Ver Beverly J. Silver, Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870 (trad. Fabrizio Rigout, São Paulo, Boitempo, 2005, coleção Mundo do Trabalho).

[38] Ver Ruy Braga, “A ‘Thompsonian’ Pattern of Labour Unrest? Social Movements and Rebellions in the Global South”, Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 12, 2020, p. 1-17; disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/view/1984-9222.2020.e71404>; acesso em: 20 jun. 2023.

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CAPA, CAPITALISMO RACIAL, CLASSE TRABALHADORA, CRISE DA DEMOCRACIA, DEMOCRACIA LIBERAL, EXPROPRIAÇÃO POLÍTICA, NOVO SINDICALISMO, PRECARIZAÇÃO, SINDICALISMO, SINDICATO   

Ruy Braga

Ruy Braga é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor titular

da USP e chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição.


Os sentidos do trabalho

Neoliberalismo incorporou ética conservadora: labor é um dever, a ser cumprido nas condições que o mercado fixar. Contra ela emergiu a ideia do trabalho significativo, socialmente necessário e digno. História de um conflito inacabado (expandir)

Elizabeth Anderson, Dissident Magazine, via Outras Palavras

Em março de 2020, a maioria dos governadores dos Estados Unidos emitiu ordens de permanência em casa para todos, exceto os “trabalhadores essenciais” – pessoas envolvidas na prestação de serviços necessários para apoiar as necessidades humanas básicas. O público saudou os trabalhadores essenciais como heróis e apelou para que recebessem subsídios de periculosidade. Muitos empregadores aceitaram esta exigência. No entanto, pouco depois, o tratamento severo dos trabalhadores essenciais tornou-se a ordem do dia. Os empregadores acabaram com o adicional de periculosidade. Hospitais demitiram profissionais de saúde por reclamarem da falta de equipamentos de proteção individual. Os proprietários de matadouros aceleraram as linhas de desmontagem, forçaram os trabalhadores a aglomerarem-se e aumentaram a propagação da COVID-19.

Este conflito sobre o tratamento adequado dos trabalhadores durante a pandemia da COVID-19 é a mais recente batalha numa luta de três séculos sobre as implicações políticas da ética do trabalho que tradicionalmente vige no país. O fato de os trabalhadores estarem envolvidos em trabalho socialmente necessário dá-lhes direito a respeito, remuneração digna e condições de trabalho seguras? Ou significa que têm o dever de trabalhar incansavelmente, sem reclamar, sob quaisquer terríveis condições e baixos salários que o seu empregador imponha em sua busca pelo lucro máximo? Chamo a primeira visão de versão progressista ou pró-trabalhador da ética do trabalho; a segunda, chamo de ética do trabalho conservadora. Em vários períodos da história europeia e norte-americana, um lado ou outro dominou o pensamento moral e a política econômica.

As três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram o ápice da social-democracia, um período de triunfo para a ética do trabalho progressista. Nas democracias ricas da Europa e da América do Norte, o período pós-guerra foi caracterizado por altas taxas de crescimento econômico, amplamente partilhadas entre as classes econômicas, com sindicatos fortes, um robusto estado de bem-estar social orientado pelo seguro social universal, investimento estatal na educação e na saúde, poderosos governos liberais e instituições democráticas e um sentimento geral de otimismo.

Hoje, os habitantes da Europa e da América do Norte sofrem a reversão dessas conquistas. As políticas neoliberais são em grande parte culpadas. A financeirização, a austeridade fiscal, as reduções fiscais para os ricos, as duras restrições sociais, os ataques aos sindicatos e os acordos comerciais internacionais favorecem os interesses do capital e restringem a governação democrática. Estas políticas aumentaram a desigualdade econômica, minaram a democracia e reduziram a capacidade do Estado de responder às necessidades e interesses das pessoas comuns.

No meu novo livro, Hijacked: How Neoliberalism Turned the Work Ethic Against Workers, and How Workers Can Take It Back [Sequestro: Como o neoliberalismo virou a ética do trabalho contra os trabalhadores e como os trabalhadores podem recuperá-la], defendo que o neoliberalismo revive a ética do trabalho conservadora, que diz aos trabalhadores que devem aos seus empregadores trabalho incansável e obediência sem questionamento. Diz aos empregadores que eles têm direitos exclusivos para governar os seus empregados e organizar o trabalho com vistas a obter o lucro máximo. E diz ao Estado para consolidar a autoridade destes executivos por meio de leis que tratam o trabalho como nada mais do que uma mercadoria. Para reforçar a mercantilização do trabalho, a ética do trabalho conservadora instrui o Estado a minimizar o acesso dos trabalhadores à subsistência a partir de outras fontes que não o trabalho assalariado, incluindo bens fornecidos publicamente, segurança social e benefícios sociais.

A ligação entre o neoliberalismo e a ética do trabalho conservadora pode não ser óbvia à primeira vista. Os neoliberais definem a sua posição em termos de uma preferência libertária por ordens de mercado “voluntárias” em detrimento da ação estatal, supostamente deixando os indivíduos livres para buscarem a sua própria concepção de bem. À primeira vista, diferem ligeiramente neste aspecto dos proponentes originais da ética do trabalho conservadora, como Joseph Priestley e Jeremy Bentham, que sublinharam a necessidade de impor uma visão única do bem – a ética do trabalho – aos trabalhadores preguiçosos e imprudentes. Mas estas opiniões são apenas duas faces da mesma moeda. Os defensores da ética do trabalho conservadora, como Edmund Burke e Thomas Malthus, argumentaram no final do século XVIII, tal como fazem hoje os neoliberais, que o trabalho é uma mercadoria devidamente sujeita às leis do mercado. Os conservadores tornaram explícito o que os neoliberais hoje deixam implícito: os mercados de trabalho são os canais através dos quais a maioria dos trabalhadores fica sob o governo dos seus empregadores, que lhes impõem a disciplina da ética do trabalho.

A melhor maneira de caracterizar o neoliberalismo não é, portanto, em termos de liberdade individual dentro do mercado. Em vez disso, ele pode ser visto como um modo de governo por e para interesses de capital – por parte de empresas e proprietários ricos. Isto é exatamente como insistiram os defensores britânicos da ética do trabalho conservadora durante a Revolução Industrial, quando o direito de voto estava atrelado à propriedade. A doutrina neoliberal do capitalismo de acionistas – a afirmação de que o único objetivo de uma corporação é maximizar seus lucros – é simplesmente mais uma implementação do governo por e para os interesses do capital. Durante a Revolução Industrial, os proprietários de terras e os capitalistas usaram o seu poder para apropriar-se de riqueza às custas de outros, através de práticas como cercamentos, monopólios, aluguéis exorbitantes, colônias privadas autorizadas pelo Estado e a usura. Hoje, as políticas neoliberais autorizam inúmeras práticas comerciais exploratórias semelhantes, incluindo a monopolização, os empréstimos predatórios, a repressão aos sindicatos, o rebaixamento de funcionários estáveis para trabalhadores temporários e vários esquemas de capital privado que prejudicam os cuidados de saúde, os cuidados veterinários, as vendas de varejo, as organizações de imprensa, o aluguel de moradia e a diversos outros setores, explorando tanto os trabalhadores como os consumidores.

Há mais de um século, Max Weber apresentou a sua própria avaliação sombria da ética do trabalho na conclusão do seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ao promover um regime de trabalho disciplinado, baseado no ascetismo religioso, escreveu ele, a ética do trabalho acabou por dar origem a um sistema capitalista secular que prendeu as pessoas numa “gaiola de ferro” de trabalho penoso e desprovido de sentido, em prol da infindável acumulação de riqueza. Mas Weber formulou apenas uma leitura parcial dos ministros puritanos do século XVII que inventaram a ética do trabalho. Ele não percebeu que os pastores também formulavam uma visão edificante para os trabalhadores – uma visão que antecipava características importantes da social-democracia.

