A domingueira bolsonarista de 25 de fevereiro

Pois então...

A hipótese de que o fator primoridal que explica a presença de milhares de pessoas na Avenida Paulista em 25 de fevereiro é a do surto coletivo, uma espécie de transe massivo que levaria à falência momentânea do senso crítico dos indivíduos em favor de um apelo radical e inconformista que os predisporiam à ação, seja ela qual for. O surto coletivo, penso eu, mobiliza subjetividades irracionais. Passado o transe, a vida volta ao normal, mas sua ocorrência deixa marcas fortes na organização política da sociedade. 

Os melhores exemplos históricos desse processo vêm da ascensão dos regime nazi-fascistas europeus nos anos 20 do século passado: Mussolini e Hitler, em aglomerações semelhantes a essa que ocorreu na Av. Paulista, estruturaram seus estados totalitários na Itália e na Alemanha a partir da legitimação das massas em torno programas de morte e destruição que enalteciam. O resultado todos conhecem... 

De qualquer forma, um registro precisa ser feito: em eventos dessa natureza há um apagamento (aparentemente voluntarioso) dos conceitos de democracia e de justiça e sua substituição pelas ideias de apelo coletivo com sua entrega a uma personalidade messiânica nas mãos da qual fica depositada a prerrogativa da força. Tudo o mais se arrasta nessa direção, desde a pior e mais covarde matança de semelhantes até mesmo pressupostos religiosos lidos de acordo com o viés totalitário de sua interpretação. O conceito de verdade é relativizado em função dos discursos que enunciam artifícios narrativos que reforçam essa irracionalidade. 

O caso vivido agora mesmo pelo Brasil parece-nos ser a comprovação disso, tanto no episódio das investigações que levaram à descoberta de um amplo complô bolsonarista cujo objetivo era a implantação de um estado militar no país quanto no apoio que Israel tem recebido desse mesmo nicho político em favor do genocídio contra os palestinos em Gaza. Em situações assim, todos os discursos e todas as histórias só adquirem credibilidade se sua lógica argumentativa vier ao encontro do sentimento que alimenta o surto. Vai para o espaço a ideia de uma verdade objetiva, mesmo quando alimentada documentalmente. 

A racionalidade dos argumentos desaparece e se transforma em pós-verdade, uma outra natureza da verdade, conceito esse que não se confunde com fake news. O que aconteceu na Avenida Paulista pode ter essa explicação, e certamente terá, entre outras. A multidão que se aglomerou para ouvir o destempero bolsonarista externado por personalidades sobejamente conhecidas por sua marginalidade, por seu desprezo pela ética social e pela retidão de caráter - comprovadamente bandidos, como demonstram os vários inquéritos nos quais são denunciados, receberam da massa um crédito civil e será com esse "capital" que as lideranças bolsonaristas de todos os níveis vão permanecer atuando na esfera pública como credores de coisa alguma - pois que não estão comprometidas com a pós-verdade que construíram. 

O curso futuro dos acontecimentos e a capacidade de resistência institucional do Brasil em superar o transe de boa parte de sua sociedade - essa anomia que nos acompanha por tanto tempo e contra a qual é preciso ter... determinação e paciência - é que vão definir os fatos da vida vivida.

Elio Gaspari: se não havia trama golpista, vai-se anistiar o quê?

Na Folha de 28/02/24 (expandir)

A anistia de Bolsonaro

A manifestação convocada por Jair Bolsonaro para a avenida Paulista mostrou o vigor de sua liderança política. Quem esteve lá informa que havia até mesmo cordialidade no ambiente. O Bolsonaro de 2024 pretende ser diferente de todos os anteriores: "O que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar uma maneira de nós vivermos em paz, não continuarmos sobressaltados".

É, ou seria, um novo e bem-vindo Bolsonaro. Dando um passo adiante, ele falou em "conciliação": "É, por parte do Parlamento brasileiro, uma anistia para aqueles pobres coitados que estão presos em Brasília. Nós não queremos mais que seus filhos sejam órfãos de pais vivos. A conciliação. Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil. Agora nós pedimos a todos 513 deputados, 81 senadores, um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil".

Na mesma ocasião, ele ressalvou que não pretende beneficiar quem vandalizou prédios no 8 de janeiro. Sobram aqueles que pretendiam anular o resultado da eleição em que Lula o derrotou.

Jair Bolsonaro discursa durante ato na avenida Paulista, no domingo (25) - Bruno Santos - 25.fev.24/Folhapress

Bolsonaro diz que não houve trama golpista. Se não houve, o que se precisa é de Justiça, inocentando quem nada tramou. Se houve, como os fatos estão mostrando, trata-se de uma anistia preventiva que, pela lógica, haveria de beneficiá-lo.

No discurso da Paulista, as palavras "pacificação", "conciliação"e "anistia" foram meros adornos. No conjunto, Bolsonaro é o mesmo de sempre, messiânico em benefício próprio. A anistia que ele propõe, como a que a esquerda defendia em 1965, pressupõe a capitulação de quem a concede.

A anistia assinada em 1979 pelo general João Figueiredo veio seis anos depois do último atentado do surto terrorista iniciado nos anos 60. Foi produto da exaustão, mas o regime não capitulou com ela.

Num caso de anistia quase instantânea, em 1956 Juscelino Kubitschek anistiou militares que, meses antes, haviam sequestrado aviões, internando-se na Amazônia. Em todos os casos, as anistias vieram junto com a deposição das armas pelos rebeldes. Assim foi desde as anistias oferecidas por Caxias no Império.

Aceitando-se a proposta de conciliação de Bolsonaro, anistia-se a infantaria golpista do 8 de janeiro, "os pobres coitados" e, por extensão, livra-se o Estado-Maior do golpe, cujos fios soltos a Polícia Federal vem puxando. Astuciosamente, a anistia congelaria as investigações. Nenhuma anistia foi preventiva.

A Conciliação patrocinada por Tancredo Neves veio da cultura histórica e da compreensão que ele tinha da realidade política. Mesmo tomando-se as anistias de JK, ele deu ao país o seu sorriso e grandes sonhos. Bolsonaro é de trato difícil e sua percepção da política nacional é primitiva. Mostrou isso tanto como deputado do baixo clero oposicionista, como presidente da República. Falando na avenida Paulista, louvou-se tanto como presidente quanto como deputado "muitas vezes, discursando para as paredes".

A manifestação da Paulista mostrou o vigor político do ex-capitão, mas sua proposta de pacificação tem pouca base, com objetivo puramente utilitário. Apesar de tudo, dando-lhe o benefício da dúvida, amanhã será outro dia e o modelo Bolsonaro Paz e Amor precisará mostrar outras cartas.