Qual era, então, a ética do trabalho protestante original? No âmbito da moralidade individual, compreendia um conjunto de virtudes: competência, frugalidade, temperança, castidade e prudência. O hábito de trabalhar arduamente era altamente valorizado nesta ética. Mas os puritanos também tinham atitudes ambivalentes em relação ao trabalho que, em última análise, foram tomadas em direções contraditórias. Por um lado, argumentavam que o trabalho era uma disciplina ascética que exigia labuta incessante em busca do ganho. Eles criticavam os mendigos fisicamente aptos como parasitas. E instrumentalizavam todas as atividades, não deixando espaço para lazer e prazer, exceto quando necessário para restaurar a capacidade de trabalho. Por outro lado, exaltavam a dignidade do trabalho, insistiam na igualdade de todas as vocações e promoviam a liberdade de escolha profissional. Eles exigiam salários justos e dignos, condições de trabalho seguras e alívio contra os empregadores tirânicos. Procuravam proporcionar empregos aos desempregados involuntários – uma tentativa inicial de garantia de emprego – e argumentavam que qualquer pessoa incapaz de trabalhar tinha direito à caridade. Os seus sermões e textos sobre a ética cristã condenavam os ricos ociosos e predadores – proprietários de terras, monopolistas, usurários, arrendatários exorbitantes, manipuladores de preços, maquinadores financeiros, comerciantes de escravos e qualquer outra pessoa que lucrasse tirando partido da vulnerabilidade e necessidade dos outros. Eles promoviam um ideal de trabalho que, em última análise, inspirou a concepção de trabalho não alienado de Marx. A vocação de um trabalhador, argumentavam eles, deve ser uma atividade livremente escolhida que promova o bem-estar dos outros e inspire o entusiasmo do trabalhador, proporcionando um campo para o desenvolvimento e exercício dos seus talentos pessoais.

Os puritanos foram capazes de reconciliar as tensões entre estes dois lados da ética do trabalho porque os seus modelos de trabalhadores eram os pequenos agricultores e os artesãos – isto é, trabalhadores que eram simultaneamente trabalhadores manuais e proprietários. As mesmas pessoas que cumpriam as exigências da ética do trabalho conseguiam colher os seus frutos. (No século XVII, o trabalho assalariado ainda era relativamente raro.) No entanto, no final do século XVIII, a Revolução Industrial separou os proprietários de capital dos trabalhadores manuais, estes últimos ficando reduzidos a trabalhadores assalariados. Isso levou a uma profunda divisão de classe na ética do trabalho. Os defensores da ética do trabalho progressista continuaram a insistir que as mesmas pessoas que cumprem os deveres da ética do trabalho – envolvidas num trabalho que ajuda os outros – têm direito a uma vasta gama de benefícios. Os proprietários de terras e os capitalistas predatórios – os alvos da crítica puritana da classe alta – sequestraram a ética do trabalho e transformaram-na num instrumento de luta de classes. Eles enfatizaram a disciplina, a frugalidade e o ascetismo para os trabalhadores, ao mesmo tempo que retiravam para si a maior parte dos benefícios desse trabalho disciplinado. Usando a riqueza como prova de virtude e a pobreza como prova de vício, rentistas ociosos e capitalistas ocupados que lucravam com a exploração de outros se apresentavam como heróis e os pobres como canalhas. Assim surgiu a ética de trabalho conservadora.

À medida que os capitalistas da Revolução Industrial levaram os trabalhadores à pobreza, destruindo as suas alternativas ao trabalho assalariado, a procura de alívio ao abrigo da tradicional Lei dos Pobres – o sistema britânico de alívio da pobreza com base em condições de recursos – aumentou. Os defensores da ética do trabalho conservadora atribuíram a pobreza à preguiça, à imprevidência e à licenciosidade, e culparam a Lei dos Pobres por promover estes vícios. O economista político (e químico famoso) Joseph Priestley propôs substituir a Lei dos Pobres por planos de poupança individuais obrigatórios. Thomas Malthus propôs a sua abolição gradual, deixando os pobres dependentes de uma caridade privada incerta. Jeremy Bentham propôs que a administração da ajuda fosse terceirizada para uma empresa privada licenciada para encarcerar indigentes e forçá-los a trabalhar em panópticos por pouco ou nenhum pagamento. A reforma da Lei dos Pobres inglesa de 1834 e a política britânica durante a fome irlandesa de 1845-1852 impuseram condições punitivas e estigmatizantes à assistência, incluindo trabalho forçado, confinamento em asilos, perda de direitos civis, despojamento de bens, limites de tempo arbitrários e burocracia onerosa.

Nos últimos 40 anos, os neoliberais nos Estados Unidos propuseram e por vezes implementaram políticas semelhantes. George W. Bush tentou substituir a Segurança Social por planos de poupança individuais. O cientista político Charles Murray argumentou que os benefícios sociais para os saudáveis ​​deveriam ser abolidos, lançando um debate que acabou por levar à substituição parcial do bem-estar social [welfare] pelo workfare – pagamentos vinculados às necessidades de trabalho – em 1996. Esforços recentes para colocar os requisitos de trabalho no acesso para Medicaid e SNAP seguem a mesma lógica. Os legisladores neoliberais impuseram requisitos de documentação onerosos que impedem muitas pessoas, que teriam esse direito, de usufruir do seguro de invalidez, do Crédito de Imposto sobre o Rendimento do Trabalho, da ajuda financeira para a faculdade e de numerosos programas administrados pelo Estado. Os limites punitivos de ativos nos programas de segurança social de alguns estados forçam os pobres a liquidar as suas poupanças para a reforma e para a faculdade, a fim de se qualificarem, garantindo a sua pobreza na velhice e ao longo das gerações. As políticas neoliberais de baixos impostos levaram os departamentos de polícia a financiarem-se a si próprios e aos tribunais, multando os pobres com multas excessivas por infracções insignificantes e arbitrárias. Numa represália ao plano de Bentham para os panópticos indigentes, alguns que não podem pagar estas multas e taxas são remetidos para casas de recuperação geridas por empresas prisionais privadas, onde são forçados a trabalhar por pouco ou nenhum salário. Pessoas que lutam contra o vício em drogas são frequentemente sujeitas a tratamento semelhante.

Como podemos superar este regime vicioso? Os defensores da ética do trabalho progressista oferecem algumas sugestões. Desde a Revolução Industrial até ao século XX, têm surgido debates sobre a melhor forma de promover e recompensar o trabalho. Os conservadores argumentavam que os pobres só poderiam ser induzidos a trabalhar arduamente se estivessem sujeitos à precariedade e sujeitos ao governo dos seus empregadores. As classes médias, nesta perspectiva, poderiam ser motivadas através de uma cultura de consumo conspícuo competitivo. Os progressistas responderam que todos os trabalhadores trabalhariam arduamente se recebessem todos os frutos do seu trabalho. Rejeitaram a ideia de que uma boa vida é uma questão de aquisição competitiva num jogo de estatuto de soma zero essencialmente antagônico. Defendiam arranjos econômicos que emancipassem os trabalhadores da subordinação rastejante aos superiores e nos quais o trabalho fosse um domínio significativo para o exercício de competências variadas e sofisticadas. Eles ansiavam por uma sociedade em que todos pudessem desfrutar de uma vida além da ética do trabalho – que, embora reconheça as virtudes da ética do trabalho, também promove um conjunto mais amplo de valores e bens. Em vez de fazer horas extras no que David Graeber chamou de “empregos de merda”, as pessoas desfrutariam de amplo tempo de lazer, bem como de um trabalho significativo que fosse genuinamente útil para os outros.

Esta linha de pensamento progressista começa com os Levellers do século XVII e John Locke e continua através de figuras revolucionárias americanas e francesas como Thomas Paine e Nicolas de Condorcet, economistas clássicos como Adam Smith e James e John Stuart Mill, socialistas ricardianos como William Thompson e marxistas como Friedrich Engels e Eduard Bernstein. Estes pensadores apresentaram análises e propostas muito diferentes, mas cada um compreendia que as relações de propriedade precisavam mudar para enfrentar os desafios dos seus tempos. Longe de considerarem sagrada a propriedade privada, até os economistas políticos liberais desta linhagem propuseram mudanças dramáticas na lei de propriedade para promover o bem-estar das pessoas comuns. Todos defenderam a abolição dos direitos de propriedade feudal porque rejeitaram qualquer ligação entre a propriedade da terra e o direito de governar outras pessoas. Todos se opunham à primogenitura, aos vínculos e a outros dispositivos de herança que mantinham grandes propriedades intactas em perpetuidade para o benefício exclusivo de algumas famílias. Smith defendeu a abolição da escravidão, dos estágios de aprendizagem não remunerados, dos monopólios autorizados, das colônias privadas e da maioria das sociedades por ações. Paine e Condorcet inventaram a ideia do seguro social universal. O programa de segurança social proposto por Paine, que seria financiado por um imposto sobre heranças, também incluía subsídios universais às partes interessadas. Os Mills argumentaram que os aluguéis dos terrenos deveriam ser limitados por meio de um imposto de 100% sobre o aumento dos aluguéis. J.S. Mill, defensor do proprietário camponês, usou a teoria da propriedade do trabalho de Locke para justificar a expropriação dos proprietários irlandeses e a redistribuição das suas propriedades aos camponeses que trabalhavam a terra. Ele também apoiou os sindicatos e argumentou que as cooperativas de trabalhadores eram a forma organizacional ideal para a indústria moderna.

As ideias apresentadas pelos defensores da ética do trabalho progressista foram parcialmente concretizadas nas social-democracias do pós-guerra da Europa Ocidental. Estes países adotaram um conjunto de políticas para atingir os seus objetivos, incluindo seguro social abrangente, facilitação de sindicatos e negociações setoriais, codeterminação (gestão conjunta do local de trabalho por representantes do trabalho e do capital), expansão dramática do ensino superior público acessível ou gratuito e garantia de férias remuneradas e licenças familiares. No entanto, como argumentaram Sheri Berman e Thomas Piketty, a social-democracia perdeu a sua visão e vigor, em parte sob a pressão das instituições e da ideologia neoliberais.

Para renovar o projeto social-democrata, podemos aprender com o seu antecessor, a ética do trabalho progressista. A nível político, os economistas políticos da tradição progressista da ética do trabalho propuseram revisões criativas e ousadas dos direitos de propriedade. Deveríamos experimentar não só o rendimento básico, mas também os subsídios concedidos às partes interessadas por Paine – que proporcionam acréscimos à riqueza – como forma de prevenir a precariedade. Deveríamos também considerar limites rígidos à herança, como J.S. Mill propôs. Ele argumentou que ninguém deveria herdar mais do que o suficiente para uma “independência moderada”. Seguindo as esperanças de Mill, poderíamos também fazer muito mais para promover as cooperativas de trabalhadores, uma ideia que os países social-democratas do pós-guerra nunca levaram a sério.

Também podemos aprender com os economistas políticos da tradição progressista da ética do trabalho a renovar a visão normativa da social-democracia. Eles compreenderam que, de longe, o produto mais importante do nosso sistema económico somos nós próprios. Ao considerar o desenho institucional, a nossa primeira questão deveria ser: como são as pessoas moldadas pelos nossos modos de organização da produção, troca, distribuição e fornecimento de bens públicos? Esta questão se desenvolve em pelo menos mais duas. Primeiro, o trabalho e outros arranjos institucionais melhoram ou degradam as capacidades e virtudes dos indivíduos? E, em segundo lugar, como é que as diferentes formas de conceber a produção e a troca, os modelos de negócio, a governo empresarial, a distribuição de bens públicos e as políticas de bem-estar social afetam a forma como nos relacionamos uns com os outros? Será que os nossos arranjos econômicos encorajam a confiança, a simpatia e a cooperação, ou fomentam a desconfiança, a exploração, a dominação, o desprezo e o antagonismo entre indivíduos e grupos sociais? Com a ascensão de empresas de alta tecnologia que lucram com a disseminação de desinformação e semeando indignação e malícia, investidores de capital privado que lucram com a quebra de confiança de outras partes interessadas e prestadores de cuidados de saúde que tiram partido dos vulneráveis ​​e os enterram em dívidas intermináveis, é mais do que tempo de integrarmos a preocupação com a qualidade de nossas relações sociais em nossas avaliações das regulamentações de empresas.

Como J.S. Mill antecipou e os social-democratas como Bernstein compreenderam, a democracia está no centro dessa visão normativa mais ampla. Um lugar para construir a democracia é o local de trabalho. O modo de governo neoliberal no local de trabalho sob o capitalismo acionista desqualificou o trabalho e degradou os trabalhadores. Também infligiu grandes danos morais aos trabalhadores, forçando-os a participar em danos a outras pessoas, animais e ao ambiente no processo de maximização dos lucros. Se os trabalhadores tivessem uma voz poderosa no governo do seu local de trabalho, não escolheriam reduzir-se a escravos desqualificados ou infligir danos morais a si próprios. A democratização do trabalho é uma forma poderosa de promover competências e disposições democráticas, demonstrar que a democracia pode responder às preocupações das pessoas comuns e, assim, fortalecer a democracia a nível estatal. A maioria das pessoas deseja um trabalho significativo, tal como entendido na tradição da ética de trabalho progressista: um trabalho que proporcione um meio para uma pessoa exercer o seu arbítrio e habilidade ao ajudar outras pessoas. A democratização do trabalho, através de cooperativas de trabalhadores e de modelos melhorados de co-gestão, é uma forma promissora de garantir um trabalho significativo para todos.   

Elizabeth Anderson

Professora de Filosofia Pública da Universidade de Michigan.

# Brasil, capital B.Aires 

Os desmilitantes brasileiros alucinam a geografia política da região ao ver a vitória de Milei como derrota da ‘esquerda’

Paulo Roberto Pires, 451

# Claro Enigma

Nova edição traz de volta às livrarias a fundamental contribuição de Walter Benjamin para compreender a cidade moderna

Bianca Tavolari, 451

# Arqueologia histórica investiga crimes da ditadura no DOI-CODI

Escavações ajudam a reinterpretar fatos ao associar cultura material, docs e depoimentos

Pesquisa Fapesp

# O pré e o pós-junho de 2013

Livros sobre as manifestações de 2013 têm ricas análises dos conflitos que marcaram os protestos

Sérgio Fausto, 451

Roberto Schwarz: "Marxismo deixou o Brasil mais inteligente" 

Entrevista à revista piauí, dezembro de 2023

Em 2004, o crítico Roberto Schwarz, autor de obras que redefiniram o entendimento da literatura e da cultura brasileira, como Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis e Cultura e política: 1964-1969, concedeu uma longa entrevista sobre o impacto do marxismo em sua obra e na sua geração (continue a leitura)

O debate foi conduzido pelos economistas José Márcio Rego e Luiz Gonzaga Belluzzo, a professora de literatura Maria Elisa Cevasco, o sociólogo Eduardo Kulgemas (1940-2006), a socióloga Roseli Martins Coelho e o professor de história Jorge Grespan. Também participou Grecia de la Sobera, estudante de filosofia. A conversa permaneceu inédita e foi revista e ampliada pelo entrevistado duas vezes – em 2019 e neste ano. O texto a seguir é a íntegra do depoimento de Schwarz, a partir das questões propostas pelos entrevistadores.

Uma aclimatação do marxismo no Brasil 

Muita gente nem lembra que foi marxista, ou pensa no marxismo como um pecado de juventude. Mas o marxismo tornou o Brasil mais inteligente, criou uma ordem do dia substanciosa e produziu uma reflexão histórica original, que não se esgotou, embora tenha perdido bastante de seu pique. A moda atual é reduzi-lo ao doutrinarismo, que de fato o acompanhou e é muito negativo. Tenho a convicção, porém, de que há um estudo importante parado no ar, à espera de alguém que articule sem sectarismo os livros-chave do nosso estruturalismo histórico, de intenção transformadora.

Essa designação meio neutra serve para evitar as querelas de capela e uma terminologia que impediram muitos marxistas de reconhecer a direção comum das obras – suponhamos – de Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Antonio Candido, para ficar em figuras simbólicas. Acrescido de uma dúzia de outros autores, muitos dos quais se detestam cordialmente, trata-se de um conjunto dotado de consistência e força elucidativa, cujo alcance ainda não foi apreciado devidamente.

Vivemos o decênio da vitória do capital e da derrota do anticapitalismo. Os países ditos socialistas, que tinham Marx como bandeira, viraram capitalistas assim que puderam, e os movimentos operários excluíram a análise marxista do seu programa, o que tampouco impediu que fossem perdendo a força. Diante de tal derrocada histórica, que sentido pode conservar o interesse pelo marxismo? Será que a derrota não tem ensinamentos e não manda mudar de assunto? Acresce que a inspiração marxista, segundo contam os colegas mais moços, é uma desvantagem considerável para quem procura emprego ou bolsa de estudo, para quem quer publicar um trabalho ou avançar na carreira. É claro que esses desastres e inconvenientes não chegam a ser argumentos teóricos, mas não deixam de ser realidades. Cabe aos amigos de Marx demonstrar com resultados novos que o seu ponto de vista não é mera teimosia.

ANTES DE 1964

Como era natural numa universidade de periferia – a USP dos anos 1950 e 1960, onde eu estudava –, as tendências internacionais davam a pauta, até que a correnteza que levou à crise de 1964 ganhasse força, abrindo espaço, por um curto momento, a uma redefinição local e mais independente dos problemas. Com a morte de Stálin em 1953 tivera início o degelo dentro do movimento comunista, cujo autoritarismo anacrônico foi ficando inviável. As consequências para a vida intelectual foram profundas e se fizeram sentir também no Brasil. A obra de Marx, que o clima de catequese e linha justa dos partidos comunistas havia sequestrado, entrava para o debate universitário, competindo com as teorias rivais e sugerindo aos estudantes um estilo crítico mais radical.

Além do próprio Marx, os autores decisivos para a desdogmatização naquele momento, quanto à teoria e no nosso pedaço, foram György Lukács e Jean-­Paul Sartre. Em 1960 foi publicada em francês uma edição pirata de História e consciência de classe, o livro renegado e lendário de Lukács. Em 1960 saiu também a Crítica da razão dialética, de Sartre, precedida da Questão de método, que era uma tentativa de casar existencialismo e marxismo, e de dar combate ao dogmatismo dos partidos comunistas na França e nos países do Leste.

São exemplos que dão ideia do vento de ressurreição teórica e disposição de mudança que soprava na época. Em 1955 foi publicada a primeira seleção importante dos escritos de Walter Benjamin, organizada por Theodor Adorno, que voltara dos Estados Unidos para a Alemanha em 1949. Com o suicídio de Benjamin em 1940, durante a fuga do nazismo, os seus escritos tinham desaparecido, postos em segurança por amigos. Também nos anos 1950, Adorno começou a desovar sua vasta produção, na qual a problemática das décadas de 1920 e 1930 – a problemática pós-revolucionária europeia – era retomada e atualizada, levando em conta a experiência da Segunda Guerra Mundial e dos anos passados na América. Pertence ao mesmo período a glória mundial de Bertolt Brecht, o dramaturgo e escritor que colocou a revolução e a reflexão materialista no âmago de sua invenção de formas.

À distância, esse renascimento do marxismo crítico, que estivera soterrado pela vitória do nazismo na Alemanha, do stalinismo na União Soviética e do anticomunismo nos Estados Unidos, tinha o que oferecer à radicalização brasileira de então. As suas peculiaridades eram especialmente sensíveis para quem trabalhava no âmbito estético.

MARXISMO E
RADICALISMO ESTÉTICO

Em matéria de arte, tratava-se da volta do radicalismo dos anos da Revolução Russa, ou mesmo dos anos da grande experimentação radical anterior à Primeira Guerra Mundial e, naturalmente, de nosso modernismo de 1922. O ressurgimento desse espírito subversivo cinquenta anos depois, em circunstâncias mudadas, marcadas pela prosperidade americana e europeia, mas também pelo terceiro-mundismo, é desses fatos que requerem explicação.

Em todo caso, contribuiu para o movimento que levou à comoção mundial de 1968. É interessante lembrar que História e consciência de classe, que é de 1923, se definia como um livro leninista precisamente porque considerava que a revolução estava na ordem do dia. Quando nos anos 1960 a desagregação da ordem burguesa e a sua superação pareceram voltar ao primeiro plano, o livro de Lukács recuperou a atualidade. Todos esses autores haviam tido contato vivo com movimentos de ponta, com vanguardas políticas ou artísticas, que agora, completada a esclerose da União Soviética, passavam a ter vibração não só anticapitalista, como também antistalinista.

Lukács foi bolchevique. Benjamin, muito afinado com a experimentação avançada (Proust, Kafka, Karl Kraus, Brecht, o surrealismo, o significado estético do desenvolvimento das forças produtivas), procurava politizá-la em toda a linha. Adorno começou como um teórico militante da Escola de Viena, cujas rupturas musicais ele interpretava como outras tantas quebras da ordem burguesa, em analogia com a visão lukacsiana da revolução.

Cada qual a seu modo, esses autores eram o que na União Soviética se chamava depreciativamente formalistas. Acreditavam na precedência da questão formal para a discussão artística. Conforme a expressão célebre de Lukács, anterior ainda à sua virada marxista, o que é social na arte é a forma, a qual estrutura o contato dos conteúdos e dos materiais com o espectador. Mas é claro que o formalismo das vanguardas não era descaso pela humanidade, como queriam os seus adversários conservadores, nem pela história, como queriam os adversários de esquerda. Era, ao contrário, a convicção de que transformações formais levavam a um mundo novo. Isso dava ao debate estético o calor parapolítico e revolucionário que hoje é difícil de imaginar. Assim, as revoluções formais não eram inaceitáveis só para o senso comum burguês e para o valor-eternismo da cultura tradicional, mas também para o humanismo de fachada dos partidos comunistas, com sua função disciplinar.

Quem levou mais longe a dialética de forma e conteúdo, de forma e material, foi Adorno, insistindo no lastro social-­histórico das formas – a forma é conteúdo histórico sedimentado – e no caráter sempre historicamente pré-formado, ou nunca informe, de conteúdos e materiais. Ao contrário do que possa parecer, a procura da forma e mesmo a revolução formal são, para Adorno, menos uma imposição discricionária do artista do que a solicitação de tendências e de contradições acumuladas em seus materiais pelo tempo. Com esses avanços da reflexão, que dão à crítica marxista o seu programa, a análise estética se torna integralmente histórica e dialética. A ideia de que as formas sejam sínteses consideráveis de experiências históricas e respostas também consideráveis a essas mesmas experiências obriga o crítico, empenhado em sua decifração, a arriscar…

É um tipo de crítica que requer abertura para o que dizem as formas, para a experiência histórica à qual elas aludem, para a história e as contradições armazenadas em seus materiais, e também para a experiência subjetiva que tornou a obra memorável e merecedora de interpretação – sem contar a capacidade correspondente de verbalizar.

Ao juntar análise formal e reflexão histórica, a crítica estabelecia um patamar à altura das exigências reais da arte, patamar que entretanto é difícil de combinar com as realidades da rotina universitária. Esquematicamente, eram noções que se opunham ao conteudismo antiestético da história literária positivista, ao conteudismo enquadrado e bem-pensante da história literária comunista e ao formalismo a-histórico de várias vertentes da crítica acadêmica.

A meu ver a superioridade do marxismo em cada um desses confrontos é palpável. Nem por isso ele se impôs – salvo onde virou doutrina de Estado e se desvirtuou –, talvez porque o vaivém entre as reflexões formais e históricas inclui sempre um pulo do gato para o qual não há receita e que não há como didatizar inteiramente. Aliás, os trabalhos que de fato cumprem esse programa não são frequentes. Seja como for, seria interessante confrontar momentos altos da crítica marxista e do New Criticism americano, também este formalista e inovador, além de academicamente mais bem-sucedido. Acho que não é parcialidade dizer que os resultados deste último – ainda quando bons – são mais modestos. Há diferença entre o formalismo sem história, ou com referência histórica limitada, e o formalismo plenamente voltado para a história e a crise da sociedade contemporânea, no sentido decisivo – também de forma – que o marxismo lhe atribui.

LUKÁCS, SARTRE,
FRANKFURTIANOS E BRECHT

Para mim, pessoalmente, os mais importantes foram Brecht e os frankfurtianos. Mas para muita gente boa foram Lukács e Sartre. Brecht, porque ele fez da luta de classes e do marxismo elementos deliberados da invenção artística, criando um vanguardismo de tipo novo, politicamente mais agudo. Os frankfurtianos, pela cumplicidade marxista com a arte moderna ou, inversamente, pela cumplicidade modernista com o marxismo, ambas muito bem explicadas, integrando a reflexão estética à reflexão contemporânea de maneira a meu ver inédita.

Já o interesse por Lukács é mais complicado e misturado. Depois de escrever História e consciência de classe, do qual todo o marxismo crítico é tributário – Horkheimer e Adorno em particular –, ele pagou um preço alto à linha justa do Partido Comunista, para não ser expulso, como ele mesmo explica com franqueza. O que fazer com um crítico que dá como exemplos de equívoco estético a literatura de Proust, Kafka, Joyce e Beckett, sem esquecer Flaubert e o próprio Brecht? É praticamente a literatura moderna inteira. Ainda assim, o conjunto de seus estudos sobre o romance dos séculos XVIII e XIX (até 1848, quando a seu ver começa a decadência da arte burguesa) é poderoso e está vivo, o que não deixa de espantar, pois tantos de seus pressupostos e pontos de fuga foram derrubados. Ou foram invalidados só em parte? Mas é preciso dizer, a bem da verdade, que a obra e a vida de Lukács são instrutivas também de outro ângulo mais penoso. Elas deixam entrever o submundo regressivo da política stalinista, cheio de panfletos abjetos, ameaças, retratações, desaparecimentos, homenagens rituais ao ditador etc. O que pensar disso tudo e de sua ligação com a outra metade, emancipatória e libertária? Não é que no Brasil não tivéssemos notícia do lado tenebroso da coisa, mas ele não se impunha à nossa imaginação. A União Soviética ficava longe e naquele tempo não parecia um problema crucial, o que naturalmente foi um déficit político grande do marxismo de minha geração.

A CHEGADA DO MARXISMO HETERODOXO

Quanto a Sartre, que era famoso, não há mistério. Era normal na faculdade que um livro novo dele fosse lido. Já os alemães eram de acesso difícil, não só por causa da língua. Lukács, depois da autocrítica forçada, havia proibido a reedição da Teoria do romance e de História e consciência de classe, os dois livros que haviam feito a sua reputação na década de 1920. Os trabalhos novos ele publicava na Alemanha comunista, onde por alguma razão os nossos livreiros não gostavam de fazer encomendas. Por seu lado, Benjamin e Adorno ainda não estavam na moda nos anos 1950 e 1960. São Paulo na época tinha boas livrarias alemãs, onde comprei livros deles pelo sumário interessante, sem saber quem fossem.

Antonio Candido conhecia Lukács e levou em conta a sua concepção do romance na Formação da literatura brasileira, de 1959. Até onde sei, a outra pessoa na faculdade que o conhecia era Paula Beiguelman, uma excelente professora de política, que tinha uma coletânea italiana de ensaios dele sobre o realismo, que ela emprestava com ciúme, como algo precioso. Em suma, Lukács era uma presença especial, cultivada por uns poucos socialistas insatisfeitos com o marxismo vulgar e conhecedores da história da esquerda europeia. Havia em torno dele o sentimento do que o marxismo poderia ser se não fosse a deturpação stalinista.

Noutras palavras, os autores chegavam ao sabor das livrarias e das curiosidades individuais, mas o contexto que retraduzia tudo era a efervescência brasileira do período. Brecht, por exemplo, depois de ser encenado como uma novidade estranha por uma companhia convencional, com resultado assim-assim, foi transformado numa figura indispensável ao teatro brasileiro pelo Centro Popular de Cultura (CPC), pelo Arena e pelo Oficina, que o incorporaram em espírito irreverente e agitativo, nem sempre afinado com o original, mas em sintonia com o momento histórico.

UM SEMINÁRIO DE
LEITURA DE O CAPITAL

Embora os professores de esquerda fossem numerosos nos departamentos de filosofia e de ciências sociais, o papel do marxismo era de outsider, uma presença extra-acadêmica, tingida pela ilegalidade da militância comunista. Não havia cursos a respeito – paradoxalmente estes só se generalizaram mais tarde, durante a ditadura. Muitos de nós com certeza achavam que Marx era mais forte e crítico do que os demais clássicos da teoria social, que ele era uma figura-chave para a filosofia, que a reflexão estética devia levá-lo em conta. Mas, ainda assim, era uma presença não oficial, de conversa de saguão ou de bar, e não de sala de aula – um recado de outra realidade.

Não conheço a história da montagem dos currículos da época e não saberia dar as razões da ausência de Marx. Uma parte da explicação passa talvez pela seriedade intelectual, pela alergia que a faculdade tinha desenvolvido à improvisação. O capital é um livro que intimida, e os pressupostos culturais da teoria marxista não eram correntes, ou melhor, eram interdisciplinares em alto grau, sem falar na bibliografia pouco acessível.

Quando um grupo de jovens professores – entre eles, Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Giannotti – se organizou para fazer o Seminário Marx e ler o livro a sério, para torná-lo produtivo acadêmica e politicamente, causou um certo rebuliço. Empurrada pela radicalização do pré-1964, a moda pegou. Os seminários e os cursos universitários correlatos se multiplicaram, e em tempo não muito longo se formou a necessária massa crítica de conhecedores do texto e de seu contexto, permitindo que Marx se tornasse uma especialidade acadêmica – mas aí o momento crítico, em que análise de classe e crise do desenvolvimentismo formavam uma dupla explosiva, já havia passado. Fernando Henrique e Giannotti escreveram que no seminário se estudava Marx como um clássico entre outros, sem propósito extra-acadêmico. Não é a minha lembrança como participante que fui desse seminário.

O seminário sobre Marx foi iniciativa de um grupo pequeno de professores: alguns assistentes de ciências sociais, filosofia, história e economia, que se encontravam quinzenalmente para estudar O capital. Teria sido um esforço intelectual sem nada muito particular, não fosse a obrigação do doutoramento, que no caso foi uma força produtiva e causou uma química nova. Salvo os filósofos, todos escolheram assuntos de tese brasileiros, que tentaram abordar do ângulo marxista recém-adquirido, em espírito dialético, criando uma situação mais cheia de desdobramentos do que supunham.

Por um lado, tratava-se de rever o país à luz de Marx, combinando história, análise de classe e análise econômica, com vantagens de conhecimento evidentes. Por outro, as categorias de Marx eram postas à prova dos padrões normais da pesquisa universitária, o que tinha consequências políticas imediatas, pois deixava malparada a infalibilidade dos dirigentes comunistas, até então donos da teoria. O progresso mais inesperado e interessante, contudo, acabou sendo outro, que se configurou nos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Fernando Novais. Cada um em seu terreno, os dois constataram uma certa inadequação das categorias marxistas – quando tomadas tais e quais – à experiência histórica brasileira, que não batia com os conceitos clássicos. Nem nossa burguesia, nem nossa classe operária, nem as etapas de nossa evolução social coincidiam com o modelo marxista canônico, o que no clima de urgência transformadora da época era um problema desconcertante. Como chegaríamos a ser uma nação burguesa ou socialista decente, como as adiantadas, se diferíamos delas em tudo? O final feliz do percurso não ficava comprometido?

Num caso desses, o caminho fácil e comum seria recusar a realidade para salvar as categorias, ou vice-versa. Pois bem, os dois doutorandos tiveram o discernimento dialético de não recuar diante da inadequação, mas de retê-la como um dado crucial, reconhecendo nela um elemento de realidade do sistema capitalista mundial, cujas categorias não significam o mesmo nem funcionam de modo igual em seus diferentes lugares, no centro e na periferia, embora existindo e sendo eficazes. Assim, o seminário operou uma considerável metabolização brasileira do marxismo, que foi, em primeiro lugar, resgatado da condição de catecismo político; em segundo, separado da mera análise de texto, ainda que filosófica; em terceiro, inserido na pesquisa propriamente universitária, mais aparelhada que o jornalismo de esquerda corrente; e, por fim, problematizado e reespecificado pela experiência histórica a qual devia esclarecer – um resultado ainda pouco apreciado.

Digamos que o seminário contribuiu para o arejamento e a ressocialização do marxismo, afastando-o do universo das seitas e obrigando-o ao debate acadêmico normal, no qual era confrontado às demais teorias sociais e à pesquisa empírica. O banho de realidade fez bem ao marxismo, cuja potência crítica, por sua vez, elevava o nível da discussão. Uma vez desdogmatizada, a ênfase na luta de classes e na exploração econômica trazia às ciências sociais dimensões que elas, por razões obviamente ideológicas, costumavam esquivar.

Quando, por exemplo, Fernando Henrique assinalou a ausência da luta de classes – uma lacuna gritante – nas reflexões do nacional-desenvolvimentismo, inclusive da Cepal,[1] eram os pontos de vista do seminário que subiam ao âmbito nacional e latino-americano. A repercussão internacional dessa sua intervenção, que formaria o miolo da teoria da dependência,[2] mostra o alcance crítico do trabalho do seminário.

Mas nada é simples como parece. No começo dos anos 1970, tive a sorte de participar de uma entrevista com Celso Furtado, então no exílio, a respeito de sua evolução intelectual. Os entrevistadores, marxistas e fernando-henriquistas – entre os quais eu mesmo –, pressionavam o grande homem a conceder que em sua construção havia uma lacuna, quase uma ingenuidade. A seu ver, quem – que sujeito, qual categoria ou força social – seria capaz de arrancar às mãos dos americanos as alavancas do mando econômico, permitindo ao país a superação da condição dependente? Educadamente, queríamos forçar o ex-ministro e teórico do subdesenvolvimento a reconhecer que faltava na sua teoria e política o papel decisivo da luta de classes e da classe operária.

Depois de alguns minutos de braço de ferro infrutífero, em que Furtado afirmava que os agentes da transformação seriam os “homens de bem” (uma resposta algo decepcionante, convenhamos), nosso entrevistado mudou o tom e disse mais ou menos o seguinte: “Eu sei o que vocês querem que eu diga. Mas não vou dizer, porque não acredito. Pensei muito no assunto, e não creio que nas circunstâncias brasileiras a classe operária vá desempenhar este papel.” Em suma, ao contrário do que pensávamos, não era que Furtado não tivesse uma análise de classe e que esse era o déficit de seu pensamento. Ele, um homem de esquerda, anti-imperialista, tinha sim uma análise de classe, só que ela era pessimista, e o levava a buscar outras saídas.

O MARXISMO DA
GERAÇÃO ANTERIOR

É claro que o seminário foi um momento tardio da assimilação brasileira do marxismo. O passo inicial tinha sido dado muitos anos antes por Caio Prado Júnior, com o seu trabalho de historiador. Voltando atrás, na década de 1930 o marxismo vinha sendo uma presença ativa, mas pontual, um elemento na cultura geral das pessoas esclarecidas, como ocorreu também com o freudismo. Graças a seu beabá de choque, chamava a atenção para o primado do interesse material, para a realidade das classes sociais e da exploração econômica, que em geral eram tabus, e contribuía para a crítica à religião, ao tradicionalismo, ao conservadorismo liberal, à ordem oligárquica etc.

Vários dos maiores escritores do período – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano, Drummond, Rubem Braga – lhe devem parte dos seus insights materialistas. A outra vertente, correndo em faixa isolada, era o sectarismo do Partido Comunista, com seus esquemas elaborados pela Terceira Inter­nacional,[3] sem contato com o debate e a realidade locais. Entre parêntesis, e a despeito da inadequação clamorosa, é certo que eles, os esquemas, afirmavam a dimensão mundial da luta de classes, o que não deixava de contribuir para um sentimento atualizado do presente, especialmente num país tão longe de tudo. Seja como for, nos dois casos era uma presença intelectual pouco elaborada, uma transposição mais ou menos crua de pontos de vista genéricos, distante da força de revelação da boa análise marxista. Esse é o ambiente em que Evolução política do Brasil (1933) e Formação do Brasil contemporâneo (1942) representaram um salto. Especialmente o segundo tinha muitos atributos do marxismo de primeira classe.

A sua ideia mestra era original, esclarecedora e solidamente materialista. À explicação do Brasil pela mestiçagem (Gilberto Freyre) ou pelo transplante cultural (Sérgio Buarque de Holanda), contrapunha uma terceira, pela lógica econômica e histórico-mundial da colonização a que nos devemos. As três explicações não se excluem, antes se completam, mas competem, e a questão do primado em última instância está colocada. Em suma, Caio Prado reconhecia nas feições inaceitáveis do país a herança direta de um movimento mundial, cuja finalidade não era constituir uma sociedade, mas alimentar de produtos tropicais e minérios o comércio europeu. Comandada pelos interesses da expansão comercial europeia, que lhe dava o “sentido”, a colonização havia produzido um organismo social-econômico “completo e distinto”, “definido por relações específicas”, “algo novo”, porém deploravelmente pobre em finalidades sociais internas. Da perspectiva ulterior, de formação de uma nacionalidade moderna, este resultado era o ponto de partida real, mais deficitário que positivo, que caberia à nação independente transformar e superar.

Apresentada assim, sem mais, a dialética entre nação e colônia fica talvez trivial. Os méritos dessa construção intelectual, entretanto, são numerosos. Vou enumerando um pouco ao acaso, com propósito de diferençar e de indicar pontos fortes:

* A história é mais de transformação estrutural, demorada no tempo, que de fatos sucessivos.

* A peculiaridade sociológica da colônia e do país, em especial a escravidão e o trabalho semiforçado, não é uma feição isolada, ou um resíduo arcaico, nem muito menos um malfeito dos portugueses, mas um resultado consistente da história moderna, que por sua vez é vista criticamente (a escravidão sendo uma calamitosa rebarbarização).

* Atrás dos fatos, trata-se de notar e articular totalidades históricas – tais como a expansão comercial europeia, o resultado social-econômico de três séculos de colonização, a nação independente cuja incumbência é a superação desses mesmos resultados –, as quais imprimem o seu “sentido” aos dados isolados.

* A ênfase na produção econômica e no comércio europeu de produtos coloniais dá relevância estrutural às questões de classe, quer dizer, de mão de obra, redimensionando as noções naturalistas de raça e meio.

Nos anos 1950 e 1960, dominados pelo desenvolvimentismo, a obra marxista de Caio Prado fazia figura mais concreta que as de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, cujo acento antropológico e cultural parecia ultrapassado pelo ângulo nacional-econômico. A escrita no-nonsense de Caio Prado parecia inclusive mais moderna que o brilho literário dos outros dois, ligado à prosa modernista. Nos dias de hoje, quando a capacidade do país de dispor de si (ou de iludir-se a respeito) perdeu muito do seu ímpeto, os temas da mestiçagem e do éthos brasileiro, mais genéricos do que a circunscrição local da luta de classes, retomaram o primeiro plano. É como se na órbita da nova ordem global (ou das perspectivas de investimento das multinacionais) a flexibilidade de nosso preconceito racial ou de nosso conceito de lei se provassem mais reais que a hipótese da transformação nacional…

TRAVESSURAS E
ACUIDADE CRÍTICA

Nos anos de radicalização que foram dar no golpe de 1964, a melhor parte de minha geração de críticos flertou com o marxismo, que durante algum tempo pareceu a cara da realidade. Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Mário Chamie, José Guilherme Merquior, Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Costa Lima, Alfredo Bosi, para lembrar os mais destacados, sem falar em Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, cujo casamento com Marx foi de vida inteira.

Alguns desembarcaram no dia seguinte ao golpe, outros deram um tempo, outros continuaram. No começo dos anos 1990, Bosi publicou um livro de peso sobre a cultura brasileira, combinando inspirações católicas e marxistas. Merquior era ambivalente: ele gostava da análise estética à maneira frankfurtiana, para a qual era dotado, mas não da caracterização crítica ou negativa do mundo contemporâneo, que não convinha à sua política. Daí a verdadeira travessura teórica que perpetrou, ao publicar um livro abrangente sobre Benjamin, Adorno e Herbert Marcuse, em plena ditadura militar e sendo ele próprio diplomata de carreira: era um trabalho pioneiro no Brasil, com a particularidade – que embaralha tudo – de situar os frankfurtianos no campo do conservadorismo e da reação, por oposição a Martin Heidegger. Por seu lado, a idolatria concretista do progresso técnico era um eco muito unilateral do papel revolucionário que o marxismo atribui ao desenvolvimento das forças produtivas. E assim por diante.

Seja como for, os desdobramentos especificamente marxistas na maioria destes trabalhos não foram longe e não lhes determinam o valor. Aliás, é preciso reconhecer que a presença grande e influente do marxismo no Brasil, na universidade e fora dela, propiciada pela crise de 1964, produziu uma avalanche de artigos e teses, mas não deixou muitos resultados convincentes.

A verdade, incômoda para os sectários, é que a simpatia socialista e marxista, e mesmo a coragem cívica, não garantem a acuidade crítica. Se garantissem, seria tudo mais simples e o mundo se dividiria entre os bons e os maus. A dificuldade já se fizera notar muito antes de 1964. É interessante observar a esse respeito a banalidade do trabalho literário de Astrojildo Pereira e Nelson Werneck Sodré, comunistas devotados e valentes, mas sempre aquém da percepção crítica de seus contemporâneos mais avançados. 

ANTONIO CANDIDO

Quanto às ideias, o marxismo deixa de ser episódico no país quando transforma o campo das discussões, seja pela crítica das anteriores, seja pelos resultados novos. Ou, mais concretamente, ele só toma pé de fato quando especifica e problematiza a feição local do antagonismo de classe, e a inscreve no movimento geral do mundo contemporâneo, especialmente do capital – o que representa um avanço objetivo. Desse ângulo foi Caio Prado quem o tornou parte indescartável da cultura nacional. Quanto à crítica literária, esse trabalho foi obra de Antonio Candido.

Talvez para fugir ao doutrinarismo, ou para não se colocar como bandeira, Candido gosta de fazer piada sobre a relatividade de seu marxismo, que nos momentos de repressão política subiria a 90%, mas nos momentos calmos baixaria a 50%, permanecendo constante o socialismo. O fato é que os seus trabalhos de ponta são materialistas, históricos e dialéticos, sem recurso à fraseologia marxista. Isso vale em especial para Dialética da malandragem (1970) e De cortiço a cortiço (1974), e, de outro mo­do, para Formação da literatura brasileira (1959). Com eles, embora pouco reconhecido como tal, um tipo discreto de marxismo tomou a dianteira em nossa crítica. Como o avanço não vinha ligado à vanguarda artística do momento, à vanguarda política ou à voga internacional, que são os amplificadores potentes, o seu reconhecimento se deu entre os interessados na qualidade dos argumentos e da interpretação crítica. A ativação de seus acertos ainda está em curso.

Imagino que Antonio Candido não considerasse a Formação um livro marxista nem antimarxista, mas escrito na presença do marxismo vulgar e do formalismo a-histórico, e também da historiografia positivista, aos quais contrapôs uma resposta superadora, plasmada pela experiência do país.

Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880 (o título completo é importante) não é uma história literária convencional. A qualidade da scholarship e das leituras críticas logo se impôs. Mas a novidade da concepção, que se traduz num recorte histórico imprevisto, e na dualidade meditada dos juízos de valor, ora estéticos, ora em função do processo formativo brasileiro, deixou desarmados a todos, admiradores e adversários. A formação progressiva, ainda que rápida e logo deliberada de um sistema literário nacional, dotado de encadeamento próprio, por oposição ao colonial, voltado para a metrópole – pois é disso que se trata –, tem analogia com o papel descolonizador que coube, noutro plano, à formação de um mercado interno. Por esse lado, o livro é parente das obras de Caio Prado e de Celso Furtado, este último um contemporâneo exato. Como eles, Candido rastreou e problematizou um processo real, uma totalidade até então despercebida, com referência à qual os dados isolados adquirem sentido.

A novidade, dizendo de modo geral, estava na visão precisa e analítica da formação da nacionalidade e do que seja uma literatura nacional – coisas que julgávamos conhecer –, tomadas como formas específicas de organização material do espírito, com requisitos de acumulação, abrangência e encadeamento interno, bem como de relacionamento externo, e não como pontos de honra. O adjetivo “nacional” mudava de acepção, separava-se de sua vibração ufanista e designava um modo peculiar e novo de organizar a cultura e polarizar a imaginação, com vantagens e estreitezas próprias. Tanto a “formação” como a “literatura brasileira” do título estão em sentido mais refletido e menos identitário que o corrente. Não se trata de repertoriar as nossas obras e glórias a partir do descobrimento do país ou do passado imemorial, mas de expor um processo estruturado, delimitado no tempo (os “momentos decisivos” do subtítulo), com feições, tarefas, dificuldades e ilusões particulares, estéticas e extraestéticas, em condições históricas também particulares. O próprio assunto – os mesmos “momentos decisivos” da formação – liga-se à descontinuidade intrínseca e cataclísmica das culturas de origem colonial, e não faria tanto sentido nas literaturas europeias que nos servem de modelo, mais orgânicas e contínuas. Aliás, o prefácio do livro abre com uma frase que recusa as esquematizações universalistas: “Cada literatura requer tratamento peculiar, em virtude dos seus problemas específicos ou da relação que mantém com outras.”

Caio Prado, sublinhando as implicações críticas de sua ideia sobre “o sentido da colonização” – o seu passo à frente –, observa que ela contraria os cacoetes mentais presos à cronologia e à vizinhança próxima: a colonização não decorre do descobrimento que a precede, como parece ao senso comum, com suas atribuições causais impensadas, mas da expansão do comércio europeu, que a explica e de que ela é um capítulo por assim dizer interno, apesar da distância aparentemente imensa. Para falar em jargão, a causalidade não é linear, mas estrutural. Algo parecido vale para a Formação, cujas grandes linhas refletem ganhos efetivos da compreensão, refutando ilusões caras ao nacionalismo, ao romantismo e ao marxismo vulgar. Para uma exposição de suas posições, em que o materialismo histórico não é um rótulo, mas uma atitude sóbria e esclarecedora, vale a pena ler a introdução à Iniciação à literatura brasileira, do próprio Candido, um pequeno livro que ainda não recebeu a atenção devida.

Há determinações materiais na Formação, mas não constam do repertório estabelecido do marxismo. O livro de fato historia o surgimento de uma continuidade literária nacional – o que é diferente de local –, em contraste com a ordem antiga, da colônia, além de historiar uma incorporação peculiar de blocos da literatura universal. O pivô materialista proposto pelo livro gravita em torno da Independência. Encarada sem mitos, como um processo longo e diversificado, esta começa muito antes do Sete de Setembro e se completa muito depois.

É claro que ela, por sua vez, tem condicionamentos econômicos e sociais. O seu impacto nas letras, entretanto, ao menos em primeira instância, não passa pelos esquemas marxistas familiares. No caso, a condicionante eficaz é a situação formativa ela própria, correlata do inevitável atraso da colônia em crise, depois ex-colônia e nação recente, que vai ditando tarefas e critérios aos escritores e críticos. Cabia aos homens europeizados e mais ou menos educados – uma categoria social, mas não uma classe – dotar o país novo dos equipamentos que lhe faltavam, que iam de instituições necessárias, como escolas superiores e museus, a filosofias atualizadas e gêneros literários na moda, o que constitui uma forma sui generis e muito real de engajamento patriótico e progressista: criar um país à altura. Embora sejam alheios ao léxico marxista, são agentes sociais, objetivos históricos e tipos de engajamento perfeitamente reais, cujo nexo material com a etapa da formação nacional salta aos olhos.

FORMAÇÕES DESIGUAIS
E COMBINADAS

Noutro plano, a ideia de formação permitiu analisar como surpreendentemente uno, apesar das discrepâncias radicais, o período cultural e literário que vai da crise do sistema colonial à constituição da nação, de 1750 a 1880. Trata-se de uma descoberta histórica, com consequências para a compreensão do Brasil e, com os ajustes devidos, da generalidade das descolonizações. Otília e Paulo Arantes procuraram ampliar a sua pertinência para a interpretação cultural do país, indicando movimentos análogos nos campos da arquitetura, da pintura, da filosofia e do teatro, sugerindo um vasto ritmo nacional de formações desiguais e combinadas. O interesse comparativo dessa concepção, no âmbito de uma visão geral da descolonização, é um capítulo ainda por abrir.

No essencial, o processo longo da Independência governa, a distância, o arcadismo e o romantismo, imprimindo-lhes certa unidade, a despeito do antagonismo estético e político. Esse recorte do objeto, que buscava apreender um desenvolvimento real, desdizia as esquematizações nacionalistas e tinha desdobramentos inesperados e anti-ideológicos.

O arcadismo e seus pastores, que do ângulo do patriotismo romântico eram a própria alienação imposta pela metrópole, passavam a desempenhar outro papel. Sob o signo das Luzes, a sociabilidade das academias não só formava um tecido intelectual na colônia, como tinha afinidades com a Razão e com aspirações de autogoverno, contribuindo para o que seria o sentimento da Independência. A própria convenção rústica, a negação à primeira vista das particularidades do lugar e da história, trocava de funcionamento. Num dos capítulos mais brilhantes do livro, sobre a poesia de Cláudio Manuel da Costa, Antonio Candido mostra como, sob a universalidade do padrão bucólico, emerge o amor bairrista da paisagem local. Num funcionamento peculiar e notável, a figura estilizada do pastor permite dramatizar a “dupla fidelidade” do intelectual brasileiro, em quem o momento histórico superpõe o apego à precariedade local, que é sua, e o cultivo da tradição ilustre e longínqua do Ocidente, que também é sua.

No conjunto, são achados críticos e históricos novos, cuja marca distintiva, sempre presente, mas nunca alardeada, é justamente o materialismo. Como indica a parte introdutória do livro, o que estava em debate ao tempo de sua feitura era a relação, ou a separação, entre o valor artístico e as condições materiais – sociais, psicológicas, biográficas – de sua produção. Dando nome aos bois, de um lado estava o positivismo-naturalismo dos condicionamentos externos, de que era próximo o marxismo vulgar; do outro, o New Criticism, com o seu acento na análise interna, na eficácia e na independência da forma.

A discussão permitiu a Candido rever as suas posições iniciais, diretamente ligadas ao debate social, e buscar um novo ponto de equilíbrio: a indicação de condições externas não pode substituir a análise formal, que entretanto não a deve excluir. Entre parêntesis, a conclusão mostra que àquela altura o seu materialismo não era um ponto de doutrina abstrato, mas uma posição alcançada, fincada na atualidade, pois havia incorporado diferenças cruciais, seja com o complexo positivista-naturalista-marxista da tradição nacional e internacional, seja com o formalismo anglo-saxônico, que apartava a qualidade formal e a craftsmanship das condições históricas de sua realização. A ênfase nova estava na análise formal, mas o espírito do conjunto era histórico, e no ponto de fuga estava a superação do impasse. Nos ensaios posteriores – a etapa de ponta e mais complexa de seu trabalho crítico –, Antonio Candido buscaria metódica e inventivamente a historicização da análise formal.

Ele próprio definiu o seu livro como “uma história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Paulo Arantes numa live chamou atenção para o interesse dessa formulação. Trata-se de uma caracterização de classe peculiar, ligada ao processo real, extremamente esclarecedora, embora aquém (ou além) da conceituação histórico-sociológica – que o autor, sociólogo de formação, preferiu não dar. Quem seriam esses brasileiros? A sua esfera, que é policlassista, vai além das classes dominantes ou dirigentes. Abarca também os patriotas mais ou menos instruídos e europeizantes que aspiram à criação de uma literatura nacional, tão gloriosa quanto as demais, camada esta que pode incluir gente muito modesta. Os iletrados e os escravizados, como era forçoso, estavam excluídos.

UM NOVO “SENTIMENTO
DO MUNDO”

À primeira vista, não há semelhanças entre os trabalhos de Antonio Candido e do seminário de Marx. Mas pensando melhor, há paralelos de fundo – preocupações comuns ligadas à situação intelectual do subdesenvolvimento, que na faculdade nos envolvia a todos, das humanidades às ciências exatas. Como sair da precariedade, do atraso, da irrelevância em que estávamos atolados? Era um pano de fundo difuso, que conferia urgência e alguma cumplicidade progressista ao conjunto da vida universitária, passando por cima de divisões partidárias. A resposta que certo marxismo da faculdade deu a este quadro estabeleceu um novo patamar.

Cada qual a seu modo e em seu campo, o seminário e Antonio Candido tentaram caminhos aparentados. Articularam âmbitos que não se costumavam aproximar, ou que se estudavam em separado. A peculiaridade social da ex-colônia, em especial o travejamento de classe, era ligada à inserção moderna do país na ordem internacional burguesa e capitalista, com a qual passava a formar um todo. O conjunto servia de substrato à análise estrutural inovadora. De maneira talvez inédita e contraintuitiva, os aspectos problemáticos da herança colonial, aqueles em que o Brasil discrepava do padrão hegemônico da nação burguesa, não eram vistos como resquício (ou não só). Trabalho escravo, trabalho semiforçado e relações de clientela agora formavam o complexo que sustentava e possibilitava a integração de nossa classe dominante à atualidade do mundo, de que fazia parte plena e subalterna, atualidade que era colocada em perspectiva por sua vez.

Ao contrário do que pareceria, já não se tratava de atraso versus adiantamento, passado versus presente, mas de coexistência funcional, em que nossas relações pré-burguesas de opressão e exploração tinham (e têm) papel substancioso. Este passo, que retomava a ideia de Caio Prado Júnior, fazia grande diferença. Pouco antes, Celso Furtado havia teorizado o subdesenvolvimento nessa mesma linha, como uma realidade que não tende a se dissolver, muito menos a se superar, mas a se reproduzir. Na fórmula feliz de Gunder Frank, que fez escola, tratava-se do desenvolvimento do subdesenvolvimento, da reposição do atraso em circunstâncias avançadas.

As consequências políticas, culturais e teóricas – sem esquecer as estéticas – dessa ordem de ideias são profundas. O obsoleto pode ter futuro pela frente. Repisando, as nossas relações de opressão e exploração de classe, que pareciam nos excluir do mundo moderno, eram justamente nosso vínculo ao progresso tal como ele é, e não como os países adiantados afirmam que ele seja. A inversão é contra-hegemônica e nada menos que sensacional. Em lugar de moradores de um remoto quintal do mundo, somos parte ativa, inconsciente ou revoltada, de sua reprodução em sentido forte. Trata-se de um novo “sentimento do mundo” – na fórmula de Drummond –, ainda por digerir.

NOTAS

[1] A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe foi criada em 1948 pela ONU para estimular a reflexão sobre as economias do continente e o planejamento dos países no pós-Segunda Guerra Mundial. O brasileiro Celso Furtado (1920-2004) foi um dos integrantes da Cepal, logo nos primeiros anos de atividade da comissão. (Todas as notas são da Redação da piauí.)

[2] A teoria da dependência postula que existe uma relação de subordinação das economias “periféricas” (países, em geral ex-colônias, da América Latina, África e da Ásia de então) em relação às economias “centrais” (da Europa, em geral países colonizadores, dos Estados Unidos e do Japão). Para essa teoria, o estado de subordinação dos países “periféricos” é justamente o que impede a sua plena modernização capitalista, mas é preciso examinar a configuração social interna de cada nação, com seus antagonismos e alianças de classe, para ter clareza sobre a condição de dependência. Tal corrente se opõe à teoria do desenvolvimento, que defende que os países “periféricos” avançarão do ponto de vista capitalista desde que comecem a desenvolver seu sistema produtivo, com a industrialização, por exemplo.

[3] A Terceira Internacional foi uma organização criada em 1919 que alinhou a teoria e a prática dos partidos comunistas (e alguns socialistas) de diferentes países ao programa estabelecido pelos bolcheviques – que dois anos antes haviam tomado o poder na Rússia – para levar adiante a revolução proletária em todo o mundo. Em congressos realizados ao longo dos anos, as diretrizes estabelecidas em 1919 foram sofrendo alterações, as principais delas a partir da ascensão de Stálin, em 1922. A Terceira Internacional foi dissolvida em 1943.

Roberto Schwarz

É crítico literário. Publicou, entre outros livros, Martinha versus Lucrécia (Companhia das Letras)


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